Um conto de Ramana Mendes
Ramana Bispo Mendes nasceu no recôncavo, em Santo Amaro da Purificação, viveu a infância e adolescência em Amélia Rodrigues e hoje reside em Salvador. Graduada em BI em humanidades, com ênfase em escrita criativa, graduanda em Letras Vernáculas e dedica-se à pesquisa nas áreas de Teoria da Literatura, Estudos Culturais, Literatura Negra e Contemporânea. É mãe de Ayra, filha de Marli e Almir e neta de Maridete e Jurandir. São esses trânsitos territoriais, educacionais, geracionais que, junto a tantos outros não citados, formam a sua escrita.
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Vó Sula
Ramana Bispo Mendes
Não encontro um lugar no qual possa me acomodar. Odeio hospitais. O corpo enfermo com a cabeça farta de fios tortuosos em variações de branco e cinza é a viração escapulindo das unhas do entendimento. Estar na sala é viver o dia do mormaço perpétuo. Pulo de uma cadeira à outra. Vou ao corredor. Aguardo qualquer sinal de mainha. Vejo jalecos entrando e saindo das portas. Ouço um gemido no quarto.
一 Tá bem, vó Sula?
Outro gemido. Mainha saberia dizer se é dor, desconforto ou bem-estar. Eu… Eu permaneço em vigília. Solicitando da pele enrugada respostas. Ou até histórias passadas numa frequência audível. Com palavras ordenadas e coerentes. Mas dizem que ela calou há quinze anos. Ninguém sabe o porquê. O corpo parou gradativamente. E ninguém sabe o porquê. Também não sei o motivo de esperar algo ser dito.
Mexo os travesseiros. Subo os lençóis. Pergunto à enfermeira aplicando o medicamento da seringa no soro se podem abaixar a temperatura. Ela diz não. Desde que encontrei a ambulância na porta de casa, minhas mãos e olhos são água e sal. É a quarta internação de vó Sula esse ano. Estamos em março. Não deveríamos temer o que está por vir. E ainda assim estou me dissolvendo.
Os termos da nossa relação vivem a fugir. Gosto de me imaginar como a neta preferida. Não que ela tenha me dito isso algum dia. Qua͢͢ndo comecei a falar, vó Sula dizia coisas. Algumas não faziam sentido. Muitas eram insultos. E as mais legíveis, eram os rompantes de violência a dançar nos movimentos do seu corpo.
Quando eu tinha sete anos, meu irmão mais velho queria assistir televisão. O controle estava comigo. Corri para a cozinha, pois sabia que ele tentaria pegá-lo. Burrice. Ele me cercou. Com um chute em minha barriga, venceu a briga na qual eu sequer tinha chance. Nossa diferença de idade é de cinco anos. Numa carreira, tentou voltar à sala. Vó Sula estava sentada num sofá de dois lugares por onde era preciso passar para chegar ao cômodo. Ela ouviu o choro. Avistou o moleque com o controle nas mãos. Levantou a perna sem que ninguém percebesse. Meu irmão perdeu o dente da frente.
Hoje só a boca se move. Respira. Come. Emite grunhidos. Os braços e as pernas atrofiaram. A cabeça pende insistentemente para baixo e para direita. Desde o meu nascimento, mainha lhe ampara com o máximo de conforto e afeto. Ela costuma pôr alguns travesseiros para mantê-la com o queixo erguido. A pressão no pescoço fecha a traquéia. Dificulta a respiração.
Vó Sula tem cinco filhos. Há vinte e seis anos sua mente partiu. Não foi de repente. Mudanças grandiosas não acontecem de um dia para o outro. Nesse hiato, eles se esvaíram. Sobejou uma. A última visita de um dos outros foi há doze anos. Desde a primeira rachadura, mainha ficou.
Me jogo na poltrona ao lado da cama. As pernas doem de andarem sem rumo. Os braços repousam na borda do colchão. Observo-a. Vó sula têm braços fortes. De quem arou a terra e colheu frutos; tapou buraco em rodovia por alguns trocado; zelou os filhos sozinha por uma viuvez precoce e ainda, em sua debilidade, sustentou o desamor das crias. Os braços forjados em luta e o corpo apinhado de fúria, frequentemente, se voltavam contra a filha remanescente. Algo acontecia em sua cabeça. Meus olhos da infância só enxergavam arranhões e hematomas no corpo de mainha. Na casa dos meus amigos não acontecia nada parecido. Os dias não me pareciam normais. Eu tinha medo. Ninguém estava disposto a dar explicações. E eu imaginava para desvendar as lacunas da vida fragmentada.
Disseram-me que aos 16 fugiu de casa. O pai era agressivo. Se casou com alguém não muito diferente. Em noites de bebedeira, não se sabia se era bicho ou homem. Ela não queria descobrir. Esperava-o em casa com uma panela de água fervente. Se triscar um dedo em mim, já sabe. Meus dedos se movem em círculos. Como um cafuné. Ou quase isso. O toque me causa estranheza. Se ela pudesse dizer como se sente… ou se alguém pudesse dizer por ela…. Quem sabe poderíamos ter uma conversa. Resolver coisas. Coisas da nossa relação. Ou melhor, da convivência.
一 O que ainda há nesse mundo para você, Vó Sula?
Ela desvia o olhar e o fixa na porta. Lá está mainha. Com o cansaço e felicidade pelo retorno.
Enfrento seus olhos espelhos d’água. Vejo dor. Choque. A minha dor. Não conseguia entendê-la. Especulei todas as pessoas que ela foi e poderia ter sido. Ao mesmo tempo, deleguei à mulher presente a não existência. Eu tinha tanto medo que transitei pelos anos como se vó Sula fosse ninguém. Não me dispus a enxergá-la viva. Desisti de ouví-la, vê-la, percebê-la.
Mas e agora? Estou disposta a ser amor para Vó Sula?