Um conto de Ulysses Han
“Eu sou Ulysses Han, mas o que sou não é o que esse nome retrata como uma fotografia revelada em um processo químico num quarto escuro. Han é uma parte de um Handré “escultor” de personagens teatrais. Ulysses, de James Joyce, foi o livro que me tornou homem, aos 20 anos, antes mesmo de conhecer outros processos químicos possíveis quando não se está sozinho. Tempos depois, em uma noite num quarto escuro, abri a porta e saí outro, deveras, para um mundo meio real, meio imaginário. Não suportaria viver num mundo feito de homens brutais. No teatro, ouvi que a atuação shakespeariana não era a que eu estava propondo, então comecei a encenar os meus textos. Ulysses Han é esse outro, porque não sou suficiente para ser eu mesmo sem um pouco de ficção”.
O conto abaixo integra o livro Delicada rachadura no osso (2022, Editora Patuá).
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esperma e outras maneiras de destruir um homem
sentado numa cadeira diante de Teodoro, aquele momento pleno deixou de ser, tornando-se quase Cada segundo de vida tão cru como a carne esfolada assentava-se sossegadamente camada após camada, ocultando entre os vincos um desespero debruçado em pedaços sobre toda uma felicidade esmagada Ali eu permaneci entre um estado de redenção e à beira de um suicídio, constatando nas pontas dos dedos o impulso do ato de escrever vazando, latejante, luminoso; como quem procura guardar, por achar mais significativas, as lembranças e não o fato bruto vivenciado Em pensamento, as minhas palavras agrupavam-se em frases mais honestas à descrição daquele quase instante de alguma coisa, desembocando simultaneamente numa trincheira e eu não sabendo quais gestos e intenções usar naquela ocasião avessa às minhas expectativas
a minha língua contraía-se conforme um segundo fenômeno sobrepunha-se ao primeiro O primeiro escorreu como lava lentamente rebentada na superfície, o segundo foi uma escolha minha, nasceu edificante, mantendo-me vivo, embora estivesse sendo levado em meio às palavras escorrendo e deslizando e ardendo e uma vontade de gritar ou mesmo sair correndo calado derrubando tudo que encontrasse pelo caminho
as palavras de Teodoro foram pronunciadas em febre como quando sua língua me beijava No caso das palavras, a brutalidade possuía uma delicadeza implícita, porém vergonhosa Como alguém poderia ferir com tamanha beleza? seria mais honrável agir às pressas; sem esforço algum, ele atingiria o meu pescoço, que estava próximo à faca, considerando que esta estava próxima à mão dele
nessa manhã, não sei por que, acordei com vontade de sorrir Levantei guardando toda essa vontade para depois, não queria rir sozinho, sem motivo Por fim, sozinho e sem motivo permaneci diante dele As janelas estavam abertas, um vento morno descompassadamente encrespava os pelos Do mundo o sol começava a vazar de canto a canto ali dentro Algumas manchas nas paredes eram mais visíveis a essa hora da manhã; lembravam umidade, uma pele embolorada Não, não era umidade, devia ser algum sangue mal lavado Não! era o meu coração morto afundando O que eu estava fazendo ali parado? não sei Meu corpo carregava vestígios de um homem quando é acariciado Não Esse homem não estava mais ali Definitivamente não estava
mesmo com uma dor sufocando minhas intenções mais vivas e espaçosas fui tomado desprevenidamente por um ímpeto de reconstituir um estado temporário de felicidade para uma manhã como a que eu esperava, porque estava preparado para um dia assim Nada fiz Desisti no exato momento em que essa ideia em meus pensamentos começava, cheia de propósitos, a invadir os meus impulsos, os meus gestos Uma felicidade inventada, arrancada às pressas da imaginação, diminuiria o tamanho daquela dor e tudo já estava tão pequeno e estreito ou mesmo sem tamanho naquele lugar em que eu me encontrava quando a realidade à minha volta foi perdendo seu aspecto imponente e duro, ficando baça, frágil e desintegrada após o esforço de um pensamento por desejá-la inteira
