Um conto de Renan Ayello
Renan Ayello nasceu e vive em Taubaté, interior de São Paulo. É engenheiro e escritor. Publicou Ponto de Fervura (Selo Borboleta Azul, 2022) e tem contos em coletâneas físicas e digitais.
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Uma é quatro, três é dez
Segue reto a rua lateral do estádio, passa a entrada dos visitantes e continua. Chegando na avenida, vira em direção ao portão principal, mas não vai até lá. Depois da segunda barraquinha de churrasco, a de toldo vermelho, sai da calçada que logo você escuta o Baixinho gritando: Uma é quatro, três é dez.
O grito é cavernoso, fura fumaça de pólvora e atravessa quarteirão. A cada trinta segundos, berra: Uma é quatro, três é dez. Em caso de ouvido tapado, é fácil achar também. Ele estaciona o carrinho no canteiro central, rente ao poste, marcando território igual mijo. Mas ó, toma cuidado como você chega, porque ele é folgado. Aceita brincadeira numa boa, mas se você entrar na dele vai ouvir o dobro; ele monta nas suas costas e homenageia sua família inteira. Sério, não poupa ninguém. Baixaria atrás de baixaria, até te deixar amarrado. Se quiser retrucar, esquece ofensa barata, vai no calo: pede fiado ou pechincha. O bicho ferve, a vista embranquece e desembaça exaltado: Olha, de novo. Uma é quatro, três é dez. Se não tem, sai fora.
O preço e as marcas sempre iguais. Uma é quatro, três é dez; Skol a especialidade da casa. Quando inspirado, leva umas latas de Império pra variar. Inspiração é achar oferta de Império no supermercado. Tem que compensar. Se compra fora da promoção é obrigado a mudar preço, a conta do trocado é outra, bagunça tudo a cabeça. Se leva Heineken ou Amstel, por exemplo, o preço sobe e o lucro baixa, vende menos; espanta paladar de milho.
Torcedor é sistemático, um rótulo inesperado vira tragédia. Todo um ritual que começa na camiseta de doze anos atrás quando o time foi campeão, a bermuda preta de tectel, o apito do relógio pra sair de casa, o ônibus linha 5201 sentido Jardim Continental, o assento atrás da porta de saída e do lado da janela, o passo torto, os dois espetos de kafta e os dois de carne, a farinha ressecada, os três palheiros, as seis latas de Skol, a nota de vinte amassada e o infalível grito do Baixinho (uma é quatro, três é dez).
Se pra toda regra tem exceção, a temperatura da cerveja é a loteria. Imagina uma bicicleta naipe triciclo com uma roda na frente e duas atrás, um compartimento adaptado de isopor, forrado com fardos de cerveja e gelos do tamanho de caixas de sapato, um guarda-sol pra proteger do calor, da chuva e do trânsito; um senhor que atravessa oito quilômetros de asfalto pilotando essa máquina.
Mas quente ou congelada, o preço não muda: uma é quatro, três é dez. Sem falha. Em domingos de verão, o gelo derrete antes da sede. Quem chega atrasado encontra um lago cinza de cervejas naufragadas. Uma brecha do isopor aberto já libera o cheiro de água velha. Tibum. A lata transpira suja na mão e o bico ganha um gosto salgado de pé, peixe ou suor. Não adianta reclamar; ele não devolve dinheiro, nem oferece outra. Desconto, esquece. A condição que for, o sabor que tiver, é sempre uma por quatro e três por dez.
Toda semana tem cliente que troca de barraca por causa de resposta atravessada do Baixinho. Ele reconhece a temperatura que tem, mas nunca esfria. Não adianta. A implicância dos clientes virou rotina e até piada interna porque todos que abandonam, voltam. Cada um que sai andando duro e mostrando o dedo, volta. Não falha um. O retorno é o mesmo reprise: se aproximam camuflados na sombra dos outros; o olhar envergonhado, sem referência, como se carregasse culpa de traição.
O Baixinho, ao contrário, não tá nem aí se um abandonou, se outro voltou. Pra ele tanto faz. Quando um sai, outro chega; há vinte anos é assim. A fidelidade dele é com o lucro, com o dinheiro na pochete. Se cliente esperar afeto ou palavra amiga, quebra a cara. No lugar de desculpa vem deboche e cachota. Um monte de absurdo, coloca a mãe, a irmã no meio. Apela pra te testar. Só para quando o pescoço incha e o boné dança sobre a careca. Aí toma fôlego e arremata: uma é quatro, três é dez. Não perde meu tempo não.
A concorrência imita o preço, mas não consegue copiar o personagem. Já vi gente apontando pra barraca do Raul, da dona Neusa, do Cleto, do Valdir e torcer o corpo enfeitiçado em direção à voz do Baixinho.
De perto ou de longe, você ouve. Concentrado ou distraído, ouve. O gogó do homem não envelhece. Se dentro do estádio milhares cantam, xingam ou vaiam, fora dele um grito domina. Uma é quatro, três é dez.