Um conto de Thiago Barrozo
Thiago Barrozo nasceu em São Paulo, em 1986. É autor do romance policial “O Homem que Explodiu o Presidente”, lançado em 2022 pela Editora Flyve. Formado em jornalismo, conta com publicações em diversos veículos nacionais e internacionais, incluindo Financial Times, Forbes, Mergermarket, O Globo, BandNews e Revista Brasileiros.
Instagram: @dothiagobarrozo
E-mail: thiagobarrozo319@gmail.com
Um Morto Consciente
Lázaro do Nascimento não acreditava na ressurreição da carne. Imaginava que depois de morto fosse despertar num lugar diferente. Uma fortaleza de luz acima das nuvens ou um campo verdejante com espíritos de túnica branca perambulando pra lá e pra cá. Conseguia até imaginar um purgatório escuro, à la Dante, repleto de almas aflitas trocando cotoveladas. O que não imaginava em hipótese alguma é que depois de morto, às vésperas de completar 53 anos, acordaria pontualmente às sete horas da manhã e desligaria o despertador em cima da mesinha de cabeceira.
Foi em frente ao espelho do banheiro que Lázaro descobriu que estava morto. Os lábios pareciam mais pálidos que o normal; as bochechas continuavam enormes, flácidas, mas não tinham mais o frescor de antes; os olhos, opacos e rígidos, já eram de defunto. Lázaro respirou fundo e largou a gilete e o creme de barbear em cima da pia, desistiu de fazer a barba. Já estava morto mesmo. Além disso, os poucos pelos brancos no queixo e nas costeletas lhe davam um ar de homem vivido, por mais paradoxal que seja. Apagou a luz do banheiro e voltou ao quarto. Sentou-se no pé da cama.
Apesar do susto, não podia reclamar. Morreu sem sentir um pingo de dor. Bateu as botas dormindo, o sonho da maioria das pessoas, só lhe custava acreditar que fosse possível acordar morto. Isso é o que o deixava mais intrigado. Pegou o celular e telefonou para a secretária. Não iria trabalhar hoje. Nem morto. Explicou que estava com dor de barriga e não deu mais detalhes. Se arrependeu assim que desligou, imaginando as piadas que o sócio faria por causa da sua “diarreia fatal”. Paciência. Agora Inês é morta – e ele também…
Geralmente acordava morto de fome, preparava um omelete de presunto e queijo, e batia uma vitamina de goiaba. Hoje, no entanto, acordou morto e sem fome. Desceu até a sala, sentou-se no sofá e ligou a televisão. Queria ver as notícias no dia da sua morte. Acompanhou dois casos de homicídio e o estupro de uma senhora de 82 anos com Alzheimer. Achou melhor desligar a tevê e pensar na vida. Uma coisa em particular o preocupava: ele ainda não tinha onde cair morto. Literalmente.
Pegou mais uma vez o celular e telefonou para o melhor amigo. Disse que era uma emergência. Primeiro, falou que não estava bem; depois, voltou atrás e disse que na verdade estava até que muito bem. Por fim, concluiu que não sentia nada e por isso não sabia se estava, ou não, se sentindo bem. O amigo achou estranho, prometeu chegar em menos de cinco minutos.
Lázaro aproveitou o meio-tempo e foi trocar de roupa. Tirou o pijama de flanela e despejou um frasco inteiro de Carolina Herrera pelo corpo. Borrifou o perfume em todas as células que encontrou pela frente. Nos orifícios também. Sem exceção. Não queria feder igual a um peixe podre quando começasse a se decompor. Vestiu uma camisa de algodão egípcio e uma calça de linho creme. Roupas leves e largas para esconder o corpo mole e avantajado.
Passou um cafezinho e contou ao amigo tim-tim por tim-tim o que havia acontecido. Falou com calma, escolhendo cuidadosamente as palavras. Pediu ao melhor amigo que não tivesse medo e fez questão de ressaltar que era um morto bonzinho: nunca puxou, nem nunca pretendia puxar o pé de ninguém. Só queria um lugar calmo e confortável para descansar. Um refúgio silencioso à sete palmos do chão. Antes, porém, precisaria comprar duas coisas: um jazigo e um caixão. Mais tarde cuidaria do epitáfio e da coroa de flores. Planejava um velório simples, sem muitas pessoas. Só os mais chegados. Por isso havia chamado o amigo. Precisava de ajuda para organizar os últimos detalhes da sua despedida.
