Um conto de Robert Schade
Robert Schade, nascido em 1982, cresceu em Neuenhagen, perto de Berlim, Alemanha. Professor visitante na UFRGS em Porto Alegre desde 2019. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Potsdam. Possui vários contos publicados em revistas alemães. Traduz do português para o alemão e escreve resenhas. Este é seu primeiro conto escrito em Português, revisado por Raquel Meneguzzo.
***
Três sílabas de alegria
Quando se entra numa das lojas bem climatizada da Zéfiro, toda a raiva esvai e dá lugar a um estado de contentamento. Tanto faz se você adentra o mercado através da entrada de pedestres ou da garagem do estacionamento subterrâneo, você é sempre saudado por um dos simpáticos empregados com camisas brancas. Eles – ou a voz robótica na máquina de estacionamento – falam: – “Desfrute das suas compras no nosso supermercado” e querem dizer exatamente o que dizem. Apesar de tudo, gostaria de salientar que vale a pena recorrer a um resquício de pensamento crítico. Todo habitante da nossa capital do sul do Brasil deve estar familiarizado com a seguinte história:
De como a família Zéfiro, originária do Piemonte italiano, tinha, duzentos e cinquenta anos atrás, subornado os capitães do navio com algumas garrafas de aguardente para serem os únicos autorizados a bordo. A rota em ziguezague do navio, que prolongou a viagem por alguns dias, se deveu provavelmente à ausência do capitão polaco, que desfrutou imediatamente da grappa picante. Apenas um esquilo velho, descoberto após alguns dias pelos ruídos que suas garrinhas faziam ao arranhar a madeira, havia se desviado para dentro do navio, além dos membros da família. Este esquilo viria a ser…bem, vamos deixar isso para depois.
Luigi Zéfiro, o mais velho dos doze irmãos, subiu à costa no local onde o famoso Gasómetro se eleva hoje para o céu. Tinha um rosto branco de cal que o distinguia da população indígena. Foi o primeiro europeu a pôr os pés no solo de Porto Alegre. Porém o fez com cautela extrema, pois desembarcara com uma constituição fraca devido à viagem. Imediatamente, foi rodeado por curiosos locais que tateavam, com os indicadores, a sua pele branca e talcosa. Ele recuou ligeiramente.
“Zigue, Zague, Zéphyro”, os índios zombaram quando ele mencionou o seu nome e saltaram em círculos. Luigi olhou melancólico para o céu azul e parecia que simplesmente deixaria os gritos rolarem de si. Sem dúvida, havia algo de carismático nesse homem. Ele sabia que o destino seria favorável a ele e à sua família, que sempre pensara grande, quase em dimensões planetárias.
Os planos elaborados na viagem foram mais uma vez discutidos no conselho familiar e imediatamente realizados, porque os próximos navios com os colonizadores portugueses chegariam e com eles a concorrência. Supermercados com uma gama abrangente de produtos – isso ainda não existia no novo continente, e certamente todos precisavam de alimentos de alta qualidade. A família tinha certeza de que mais colonos com ideias frescas em breve se juntariam a eles. Portanto puseram a aumentar vigorosamente a pequena vantagem e o capital disponível. As capacidades estratégicas e o talento de Luigi para conquistar pessoas levaram o conselho familiar a nomeá-lo como líder.
Luigi construiu com as próprias mãos a primeira filial na atual Avenida Protásio Alves, que na época era apenas um caminho arenoso com algumas palmeiras murchas. Filial após filial foi aberta num curto espaço de tempo. Os mercados destacaram-se pela elevada qualidade dos alimentos, bem como pelos funcionários, que perderam as suas capacidades aritméticas básicas com as caixas registadoras electrónicas, mas que, ao longo das décadas, conseguiram se tornar ainda mais simpáticos. No início, Luigi fazia questão de cumprimentar cada cliente pessoalmente. Até o grupo de índios que se rira dele rendeu-se e passou a comprar cadeiras de praia, chá mate ou os croissants franceses importados, porque eram imbatíveis em preço e qualidade. E ainda hoje o são.
Um dos planos originais de Luigi era que cada residente da nossa cidade indicasse o seu local de residência pela proximidade com uma das filiais – e não, como é habitual, mencionando o nome da rua ou pelo menos um ponto cardeal. Afinal, muitos dos habitantes de Porto Alegre nem sequer ouviram falar da rosa dos ventos, e, portanto, são imediatamente reconhecidos e alvo de zombaria em outras partes do Brasil: “Norte – é onde fica o Zéfiro Wallig e o Zéfiro Boulevard”: é assim que os professores nas escolas primárias do centro da cidade tentam corrigir a desvantagem que têm em relação ao resto do país. E, mesmo assim, os habitantes são invejados – e não só devido aos mercados, nos quais a população local se orienta de forma imediata e intuitiva, mas também, é claro, devido à gama de produtos criteriosamente selecionados.
– “Bem, eu moro perto do Zéfiro Rio Branco”, ouve-se por vezes duas pessoas na cidade se apresentarem uma à outra. – “Não acredito, morei lá como estudante, foram tempos maravilhosos”, responde o interlocutor, “agora moro nas imediações do Zéfiro Bourbon Shopping. Do meu apartamento posso acenar para os ônibus turísticos que fazem o ‘Tour Zéfiro'”. – “Este é um mercado particularmente impressionante, parabéns”. – “Falando nisso, tenho de ir e fazer as compras diárias”. As crianças em fase de descoberta, em particular, pensam frequentemente que o nome de marca Zéfiro é o termo para “aquele que nos alimenta” e não aprendem a palavra “supermercado” até chegarem aos oito ou nove anos. Assim quis o destino que, em cada conversa diária, em cada segundo que se passa em Porto Alegre, o nome fosse transmitido uma centena de vezes aos quatro ventos. Se fizessem uma nuvem de palavras de todas as conversas que ocorrem simultaneamente na capital do estado, a maior e mais proeminente palavra teria de ser sempre a de três sílabas. Brilhante. Porque outros supermercados têm de pagar pela sua publicidade.
