Um conto de Ságila Farhat
Ságila Farhat. “Nascida em Rio Branco, passei a morar em São Paulo desde os sete anos. Hoje, 28 anos, sou psicóloga e uma estudante de psicanálise atravessada incessantemente pelo desejo de escrever. Costumo dizer que a escrita sempre esteve presente na minha vida, mesmo quando me contentava em rabiscar ou escrever poemas em folhas de papel sulfite para ler em voz alta. Os poemas foram os meus primeiros escritos. Somente no ano de 2020 que escrevi o meu primeiro conto intitulado Igarapé do Norte e da Borracha, texto pelo qual nutro grande estima por retratar, direta ou indiretamente, aspectos que me constituem, sendo parte de minha história.
Escrever, para mim, é quase como uma revelação, um espanto. Simplesmente escrevo, reviso diversas vezes, mudo o enredo, vou seguindo um movimento próprio. Ser escritora recai um pouco nisso: ser atravessada e se deixar atravessar.”
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O pé de manga
Na rua Quinze de Novembro havia uma família com duas filhas: Antônia e Clarice. A mais velha, Antônia, todo dia quando acordava a primeira coisa que fazia era sair de casa e ir a pé até uma árvore no quintal ao lado para ver se havia dado manga. Todo mundo dizia que aquela árvore era a mais antiga da região e que, antigamente, tinha o pé de manga mais bonito. Os boatos eram que há muito tempo a terra foi povoada por uma tribo que cultivava mangas para cura de todos os males, desde uma dor barriga até para infecções de qualquer espécie. Bastava dar uma mordida, no máximo duas e pronto, a doença ia embora. Cada parte da terra tinha lá as suas crenças de modo que o povoado da região vivia em harmonia. A medicina tradicional já existia ali, mas como era uma região afastada, os médicos não gostavam muito de ir para aqueles arredores, então os curandeiros faziam festa. E era justamente daquela árvore que tiravam as mangas para os rituais. Que o casal mais antigo vivo, o seu Paulo e a Dona Jussara, já haviam contado uma vez a história daquela árvore, que antigamente nascia dela várias mangas, de uma doçura que dava inveja, a mangueira existia há mais de duzentos anos e, de repente, por alguma razão que ninguém sabia, parou de dar frutos. Simplesmente cansou. Tudo está à mercê do tempo, minha filha. Nada escapa. O que fica são as histórias de mil anos que caem de boca em boca, Jussara dizia à menina. O casal lembrava do último dia em que comeu uma manga: era quinze de novembro, por isso a população local depois de muito custo conseguiu prestar uma homenagem ao pé de manga. Mesmo assim, Antônia insistia no feito, achava que a árvore estava só esperando o momento certo. Ou a companhia certa. Diariamente continuava a fazer o mesmo caminho, acreditando que um milagre aconteceria bem ali na sua frente. E ela seria a escolhida.
Aconteceu que depois de meses, a árvore se tornou seu melhor amigo. O chamou de Cau, nome de um falecido tio que a mãe lembrava sempre com muito carinho. O único escritor da família, mas não havia publicado nenhum livro. Deixava todos os escritos engavetados, romances que escrevia desde dos treze anos. Ela dizia que ele era de falar pouco, ouvia mais as conversas das suas irmãs e da mãe. Quando falava, sempre era em tom baixo e calmo. Carregava o semblante sempre triste, como se vivesse na esperança de que algo acontecesse, passava a maior parte do tempo dentro do escritório escrevendo. Isso quando não ficava o dia inteiro na biblioteca no centro da cidade. Trabalhava num jornal escrevendo notícias; ás vezes escrevia crônicas para alguma editora, o sustento de quem vivia sozinho a maior parte do tempo. Não casou, não teve filhos. Teve algumas namoradas, mas nada muito sério. A mãe fala que no fundo o que ele mais queria era ser pai. Mas morreu antes de ter tal sorte. Um infarto fulminante, assim tão de repente. A menina lembrava do tio chamando ela e a irmã para dar uma volta no parque na rua da frente. Ele carregava sempre um livro para ler enquanto as duas brincavam, quando se cansava ia brincar com elas, corria, corria, e quando se cansava voltava a sentar e lia novamente. Geralmente, o passeio era uma vez semana, aos sábados no final da tarde. Foi o primeiro nome que lhe