Um conto de Raíssa Varandas
Raíssa Varandas tem 33 anos e nasceu em Juiz de Fora, MG. É graduada em História, mas desviou para o caminho das letras durante o mestrado e, atualmente, é doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem poemas e contos publicados nas revistas Mallarmargens e Gueto e, no ano de 2020, lançou Afluência, seu livro de estreia, pela editora Varanda. Atualmente está escrevendo o seu primeiro romance.
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I
Alterando os versos de Adília Lopes, você me dizia que o amor era como tentar pescar um peixe com as mãos. Às vezes ele escapava por entre os dedos. A partir do seu olhar de artista, havia sempre algo líquido nas paixões, não pela percepção efêmera da liquidez, mas pela natureza sem forma desse estado físico. Amar era o desejo de transbordar no outro, transpor as bordas do corpo e da identidade para se misturar ao ser amado, ainda que brevemente. Mais do que captura, o amor era afogamento, o exato ponto do rio em que os pés já não tocam o chão. Tarde demais para voltar até a borda da qual se partiu, longe demais para se alcançar a margem oposta.
Há qualquer coisa aquática nos livros que você me deixou. Quando releio as marcações feitas nas páginas, já não consigo distinguir as rabiscadas por mim, daquelas sublinhadas por você. Pequenas ondulações traçadas a lápis confluem em uma experiência de leitura partilhada. Aos poucos confundo seus pensamentos com os meus. Para nos distinguir, tomo como verdade que todos os trechos a respeito de estações de trem foram destacados por você.
Você era, afinal, um frequentador contumaz dos meios de transporte público. Não por acaso, foi quem me ensinou a usar o metrô. É verdade que as linhas cariocas não eram complexas e que dificilmente eu me perderia no percurso Cinelândia – Siqueira Campos, mas gosto de alimentar a ideia de que você me deu mobilidade em uma terra estrangeira. Anotando as linhas corretas na última folha do livro, eu invejava a facilidade com a qual você se apropriou daquela cidade. O chão da rodoviária também era seu. É fácil te imaginar ainda lá, com a cabeça apoiada sobre os braços cruzados em cima de uma mesa da praça de alimentação, repondo o sono mal dormido da viagem, controlando a náusea causada pelo cheiro de desinfetante e mijo que empesteava o ambiente, sonhando com a próxima cidade.
Sonhei que te levava ao aeroporto. Na noite anterior, dividíamos um lençol branco e eu mal me mexia, para não te acordar. Você partia para uma longa temporada do outro lado do oceano. Nós nos abraçamos e eu voltei para casa, enquanto pensava nas muitas formas de me liquefazer.
II
Nenhuma palavra me chega aos ouvidos pela primeira vez. Por isso já não consigo ouvir a palavra cão, sem lembrar dos latidos na casa vizinha. Nem consigo ouvir a palavra espiral sem pensar nas rotas de fuga. Por isso, também, mantenho alguns livros fora da estante, dentro de sacolas bem amarradas, com um recado para que as visitas não desatem os nós. Ainda que, vez ou outra, eu me pegue recitando de cabeça aquele verso que quase te dediquei.
Nada me alcança como novidade. De modo que, ouvir o primeiro eu te amo, de outras bocas, é estar, mais uma vez, sentada à sua frente, revirando minha bolsa à procura do barulho das chaves. Esperando que o ruído seja o suficiente para justificar meu silêncio. Dando a você a última chance de retroceder alguns passos.
Todo ato de amor atrai uma multidão de fantasmas. Que podem, ou não, nos possuir. Que serão, ou não, violentos ao fazê-lo. Garantindo que nenhuma experiência entre nós seja apenas nossa. E que certas palavras, inofensivas na definição do dicionário, me atinjam como cacos de vidro quando pronunciadas. De repente, me vejo chorando enquanto você me descreve o vazio que te toma entre um cigarro e outro, tão próximo à sensação de orfandade que me atingia na infância, após o sermão de domingo
Tal qual uma avenida, meu corpo carrega locais de memória. Que podem, ou não, ser descolonizados. Que podem, ou não, ser ativados. A depender da pressão que se coloca nos dedos. A depender da hora que a cor do céu acusa. Quando, entre um suspiro e outro, você desliza os dedos na região anterior do meu cotovelo e, naquele momento, eu te odeio. E, subitamente, sua maneira de piscar me remete à forma como você me olhava naquele dia.
Talvez não seja uma questão de toque. Ou dos sons que os lábios emitem. Talvez seja o cheiro que você exala após determinada bebida. Não o aroma da bebida, mas o encontro específico daquela dose, naquela hora, quando a variação de temperatura atinge a medida certa no termômetro da praça, dilatando os poros da sua pele. Em um instante, o seu semblante assume as feições do meu pai, quando ele me ensinava o jeito mais fácil de espatifar todos pratos no chão. E eu me vejo arranjando desculpas para ir embora, apenas para retornar no dia seguinte, arrastando pelos lances de escada uma horda de mágoas que podem, ou não, ser detonadas pelas confluências mais sutis.