Além disso, a densa rede de ramificações Zéfiro, vista da altura de um avião ou do Google Maps, forma o contorno de um esquilo. Bem, um espécime feio e plano, reconhecidamente. Porque este esquilo é também o logotipo, ou digamos animal heráldico do mercado. Um esquilo engraçado que estica o seu polegar para cima, ao estilo brasileiro. Oh, havia mais uma coisa, sim: o irmão de Luigi, Federico, um guri de seis anos, tinha tomado conta desta criatura na viagem de navio em 1772 e alimentou-a com as suas próprias provisões, de modo que ela permaneceu realmente viva até à sua chegada ao continente, apesar do enjoo do mar. Infelizmente, após alguns dias de cuidados, desapareceu das mãos de Federico em circunstâncias inexplicáveis. Dizem que o esquilo foi visto anos mais tarde no Parque da Redenção, onde se prostituía durante a noite, ainda que de forma voluntária. O esquilo foi finalmente imortalizado no logotipo. Tal logotipo era absolutamente necessário, porque seria impossível ter apenas algumas letras escritas nos sacos de plástico.
Do lado de fora, a propósito, as filiais têm cada qual o seu próprio estilo arquitetônico, ainda que todas obedeçam à identidade visual da rede. Um cliente severamente míope ou alguém que tenha colocado os seus óculos no lugar errado reconhecerá a sua loja em todas as circunstâncias. Mas este é apenas o lado mais ou menos visível. Ninguém, para além dos “empregados dourados” que estão vinculados ao sigilo absoluto, sabe, por exemplo, que sistema é utilizado para ligar as filiais individuais dos supermercados num corredor de túneis. Uma espécie de segunda cidade desenvolveu-se sob a cidade, o que é outra razão pela qual a sua parte superior parece estranhamente vazia em alguns dias. Infelizmente, apesar do ambiente de trabalho geralmente harmonioso, já houve casos de funcionários que, num estado de nervosismo, não sabem mais em que filial estão empregados, não conseguem encontrar uma saída e batem com a cabeça numa das paredes – embora isto tenha se tornado cada vez mais raro e, na realidade, uma exceção absoluta nas últimas décadas, desde que a empresa passou a cuidar também da vida privada dos seus empregados. Nem mesmo as camisas podem ser mais reutilizadas, porque ninguém consegue remover as manchas de sangue por completo, e manter-se impecável é um dos principais deveres dos funcionários – um fato que pode ser observado por qualquer pessoa, todos os dias, das 7h às 22h. Um pouco menos nos feriados públicos, mas nesses dias as camisas parecem ainda mais alvas e o pessoal ainda mais paciente com as reclamações – embora estas sejam apenas teóricas.
E assim, ao longo dos anos, os estabelecimentos criados pelo pálido Luigi Zéfiro evoluíram de supermercado para hipermercado, um desenvolvimento comparável apenas à carreira meteórica de outro gaúcho, Ronaldinho. Um craque cuja carreira se baseia provavelmente nos produtos de primeira classe e que deve as suas insanas fintas às ofertas-relâmpago de sua juventude. Assim, toda a nossa região sempre esteve numa trajetória ascendente e, na verdade, é um mistério para as gerações futuras de historiadores a razão pela qual os números da população da capital não explodiram. Provavelmente isso só pode ser explicado pelos invernos frios, quando não são produzidos descendentes devido à falta de lugares para serem frequentados sem roupa. Na melhor das hipóteses, só beijos ainda são possíveis, com o chimarrão quente a deslizar de uma boca para a outra enquanto a terceira pessoa bebe. Acontece que esses beijos aquecem, mas não engravidam, como bem sabemos. De fato, não há nenhum caso conhecido de alguém nascido em abril ou maio em toda a cidade. As exceções, é claro, são prontamente reconhecidas por lei como residentes naturais de outras cidades.
Mas agora, finalmente, chegamos ao lado escuro, porque este texto não é apenas uma canção de louvor – e com isso não me refiro ao túmulo familiar em que Luigi Zéfiro jaz hoje, de olhos fechados, satisfeito e bem climatizado. Nem à hora do dia que se segue ao fantástico pôr-do-sol no Guaíba. Além dos banheiros mais limpos do que qualquer banheiro privado e de um departamento de frutas agradavelmente iluminado, cada uma das filiais do Zéfiro tem, naturalmente, um inconsciente próprio. Por exemplo, por vezes acontecem coisas inacreditáveis, decorrentes de certo automatismo. Todos os funcionários se levantam subitamente, como se estivessem hipnotizados, alinham-se e começam a aplaudir, provavelmente porque estão simplesmente felizes. Ou um empregado na caixa exclama subitamente, como se estivesse falando em línguas: “Isso é zéfiroso!” Uma palavra que, é claro, não existe, mas cuja semântica, que estranhamente todos compreendem, oscila entre o magnífico, o opulento e o imperial. Quando questionados, os funcionários nem sequer sabem por que o fizeram, apenas que se sentiram bem. Para além da felicidade óbvia e constante, aparentemente existe até mesmo uma felicidade libertada espontaneamente e até então reprimida. É que os habitantes da nossa cidade gostam de dar rédea solta aos seus sentimentos. Tais coisas não podem ser explicadas. Mas o que importa, se cada momento é único e as memórias fugidias. E o Zéfiro é um mercado especial na história da nossa grande cidade de duzentos e cinquenta anos.