veio à cabeça, Antônia às vezes deitava nas raízes e se punha a contar alguma história que aconteceu em casa, outras vezes falava das brigas com a irmã, às vezes respondia o que, supostamente, em silêncio, gostaria de dizer. Até lhe contou da vez que escondeu a boneca preferida da irmã porque achava que Clarice preferia brincar mais com a boneca do que com ela. Tinha vezes que começava a rir sozinha da própria história, “meu deus do céu, Cau, quero só ver se vou ter tanta coisa para contar quando eu for embora pra cidade” – e dava risada. Quem visse de longe a cena de uma garota de dez anos rindo sozinha, sentada ao lado de uma árvore, diria que parecia uma encenação. Às vezes ficava triste porque achava que Cau, por não ter frutos, ignorava a sua companhia ou não queria conversa. Que fosse em casa, ou na rua, sempre sentia vontade de estar perto da árvore. A achava a mais bonita do lugar. Acordava sempre alegre na esperança do encontro que durava horas, a mãe tinha que chamar várias vezes para comer porque senão esquecia, não tinha fome. Acontece que depois de algumas semanas na romaria diária, Antônia ficou triste. Percebeu que durante todo aquele tempo não havia uma manga sequer. Percebeu que os troncos, antes mais esverdeados pelas folhas, estavam mais secos. O caule estava mais desgastado que das outras vezes. O solo parecia mais alaranjado que antes. Continuou visitando o velho amigo, mas com os passos mais lentos.
Se antes o silêncio de Cau não a incomodava, agora era diferente. Já não era o silêncio da falta de resposta que lhe entristecia, era o incômodo de que o silêncio já revelava o que ela não queria acreditar. O não que ela tanto temia. Como qualquer criança, entregue a qualquer outra coisa que visse grandiosa ou o que quer que fosse, não queria ver o não tão de perto. Tinha dias que o achava uma má pessoa, sentia raiva dele. Mas logo em seguida se arrependia, falando que era seu melhor amigo e pedia desculpas, lhe dava um abraço e lhe beijava o tronco. Mas nesse dia, estava diferente.
Um mistério que Antônia ainda não conseguia entender. Não conseguia saber o porquê não via uma manga sequer daquela árvore. Uma vez sonhou que, deitada ali, sentia uma manga bater em sua cabeça, o corpo assustava e ela ficava sorrindo de felicidade. Mas acordou. Ah! Foi só um sonho!
E que ela aos poucos depois de alguns dias, vendo que fatalmente não teria seu desejo atendido, chorou pela primeira vez.
No dia seguinte, ia embora para a cidade e sabia que não ia mais retornar. Sabia que não haveria mais horas despendidas pela manhã, nem risadas, nem histórias, nem abraços. No último dia, ficou também em silêncio. Um silêncio de solidariedade.
Observou que ao redor as outras árvores, embora mais finas e mais secas, também embelezavam aquela região, mesmo sem nenhuma outra criança que lhes fizesse companhia. E nelas vez nascia frutos, laranjas, acerolas, goiabas. Não importava se Cau era a mais vistosa ou chamasse mais a atenção pelo seu tamanho, ficou feliz por ter visto pela primeira vez outras tantas.
Foi então que entendeu que Cau não deixaria de ser seu amigo, embora não o fosse ver mais. As coisas mais difíceis de entender, principalmente, para uma criança, é que há alguns momentos em que não teremos de mão cheia a infinita descoberta do mundo. E que às vezes é necessário ter mais esperas e silêncios. Era o último dia que estariam juntos, ela sem contar mais nenhuma história, a árvore sem dar nenhum fruto. Cau, será que você vai se esquecer de mim? Decidiu pegar uma pedrinha que tinha perto e cravou no caule a inicial do seu nome. Pronto Cau, não vai me esquecer. Vou levar uma folhinha, está bem?
Espero que não fique triste, Cau.
Ela ficou parada por alguns instantes ainda olhando para a árvore, sorriu, enxugando a última lágrima. Pensou que logo outra criança iria lhe fazer companhia, continuaria a ver sua beleza mesmo que o corpo não fosse o mesmo de duzentos anos atrás. Outras histórias a serem compartilhadas. Outros silêncios.
Antônia se despediu de Cau. Sabia que nunca o esqueceria. E o tempo, talvez a árvore desse alguma manga, com outra criança quem sabe. Ou talvez ficaria desse jeito, sem nenhum fruto, até o fim.
O mistério que é viver.