Um conto de paulo tassa
Paulo Silva (ou paulo tassa) nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). Trabalha como editor, escritor, crítico literário e professor. É doutor em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (2023) pela Universidade de Coimbra e mestre em Literatura Brasileira e Comparada (2012) pela mesma universidade. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010). Em 2018, estreou na poesia com “caída” (2018, Letramento) e em 2021 lançou “o homem à espera de si mesmo” (poesia, Mosaico). Escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique Brasil e mensalmente para o LiteraturaBr, além de ter contos, crônicas e poemas esparsos em revistas de literatura brasileira contemporânea. Radicou-se em Madri e, atualmente, edita a Revista Ponte.
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Supermercado
Um perfume suspende o sono de Tadeu. São 13:36 em Lisboa – ele acorda, esfrega os olhos, passa-os à volta do quarto: não vê mais que memórias de ontem: o bar em pencas, corpo e copos, Miguel sorrindo em brasa, a química, algo pulsando entre cada risada, uma cerveja e outra, logo três, quatro, oito, pouca luz e muito som, duas bocas penduradas em corpos quentes e líquidos.
Outra vez o cheiro daquele homem incansável. Tadeu desperta aos poucos.
Ainda na cama, admira o quarto em caos e cacos. Lembra-se de entrar no apartamento minúsculo com aquele homem amplo: as línguas serpenteando beijos em batalha, quase arrancadas pela roupa tirada à pressa, o golpe de dois corpos grandes na cama, a pele tesa do homem, a sua garganta um globo, a penetração que galopa, sorri e faísca, um gozo cravado em dois gritos de canhão, dois homens vencidos, dois olhares brilhando mais que constelação na mata fechada.
O perfume do homem abre, na memória de Tadeu, o oco da ausência. Ele resolve ligar para Miguel e perguntar o porquê daquela saída à francesa. Esse portuga parece até ladrão.
Caixa postal.
Ainda há sono no corpo de Tadeu. Num susto, pensa ter perdido a aula de fisiologia. O alívio instantâneo chega ao lembrar que hoje é domingo.
Resolve ir ao supermercado fazer uma compra para a semana. Já de pé na cozinha, prepara café, uma tapioca com queijo e manteiga – enquanto anota o que falta. Confere a geladeira, os armários, algo de limpeza. Pronto. Tem a lista com o que precisa para o futuro semanal na Travessa da Espera.
Sente que está se esquecendo de algo. Mas o perfume insiste e Tadeu não resiste à vontade de rever aquele corpo, de comprovar que a noite de ontem existiu. Ele precisa encostar novamente na possibilidade de um amor. Cogita telefonar outra vez para Miguel e logo se lembra que amadurecer é o seu inferno particular. Caaaalma, o amor vai com calma, não foge nem afugenta, não esfria nem queima, não repete o que falhou. Você já viu braços humanos abraçarem rio? Não cabe. O máximo que acontece é espantar a água, ver ela escorrendo – ele vai repetindo mentalmente cada frase dita anteontem pelo terapeuta.
E se a resposta ao amor fosse mais instantânea? Sorve o último gole de café. A pele não quer o banho rotineiro, o fim do cheiro, o que ficou de ontem.
Chave, celular, carrinho de compras e casaco para o quase-inverno lisboeta. Desta vez deixa os fones de ouvido e vai escutando a inquietude do pensamento. Dirige-se ao supermercado a pé, do Bairro Alto à 1º de Dezembro. Anda devagar. Tudo é descida, chão e céu. Enquanto caminha: afunda-se na imaginação de fazer aquele mesmo passeio com Miguel. Talvez se desviariam um pouco e comeriam uma castanha vendida pelos rostos anônimos do Rossio – parecem sempre tão sujos, tão sem nome, e hoje: até esses vendedores de rua são bonitos. Para Tadeu, todos poderiam se chamar Miguel. Se estivessem juntos, o frio seria menos duro. Esta estação não deixa de ser um atravessamento doloroso para um baiano numa casa sem aquecimento.
O carrinho de compras vai guiando o homem, agora a passear pela Rua Trindade sem vê-la. A vida interior aflora tanto que ele mal nota os músicos de rua, os pedintes, os dançarinos, os desenhistas, os milhares de turistas que se enformigam sem pudor, figuras que Tadeu detesta e que hoje se evaporam com mais facilidade que o perfume presente no corpo.
