Um conto de Pedro Torreão
Pedro Torreão (1988) é recifense, poeta e sociólogo. Residente em São Paulo desde 2017, publicou Pão Só (Editora Urutau, 2021) que foi menção honrosa no Prêmio Maraã de Poesia 2019. Para contatos: ptorreao@gmail.com
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Barba-azul
As linhas dos meus pés colavam no taco. Poderia dizer que estabeleciam uma serigrafia sentimental com o lugar, porém, em uma impressão de mão dupla. Uma troca: meus pés amadeirados e o taco em derme, epiderme e unhas, por que não? Esses meus pés descalços arrastavam o corpo: pernas, tronco, braços e cabeça. Nada sentia, a não ser o descompasso do andar, do mexer, deixando pegadas como se flutuar fosse uma opção válida, uma imersão dentro daquele bem especificado dia. Digo dentro, mesmo tendo estado fora por tanto tempo e por toda a noite.
Essa casa não faz sentido para mim, escorrem pelos pelos cantos. Os teus e o de tanta gente e animais de estimação. Teus pelos que ainda sinto em minha boca, nos meus dentes ainda molhados, na minha barba ainda vaporizada. Tudo cola no meu corpo e deixo meus pelos, também, pelo caminho. Me somo a tanta coisa. Meu queixo mudará ainda hoje de forma.
Tua queixa escuto com diversas partes do corpo mesmo que ela não saia da tua boca. Tua boca sempre está em ação. Boca sagaz, boca contrária, boca de palavras e dedos, mucosa intempestiva e você sabe muito bem disso. Da tua boca saem principalmente mentiras, da minha, a sucção do teu corpo. São ventosas, escudos aspiratórios, aparelho respiratório e todos os seus possíveis avessos.
Mas eu mordo e nunca te menti sobre isso. Mordo e tu gostas, parece que nunca foi mordida na vida, puxada por uma boca, triturada nas arestas. E gosta. Gosta quando faço desmedidos movimentos com a boca, engolida pelos cantos – os mais moles, de preferência. Acho que não esperavas que eu mordesse assim, ainda mais porque não mordo com os olhos, só com a boca, esse recorte anatômico. Faço com as mãos sons e com a boca mordo, nada mais natural do que isso, falo com as mãos e você gosta. Te rasgo com elas e você se molha em autocomiseração. É tudo que sentes e eu sei.
Minhas mãos são grandes e se abrem em pangeia sob o oceano que te imaginas. Te imaginas água, sei disso. Falas do presente como um passado gelado enquanto mexo as taças nos meus dedos. Os tacos mexem contigo enquanto exclamas, batendo na mesa um drama vivido. Mas esse presente desfigura o ato, como se no nimbostratus uma unha cravasse a nuvem que passa perdida. Eu também bato, não na mesa, nem no ato. Te bato as costas elevadas no acaso, te quero deitada encharcada. Que se foda a auto-indulgência do meu mapa astral. Mutilado pelo acaso, desfaço mole como sempre: me vejo corda pra te amarrar, me vejo cobra enrolada. Húmus. Minhoca. Terra, pra tua água salobra e tão mineral que não sacia sede. Sujar o copo é tudo que posso.
Nesta casa nada faz sentido, um apartamento com bichos vorazes, onça ou seja lá o que se esconde quando não estou – e nunca estive. O bordado da toalha de mesa me lembra o sol vermelho sob os coqueiros. Me dá sede instantaneamente e corro pra perto de você, do seu corpo. Dessa sua depilação pouco espontânea, que mais parece um embrulho de lojas de varejo: um presente bom, mas desnecessário – regalos de listas de casamento são trocadas em dinheiro por esse motivo. Te trocaria a virilha por tantas coisas que nem imaginas. Por qualquer rojão lançado no São João – e te mordo ali mesmo para que nem percebas. Para que aches que é meu ponto preferido, para que molhes minha barba, um dos meus maxilos. E babo em competição, sugo como se pudesse, tu, me penetrar pela boca. Sugo tudo, depois cuspo em qualquer calçada. Já engoli até lágrimas, se tu soubesses…
Ao entrar no quarto me pergunto: onde estão os armários? Nessa longa casa vazia só vejo portas que adentram espaços, talvez tudo seja esse grande guarda-roupa onde se penduram as coisas, gavetas ao léu, penduricalhos pendurados como tudo que colocas no teu colo aparente. Mas onde guardas, todas tuas coisas, além de dentro de si? Isso, talvez eu nunca saiba. Repasso o olhar e não abro, desmonto no toque, paro, como em samba de breque, um foxtrote atolado, movediço, pesado. Sou um pirata – se ainda não sabes – em contínuo desmame, por isso chupo, sugo e congelo tuas glândulas empedradas. Só resta o toque mole da gengiva, os incisivos duros, proeminentes e te baforo. Que seja o ar, que separa minha boca de teu corpo, cada vez mais invisível, não só na visão, mas no toque. Que se geste o vácuo, que se gaste a derme, que se verta em cores nosso contato. Arco-íris inebriado para além do roxo dos teus dentes alcoolizados.
Mas essa casa não faz sentido, talvez seja apenas um lar varrido por aspiradores-robôs com plantas nomeadas e animais carentes, sobretudo os bípedes. O chão molhado do banheiro faz meu pé gelar por um momento. Mas tua água é quente, quando sinto nos dedos. Tua comida é quente, quando sinto na boca, o café eu fujo, sempre que posso. Não ligue, minha pressa são tambores na mente. E sons, dementes, ainda escuto como o da ração saindo do pote para o copo e do copo pro prato naquela manhã. O que escuto não falho, ao contrário da ironia do olhar absorto que me causa o desacerto. Às vezes tudo são glândulas e seu funcionamento: sangue, corpo, caverna que não se expande.
Meus pés permanecem descalços, mesmo enquanto calço as meias e os sapatos. Estão nus, na saída: o teu olhar e os teus peitos – inclusive os dos meus pés.