tudo estava girando, girando vertiginosamente me afogando numa náusea desalentada e necessária por ser a única coisa a me avisar de que eu continuava vivo Vivo e rodopiando como num carrossel de criaturas medrosas e assustadas que não conseguem sentir o vento contra o rosto, senão o vômito subindo a cada giro que gira enquanto as coisas vão despencando na tentativa de se manterem em pé
por um instante, pensei em beijá-lo com uma fúria muda, deixando-o sufocado e indefeso como se eu estivesse ali para matá-lo em vez de amá-lo Rapidamente rasgaria toda a sua roupa e como um bicho selvagem o deixaria estuporado até as vísceras Levantaria como se nada tivesse acontecido e atravessaria, com uma serenidade simulada, todo o corredor, depois sairia pela porta sem olhar para trás Esse foi o meu mais tolo pensamento Não consegui me mover Ouvi todo o seu discurso, sem interrompê-lo
de alguma maneira, sabia que estava me afastando dele, aos meus modos mais perniciosos, com a mesma despreocupação com que aguardava o dia de minha morte A concepção de quem eu era não estava mais ali comigo, havia sido arremessada ao longe com um impulso assustadoramente langoroso, e mesmo tão leve e duvidosa sobre o que era conseguiu alcançar uma distância necessária para se manter viva
conforme, feito um pedaço de carne, afastava-me nascia uma alegria em algum lugar, sim, estava sendo mais forte que ele Esse assomo foi inesperado! não me permiti esse prazer imaginando que essa alegria seria breve, esvaindo-se naturalmente deixando-me mais frágil diante dele
imaginei tantas vezes essa despedida! Teodoro não estava preparado para um momento como esse Ele nunca acreditou que isso, um dia, aconteceria Eu sempre soube! quando a sua língua cuspia palavras contorcendo-se violentamente, eu me aproximava do impulso necessário à despedida Por uma quantidade incontável de vezes eu havia acreditado ser a última vez, mas nesse último dia dos nossos promissores e também conturbados anos de relacionamento eu não senti esse fim, ele naturalmente aconteceu, deixando-me temporariamente morto, com o meu rosto olhando para o meu verdadeiro rosto chocado contra uma rocha por vergonha de não admitir um sorriso ali deformado
a mesa estava igual, como todos os dias, a não ser por um detalhe ou outro que não a impediu de estar igual como todos os dias Talvez a própria tortura dos dias iguais tenha me levado a um estado camuflado cujo interior possuía vestígios de um tumor em processo de expansão Em seus gestos eu vi os primeiros segundos do fim caindo um após o outro como resquícios de uma coisa suja e grudenta escarrada depois de um grito berrado em vão Eu deveria ter falado quanto estava satisfeito com o nosso respeitável modo de convivência, mantendo-o distraído, talvez ele tivesse desistido de colocar à mesa qualquer fato em lento, porém convicto, processo de putrefação
alguma coisa havia se enroscado à minha garganta, do tamanho de uma palavra pesada lançada só com a intenção de quebrar os dentes ou talvez fosse a lembrança de um pedaço qualquer mal mastigado e engolido no susto Tentei engolir misturando a saliva ao azedo das primeiras horas da manhã
nada disso foi percebido por Teodoro
o agora apresentava-se como um instante de despedida me empurrando para um lado qualquer longe dali Atordoado com os fatos, agarrei-me a um frágil pensamento acuado quase aos pedaços “submerso como uma criatura aquática antes da morte, lentamente emerjo à superfície, unindo-me definitivamente ao corpo do oceano” Continuei me agarrando a outros pensamentos aleatórios, sem sentido algum, e que sentido havia nisso tudo senão me manter incorpóreo, e brutalmente vivo?