Lázaro não provou o café. Lavou a louça para não pensarem que era um defunto folgado e subiu com o amigo até o escritório. Deletou alguns arquivos no computador e pegou uma pilha de boletos em cima da mesa. Conta de luz, de água, da NET, da Cruz Vermelha… juntou todos os boletos e rasgou um por um, deliciosamente. Nasceu e morreu órfão; não tinha filhos nem herança para deixar. Ninguém seria prejudicado, a não ser o próprio sistema. Foi o ápice de emoção em todo seu pós-vida.
O trânsito, como sempre, estava de matar. Lázaro e o amigo levaram uma hora e meia para chegar ao Cemitério da Vila Formosa. O maior da América Latina. Mais de 780 mil metros quadrados e 1,5 milhão de pessoas enterradas. Com certeza encontraria um espaço ali para chamar de seu. De preferência, debaixo de um limoeiro ou outra árvore frutífera qualquer. Morreu com oito notas de cem para convencer o coveiro e dois funcionários da administração a arrumarem um jazigo que não ficasse no meio de um barranco. Apesar de neófito no mundo dos mortos, logo compreendeu que nada, nem mesmo a morte, é capaz de escapar da burocracia e da corrupção. Se contentou com um jazigo largo, perto de um pé de arruda murcho.
Escolher o caixão foi ainda mais difícil. Primeiro, porque Lázaro não fazia a menor ideia de que caixão e urna mortuária pudessem ser coisas distintas. Segundo, porque existem milhares de modelos de caixão, a depender do detalhe: tipo de madeira, acabamento, pintura… Passou quase duas horas examinando e testando a futura casa. Deitou-se em pelo menos trinta caixões. O gerente fez questão de deixá-lo à vontade, explicou os prós e contras de cada modelo, e voltou a mexer no computador. Por fim, tirando a exigência de tampo antirruído e madeira antimofo, baseou a escolha num pôster colorido que viu na entrada da funerária. O homem da foto, um morto quase tão gordo e calvo quanto ele, parecia incrivelmente à vontade num Morpheus MZX-L42 Plus Size. Sorria e esticava o polegar roliço para fora do caixão.
A grande sacada mesmo veio com a almofadinha para os pés. Vira e mexe sentia uma dor aguda no calcanhar esquerdo, como se alguém enfiasse uma agulha de costura bem na curva do pé. As pontadas ficavam ainda piores quando dormia de barriga para cima – ou seja, que nem defunto. Era assim desde a adolescência. O osso do calcanhar cresceu mais rápido que o resto do corpo. Esporão do calcâneo. O problema é que agora não tinha escolha. Teria de dormir nessa posição para sempre. Achou melhor se prevenir e comprar uma almofadinha de veludo. Se não estivesse morto, teria ficado orgulhoso de si mesmo.
Missão cumprida. Não seria mais enterrado como indigente. Tinha um caixão antimofo, um jazigo perto de um pé de arruda, e uma almofadinha de veludo para amortecer o calcanhar. Lázaro agradeceu ao amigo pela paciência. Aquilo, sim, era prova de amizade. Se um dia ressuscitasse ou nascesse de novo, morreria por ele se fosse necessário. O amigo retribuiu o carinho e se despediu com um abraço apertado: Até breve! Quer dizer, melhor não!
Assim que o amigo partiu, Lázaro checou as horas no relógio de pulso. Precisava fazer alguma coisa para matar o tempo. Pensou em telefonar para a terceira ex-mulher, a única com quem ainda matinha o mínimo de civilidade, mas isso daria um trevo na cabeça dela. Principalmente quando descobrisse que ele estava morto. Melhor não… Pensou então em aproveitar o pós-vida, as horas que, sabe-se lá por quê, ainda tinha de lambuja: encher a cara, ir a um puteiro, xingar as pessoas que jogam bituca na calçada, atear fogo na casa do sócio. Mas nada disso fazia sentido. Estava morto e morto que é morto não faz esse tipo de coisa. Além do mais, estava desanimado. Não gostou de nenhuma ideia. Seu cérebro já tinha ido pro beleléu. Pelo menos uma parte do seu corpo havia alcançado o descanso eterno. Passou a mão no queixo e decidiu ir para casa. Os tornozelos estavam ficando rígidos. As panturrilhas também. Logo mais seriam as coxas e o resto do corpo. A morte estava lhe pegando pelas pernas.
