Um conto de Rute Ferreira
Rute Ferreira nasceu em São Luís e tem formação em teatro e história da arte. É autora dos livros de contos Eu te serviria meu coração com vinho branco (editora voz de mulher) e A estranha mania das abelhas (editora urutau). Publica ficção em seu perfil no medium e fala de história da arte e literatura na newsletter Capítulo Três.
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O Jantar
A toalha quase escorregou pelos dedos quando o rugido do motor que os anunciava preencheu os ouvidos de Leda. A moça terminou de sacudir o pano, milhares de pequenas partículas deixando o tecido e virando um resto de nada, de coisa nenhuma. Estendeu a toalha no varal da sacada, para que o sol fizesse qualquer coisa com ela, e entrou.
— Irmã Leda, trate logo esse peixe que o irmão Francisco vem jantar aqui depois do culto — a voz da tia-patroa e irmã de fé era rápida, um corte — pode fazer cozido mesmo, cozido com caju, ainda tem caju?
— Tem sim — respondeu Leda, a voz baixa, nenhuma novidade, mas pensando consigo “é claro que ainda tem caju, ela não sente o perfume pela casa inteira?”
— Irmã Leda vai fazer o peixe? — perguntou o pastor, e a esposa assentiu, guardando outras sacolas com as compras recentes, deixando sobre a mesa o que Leda ainda usaria, enquanto o homem santo continuava a falar.
— Isso é uma benção, eu já estava sentindo falta do caldinho. Vou ter que chamar irmão Francisco pra jantar mais vezes aqui — e riu, satisfeito com a própria observação e saindo da cozinha sem notar os olhos revirados de Leda.
— Irmã Leda, faça um vinagrete também pra acompanhar, viu? Eu vou tomar um banho e descer já pra igreja, que preciso trocar as flores do púlpito. O irmão Francisco só vem depois do culto, então não esqueça de dar uma arrumadinha na sala.
Assim que a esposa do pastor desceu rumo à igreja, Leda suspirou. O coração da moça já batia descompensado desde a primeira menção ao convidado, não por ele, que beirava os setenta anos e era obcecado por todas as cartas de Paulo. Não, não por ele, mas pelo filho que dirigia seu carro e não lia a Bíblia. Embora presença frequente nos cultos, Gideão não cantava ou tocava na igreja, não sentava no palanque de pregadores, não participava dos encontros de jovens. Parecia um funcionário do irmão Francisco. Dirigia o carro do pai com atenção e falava pouco, e falava menos ainda quando imprensava o corpo de Leda sobre o assento reclinado do carona.
Não eram namorados e ninguém que os visse na igreja, sentados tão distantes e conversando tão pouco, poderia imaginar que eles desfrutavam da carne um do outro. Depois de deixar o pai em casa, Gideão refazia o caminho até a igreja e estacionava o carro antes que o som de sua chegada pudesse ser ouvido. Mas Leda ouvia. E descia nas pontas dos pés, pela lateral da igreja, com uma chave que ela mandara copiar às escondidas. Entrava no carro do irmão Francisco e era recebida por Gideão, primeiro com afogueamento e desespero, até que seu corpo acalmasse dentro dela. Amavam-se sem dizer quase nada, não falavam sobre a igreja, nem sobre o futuro. A conversa pairava em torno da doçura particular que alguns casais emanam depois de fazer amor.
Leda sabia, no entanto, que o pastor não gostaria daquilo. Ouvia o sermão do homem dentro de sua cabeça, as palavras castidade, adultério, fornicação, casamento, todas elas confundidas em seus ouvidos, enquanto o sacerdote entrava nela e sua voz saía, e era amplificada por todos os poros do corpo da moça.