parti, levando comigo aquela minha vontade de sorrir
do lado de fora, no lugar dos organismos luminosos, a vida, as coisas flutuantes vivas, as coisas rastejantes vivas Sim, a vida A vida A respiração Eu, uma coisa viva A vida O mundo A respiração das criaturas viva
longe dele, pensava em formas prováveis e improváveis de um reencontro Eram pensamentos vazios de vontade Não havia ali intenção alguma de justificar o arrependimento Não queria reencontrá-lo
baba escorrendo pelo pescoço estava entre outras coisas pegajosas espalhadas sobre o meu corpo Se voltasse, seria a minha vez de destruí-lo, sutilmente à minha maneira, com atitudes elegantes de quem não percebe as substâncias tóxicas ao redor do corpo apodrecendo toda a carne
os anos foram passando e vez ou outra voltava a pensar num reencontro como bons amigos; imediatamente me lembrava daquele dia, dos gritos e dos beijos e os beijos eram tão violentos como a sua fúria, causando-me uma dúvida sobre eu ter sido amado ou apenas o meio de sobrevivência de um homem perturbado Consequentemente, desistia, não pensando mais nessa hipótese durante meses e até anos Dez anos depois, eu continuava, de certo modo, à espera dele Ele saberia como me encontrar se assim o quisesse Decididamente, eu não tomaria essa atitude Por um lado mantinha uma vontade em revê-lo, por outro, uma certeza em não perdoá-lo
os anos continuaram apressados e sem esforço algum trouxeram algumas décadas longe de Teodoro Como ele está? o que anda fazendo? com quem? nenhuma dessas inquietações perturbava a minha memória, a não ser uma pergunta, ou talvez uma simples dúvida que surge espontaneamente sem a necessidade de uma resposta “ele está sentindo a minha falta?”; de qualquer maneira, nada mais tinha importância àquela altura Alguns outros anos vieram me trazendo uma velhice imprópria Já não era mais possível sobreviver à espera da morte sem alguém ao lado Talvez sim Tudo era passado e um pouco de mim se confundia com a minha memória
o que mais haveria para ser relembrado? relembrar que vivi, sozinho Frequentei os mesmos lugares de quando nos amávamos Nada mais para ser relembrado Algo faltava a ser vivido Num dia, quando acordei, vagando em meus pensamentos estava o lugar em que eu sempre quis estar com ele Na época nunca soubemos quando Segui convictamente rumo ao parque Ele estava lá, como havia previsto; esperando-me, imagino eu Onde quer que estejamos esperando, essa incontestavelmente será a nossa mais nobre função
senti um engasgo surgindo delicadamente, quase uma lembrança daquele outro ocorrido naquele ano de 1834 A mão dele estava posta sobre a minha Seu olhar era de uma tristeza incomum e impressionantemente carregado de uma luminescência pronta para rebentar no espaço onde só eu ali coubesse Entre um assombro e outro, sob o sufoco de um rancor, ele balbuciou algumas palavras não respeitando a lógica de construção de uma frase coesa como quem tenta dizer que havia ficado me esperando para o jantar Na verdade, quando tento reconstruir a cena, me recordo de ter ouvido ele me chamar de um jeito que me faz entender que eu era alguém por quem se procura por toda uma vida, depois disso disse ter feito o jantar de que eu tanto gostava
também disse que o Giácomo tinha nos visitado na nossa década de união e eu não estava lá, tinha partido alguns dias antes em uma breve viagem, confessando que estávamos bem e felizes Foi o que ele me disse ou o que eu precisava acreditar naquele momento Diante dele, senti uma náusea atroz capaz de fazer um enforcado se arrepender do ato suicida naquele instante bruto antecedendo a morte
a mão dele me acariciava ou talvez estivesse tremendo Eu ainda o amava Ele apertou um pouco mais a minha mão e se aproximou Não me lembro o que houve de um momento para o outro, entre o arrependimento e o beijo
sim, ele havia me beijado
os seus lábios flácidos lambiam-me apaziguando o clamor de um homem desesperado que finalmente encontrou um sentido para a sua vida Não A morte Sim, a morte Foi quando ouvi uns grasnidos perturbadores de uns abutres famintos sobrevoando o descampado Sim, a morte Lá embaixo pude ver, num cortejo, um morto sendo levado até a cova A morte O fim Essa imagem foi como uma lembrança de um dia não vivido Nessa frágil memória, eu era Teodoro enterrando um homem que poderia ter sido eu, mas não era, porque era um homem qualquer que não teve coragem de ser
diante do irreparável, os soluços dele cessaram trazendo um desonroso silêncio O fim Ao longe, fachos reluzentes chocavam-se uns contra os outros dissipando-se numa escuridão como estrelas que de tão contentes morrem por não saberem quando O asfixiante fim Não A asfixiante jornada antes do fim Uma terra com possíveis restos de animais mortos caindo seca e inevitável sobre o meu ataúde, encerrando a nossa história Uma história de amor não compreendida entre Vicenzo e Teodoro
acabou fim nunca mais e outros pedaços de mim sendo tragados pelo desespero do abismo, restando uma coisa esponjosa esfarelando, e mesmo assim contemplava, sufocado pela atmosfera de uma angústia silenciosa, a imagem do homem que um dia me deu um beijo quando eu ainda não sabia o que era ser amado.
Vicenzo P. Cesare (1795-1885)