Vez ou outra ele cheira a gola direita do casaco. Miguel está aqui! Onde mais aquele homão estaria? Atolado nessa dúvida, nem notou a passagem pela Calçada do Carmo e se assusta ao perceber que está em frente ao supermercado. O carrinho de compras é atado à entrada e substituído pelo carro do supermercado. Tadeu bate a mão no bolso esquerdo do casaco, puxa a lista de compras. Relê tudo e a confusão é a mesma: ele nunca se lembra bem onde estão os produtos que necessita. Resolve ir caminhando à deriva, construindo o labirinto de sempre.
Passa pela seção de flores, tão desleixadas. Um pouco de carne. Cuscuz. Macaxeira. Salada, banana, abacate. Um pacote de pães. Tapioca. Dois garrafões de água. Barrinhas de cereal. Três caixas de chá de camomila para aliviar o frio. Falta camisinha. Onde mesmo? Nem sequer faz o esforço da lembrança: segue perambulando pelos corredores – corpo sem rumo. Na perfumaria, detêm-se diante de um novo creme para cabelos cacheados: brilho, maciez, beleza, caracóis naturais. Quanta promessa!
Parado, ele pensa se leva o creme ou não. Mal notou que o supermercado está cheio. Enquanto reflete: no corredor ao lado, surge a voz de uma mulher chamando o seu nome: Tadeu, Tadeu. O acento português e a coincidência do nome ativam a atenção do rapaz: ele crava o olhar entre os potes de creme. Do outro lado, a mulher dirige-se a Miguel, entediado pela agitação de duas crianças. O que achas deste papel higiénico? Tadeu sente vertigem e um amargor na língua. Um casal, dois filhos…
Miguel concorda com a marca do papel higiênico e a mulher coloca o pacote no carrinho de compras. Encaminham-se juntos para o setor da perfumaria. Tadeu acompanha a aproximação deles e, rodeando as prateleiras em sentido contrário, troca de corredor: passa para onde estão os papéis higiênicos e dali continua à espreita. Sacana!
O rapaz resolve seguir a família por todo o supermercado. Nunca fui de dar barraco. Atônito e hipnotizado, sente que precisa acompanhar o rastro de Miguel. Produtos de Limpeza. Jardinagem. Ferramentas. Frios. Padaria. Frutas e verduras. Macarrão. Muita carne. O perfume dele é o mesmo de ontem. Ele não é o mesmo de ontem. Miguel ri pouco, fala mais com as crianças enquanto a mulher guia a compra, a ordem da vida.
O homem segue com a mulher e as crianças. Tadeu vai detrás deles, sorrateiro, bebendo pelos corredores o mesmo perfume suspenso. Os quatro vão para o caixa e a coragem irrompe no peito do rapaz. Tadeu conduz o carrinho até a mesma fila da família, estaciona atrás de Miguel, de frente para a mulher, todos aguardando pagamento.
Ao notar que ela vê algo atrás de si, Miguel vira para trás e empalidece: eis o rosto e o gosto da noite anterior. Tadeu… Tadeu, tás-me a ouvir? Ela encara o brasileiro e volta a falar com o marido: Conheces este gajo? Nenhuma resposta, apenas um homem congelado. Conhece-o? Uma fúria acumulada e familiar explode na mulher.
Tadeu aproxima-se dela, com explicação: Desculpa, é que eu também me chamo Tadeu, ouvi vocês conversando e pensei que tinha alguém falando comigo. Num movimento contra si mesmo, puxa com força a gola do casaco e oferece uma ponta do tecido ao nariz da mulher. Você conhece este perfume? Ela sinaliza um sim. Eu também. O rosto de Miguel, antes pálido, agora passa a compor duas bochechas de sangue. Os três se entreolham em silêncio.
Com licença.
Tadeu dá as costas a Miguel, à mulher e às crianças até então perdidas em suas próprias bolhas de carne, energia e tédio. Quem é este gajo? Quem é este brasileiro de merda? Tu me prometeste, cabrão… tu me prometeste… Berros e mãos estapeiam o homem.
Tadeu está fora da fila de pagamento e observa. Agora, ele solta o carro de compras no meio do corredor. Dirige-se à saída e recolhe o seu carrinho vazio. Abandona aquele supermercado cheio de olhos. Os pés dele param na esquina com a Calçada do Carmo e ele vê: tudo o que há por subir. Não consegue se lembrar o caminho para casa.