Nos dias em que o pastor despejava seu desejo no corpo de Leda, a esposa sempre estava em algum chá beneficente em prol da família pobre, uma rifa para construção do banheiro, um jantar. Nunca estava em casa, mas Leda sabia que ela sabia. Porque na primeira vez em que o pastor tomou o corpo da jovem, ela viu o desprezo na cara da esposa e sabia que ali havia raiva. Raiva não do adultério, mas do corpo de Leda, tão bonito e inteiro, tão jovem. Os quadris que ainda balançavam à medida que a jovem caminhava, os cabelos que ainda não estavam ralos e prateados, e acima de tudo, o olhar. Os olhos de quem ainda tinha tempo.
Da cozinha da casa pastoral, Leda podia ouvir os hinos e as pregações. Algumas vezes gostaria de ir embora dali. Acreditava em Deus e tudo, mas morar em cima de uma igreja era cansativo. Todos os dias, vozes se uniam em torno de sua cabeça para lembrar da morte, do pecado, do inferno. Quando o hino que marcava a recolha de ofertas foi entoado, Leda começou a levar os pratos, travessas e talheres para a mesa do jantar. Foi dispensada do culto daquela noite, um culto de senhores, culto dos homens casados. Achou bom ter que se ocupar com o jantar enquanto os homens casados louvavam ao deus eternamente viúvo de si mesmo.
Quando ouviu os passos subindo a escada que separava a residência pastoral da igreja, as pernas tremeram e sentiu os dedos gelados. Sempre ficava assim ao saber que ia ver Gideão. O pastor entrou primeiro, ocupando toda a sala de jantar com seu tamanho, sua voz e sua presença. Depois a mulher, pequena e ágil. Em seguida o irmão Francisco, velho e falando da carta de Paulo aos Tessalonicenses. Então o mundo de Leda desabou, porque depois ela viu Gideão entrando de braço dado com uma moça. Ele desviou o olhar quando a viu, puxando a cadeira para a mulher ao seu lado.
— A paz do Senhor, irmã Leda! — cumprimentou o velho, tirando-a do momentâneo torpor.
— É sua filha, pastor? — foi a desconhecida quem perguntou, os olhos atentos, decerto reconhecendo, como uma fêmea ancestral, o cheiro que vivia na barba de Gideão.
— É como se fosse — disse o pastor, o olhar caridoso sobre Leda — filha na fé.
— Essa é a irmã Leda, filha de uma prima minha, morava lá no interior. Ela ajuda nas coisas aqui em casa.
Sentaram-se. O pastor e o irmão Francisco ocupando as cabeceiras da mesa, as duas mulheres de um lado, o casal do lado oposto. Gideão diante de Leda, o olhar baixo, a culpa. “Mas ontem mesmo, ontem mesmo” pensava Leda.
– Meus irmãos, eu agradeço muito por vocês representarem aqui os pais da irmã Clarissa. Agradeço pelo jantar também, e pelos presentes. “Eu fiz o jantar pra ela”, o olhar endurecendo de repente.
– Meu filho Gideão e Clarissa com certeza terão as bençãos do Senhor derramadas sobre suas vidas. Que esse jantar de noivado seja também abençoado por Deus. “Jantar de noivado. Noivo”, e o coração se partindo mais uma vez.
As conversas começaram, misturadas ao cheiro do peixe. O azedo do vinagrete no coração da própria Leda.
— O casamento também é um chamado, um ministério — disse o pastor, encarando a esposa. Tão amoroso o pastor, tão caridosa sua esposa. As mãos, no entanto, alcançariam ali mesmo os seios de Leda, se pudessem. O irmão Francisco concordava, era viúvo, e seu olhar abocanhava o colo, os ombros à mostra da única mulher solteira à mesa. Não gostava tanto assim do pecado, o irmão Francisco.
Leda ouviu a esposa do pastor receber salves e vivas pelo peixe, mas não se importou. O que queria ouvir era a voz de Gideão, mas ele estava mais calado do que nunca. Coube então ao pastor terminar de mastigar o coração de Leda, ao dizer:
— Eu estou mesmo muito feliz com essa notícia. A Bíblia diz que não é bom que um homem esteja só. Irmã Clarissa vai cuidar muito bem do senhor, meu amado. E não se esqueçam do mandamento, crescer e multiplicar! — disse essa última parte rindo, satisfeito consigo.