Encostou no ponto de ônibus ao lado da funerária e chamou um Uber. Três minutos de distância. O suficiente para fingir de se fingir de morto e ignorar o senhor manco e albino que lhe perguntou as horas. Não queria ser mal-educado com o velho, ainda mais um velho manquitola, cor de algodão doce, mas cadáver que se preza não desperdiça saliva à toa. Só quando é inevitável. Resistiu à tentação; não disse um “a”, nem mesmo quando o velho repetiu a pergunta. Silêncio de defunto. Soltou o relógio de couro do pulso direito e entregou ao velho antes de entrar no carro.
Chegou em casa duas horas depois. Se não estivesse morto, cometeria haraquiri ali mesmo, na cozinha, com a faca de cortar legumes. Não conseguia pensar em nada mais insuportável que o trânsito, a forma mais lenta e eficiente de matar alguém. Foi até a sala e deixou o corpo moribundo tombar no sofá. Estava morto de cansaço. Ligou a televisão.
Assistiu a um misto de assalto-homicídio-estupro-e-perseguição policial e um trechinho da novela das seis. Novela de época. Começo do século XX. As mulheres de chapéu, luva e sombrinha; os homens de terno e bigode fino. Não aguentou nem trinta minutos na frente da tevê. Finalmente havia descoberto algo tão insuportável quanto o trânsito. Desligou a televisão e foi até o escritório. Tinha esquecido do epitáfio. Bolaria alguma coisa e deixaria a frase escrita num bilhete no bolso da calça. Não era nenhum Washington Olivetto, mas, às vezes, tinha umas tiradas boas.
Não foi o caso dessa vez.
Pesquisou na internet e descobriu um site maravilhoso: www.epitafio.com.br. Primeiro lugar no Google. Recorreria ao plágio. Que o outro morto o processasse se não gostasse da ideia. Ficou entre duas mensagens: Assassinado por imbecis de ambos os sexos, que Nelson Rodrigues planejou para a própria lápide, e Eu avisei que estava doente, que um tal de William H. Hahn deixou gravado no mármore em cima da sua sepultura. Escolheu a segunda opção.
Agora, precisava escolher o traje de despedida. Abriu o guarda-roupa e tirou um terno de gabardine preto do cabide. Pegou a camisa branca pendurada ao lado e uma gravata vermelho marsala na primeira gaveta. Tomou outro banho de Carolina Herrera e se vestiu. Achou melhor adiantar o processo. Não queria dar trabalho a quem viesse encontrá-lo inerte na cama. Foi para a frente do espelho e admirou por alguns segundos o reflexo redondo e elegante que lhe examinava de volta. Sim. Tinha se transformado num belo presunto…
Trocou o espelho do guarda-roupa pelo espelhinho do banheiro. Observou o rosto pela última vez: os pelos rebeldes no queixo, as olheiras arroxeadas, o olhar de peixe morto. Estava longe de ser uma obra de Michelangelo, mas também não era a figura deformada do quadro pendurado perto da janela do quarto – “O Grito”, de Edvard Munch. A bem da verdade, foi dono de um rosto neutro e assumidamente bochechudo. Poderia ter sido melhor? Claro que sim. Mas também poderia ter sido pior. Pegou o copo de vidro em cima da pia e abriu a torneira até encher dois dedos de água. Puxou o vidrinho do gabinete e pegou o frasco de Rivotril na última prateleira. Derramou quinze gotas no copo e então se deu conta: não precisava mais disso. Esvaziou o copo na pia, guardou o remédio no lugar e apagou a luz do banheiro. Deitou na cama e deu um longo suspiro. Fechou os olhos. Se tudo desse certo, amanhã de manhã acordaria morto[*].
[*]A Síndrome de Cotard é um transtorno psíquico sério. Se você morreu, ou acha que está morto, procure um psiquiatra.