— A irmã Clarissa vai passar a congregar conosco? — quis saber a esposa do pastor, sorridente. Simpática. Quase doce.
— Eu e Gideão estamos vendo isso. Minha igreja também é muito querida, e recomeçar em outra congregação é sempre difícil.
— Sim — interrompeu o pastor — mas é a vontade de Deus que o marido e a esposa fiquem juntos. E o irmão Gideão vai tomar a melhor decisão, que espero que seja que vocês fiquem conosco.
Gideão permanecia calado, como Leda. Os pensamentos de ambos no mesmo lugar, dentro do carro, ontem mesmo. Ontem mesmo, quando ele disse que a amava. Ele nunca tinha dito isso, ela nunca precisou ouvir. Mas ontem mesmo ele disse “eu te amo” enquanto se perdia no colo e nos ombros de Leda, no pescoço eternamente cheirando a sabonete barato, nas carnes macias e firmes de sua bunda e pernas. Ele a amava ontem, ontem mesmo.
— O irmão Gideão está tão calado — observou a esposa do pastor, tirando uma espinha do dente com a língua.
— Silêncio é sinal de muita sabedoria — emendou o pastor, e a conversa recomeçou, dessa vez sobre a sabedoria do apóstolo Paulo e sua escolha em permanecer solteiro. A mente de Leda, longe de Paulo e de suas escolhas, vagava pela pergunta mais antiga que o mundo: “por quê?”
Se ele a amava — e ontem ele tinha dito, expressamente, tinha dito que a amava — por que se casar com essa moça? Se ele a amava não teria mais sentido casar-se com ela? Leda não entendia, mas nunca falaram mesmo sobre o futuro. Ele nunca prometeu nada, ela se lembrou. Até ontem, pelo menos. Ontem prometeu, quando pediu que ela deixasse, só uma vez, não faria mal.
— Eu compro a pílula pra você. Por favor — a voz suplicada. Ele implorava — me deixa gozar dentro, meu amor.
Ele nunca tinha chamado Leda de amor, quanto mais de meu amor. Ela sorriu e ele entendeu como uma deixa. Acelerou os movimentos dos quadris sobre ela, como dava, ali dentro do carro e gozou. Enquanto gozava, o som:
– Eu te amo, Leda.
E as lágrimas inundaram o rosto da moça.
— Leda? — repetiu a esposa do pastor, um sorriso amarelo ao perceber a distância que havia entre elas — como tá distraída, menina!
— Deve estar pensando no próprio casamento também — comentou o irmão Francisco, sorrindo, uma cebolinha do vinagrete grudada em seu dente.
O pastor se remexeu na cadeira e a esposa notou. “Melhor em casa que as da rua”, se conformava ao pensar. Então respondeu:
— Acho que Leda tem a vocação do apóstolo Paulo. Minha filha, traga o pudim da sobremesa pra nós, por favor. O que eu fiz hoje. Está na geladeira.
Leda saiu em direção a cozinha, o olhar culpado de Gideão seguindo seu corpo, seu rastro. A moça desembalou o pudim da embalagem do mercado — nada ali era feito pela esposa — e o transferiu para uma travessa de vidro. Abriu a gaveta de talheres para pegar as colheres de sobremesa e então se lembrou. Ele estava ali, duas portas depois daquela gaveta. Estava ainda cheio porque a infestação de ratos na igreja tinha sido controlada. Despejou o conteúdo negro na garrafa de café e saiu com a bandeja, de volta à sala de estar, onde todos estavam prontos para elogiar o pudim da esposa do pastor.
Rafael
Rute é uma força da natureza como escritora. Sou um grande admirador. O jantar já é agora um dos meus favoritos.