Um conto de Vanessa Gonçalves
Vanessa Gonçalves: “mulher, educadora, feminista, mãe, produtora cultural, editora, escritora e idealizadora da editora independente Rizoma Projetos Editoriais. decidi, criar minhas linhas de fuga por e pela arte. pensar, criar, pulsar pela literatura… perseguindo e sendo perseguida por ela. essa é uma busca e uma parte do que compõe a multiplicidade do meu ser”.
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Miocárdio
Você está sentada no banco de trás do carro. Na sua mão o celular vibra 23 notificações. Você não quer destravar a tela não quer conferir nada não quer saber do que se trata. O motorista de aplicativo fala e fala. Você não quer conversar e mesmo mantendo respostas monossilábicas as palavras saem daquela velha boca uma após a outra. E como se um ímã atraísse um após o outro toda sorte de motoristas reacionários naquela semana. Porque agora vai piorar, eu li que vai, é só o começo dessa palhaçada toda. E assim uma depois da outra palavras de um mesmo repertório Norte Nordeste Sul, como é melhor o Sul, gente preguiçosa, na minha época, porque Deus. Você não sabe mais o que ele diz porque só quer chegar em casa. Sente uma dor muito aguda no peito, no miocárdio, e não você não tem nenhum problema no coração. É outra coisa. Olha para frente e não acredita no que está vendo, uma fila muito grande. Um carro atrás do outro. O motorista com palavras uma atrás da outra. Seu miocárdio doendo uma dor depois da outra. Você olha para o lado e a mesma fila se desenha. Então tudo para. Buzinas buzinas buzinas. Ô seu filha da puta não para eu quero ir pra casa. Ô seu arrombado olha o meu retrovisor. Todos assim, xingamentos no masculino. Buzinas, motores, fumaça, um carro, outro carro, e outro e outro e mais outro e tantos outros, filhos das putas, arrombados, queremos ir para casa, buzinas, motores, fumaça. O motorista começa a falar do valor da corrida, que vamos ficar ali, que não tem jeito dona, não tem como cortar caminho. Tudo bem foda-se você pensa que só queria que ele não falasse mais nada e naquele dia bem naquele dia você esqueceu o fone de ouvido, e a irritação te faz lembrar onde ele estava, na mesinha de cabeceira ao lado da sua cama, lembra que ganhou aquela mesinha, o fone está ao lado de uma caixinha colorida, você lembra que ganhou a caixinha também. A dor no miocárdio, ai. Você sabe que não tem problemas cardíacos. Agora o motorista está falando da sua descendência, você sabe que é um assunto que as pessoas aqui sempre tocam porque 12 anos num lugar te faz saber mais ou menos por onde as conversas nativas caminham. Portugal, e ele começa a abrir a galeria de fotos de esposa, netos, filhos, pai de 99 anos, a mãe morreu há 18, antes dela uma irmã que ele amava muito também, assim, uma atrás da outra e disse que a mãe foi de tristeza. Você foi educada para dar atenção às pessoas então você olha e diz que bonita a sua família, que lindinha a sua neta. De repente uma pausa. Lá fora a imensa fila vai dando lugar às sirenes que correm vermelhas entre as buzinas, motores, fumaça, um carro, outro carro, e outro e outro e mais outro e tantos outros, filhos das putas, arrombados, queremos ir para casa, buzinas, motores, fumaça. O último carro é o da Polícia Civil, e todo mundo sabe que quando tem polícia civil tem morte. Alguém morreu, mais um corpo espatifado na BR 101, um após o outro, entre a centenas de carros que surgem ano após ano e vão ocupando o litoral. De repente um nome Melina. O motorista fala sobre a Melina. Você desbloqueia a tela do celular, 23 notificações. Ignora todas. Abre a página de uma rede social com notícias da cidade Pessoa morre esmagada por caminhão na BR101, devido às condições do corpo não se pode identificar o sexo. Você nunca tinha lido algo assim antes. Um corpo destruído a ponto de não se saber se era um homem, uma mulher, jovem, velho, pai, mãe, irmão. Uma massa disforme esmagada entre buzinas, motores, fumaça, um carro, outro carro, e outro e outro e mais outro e tantos outros, filhos das putas, arrombados, queremos ir para casa, buzinas, motores, fumaça. Seu miocárdio, ai. O motorista conta sobre a Melina, em 1982 eles se casariam e iriam embora para Portugal, ele voltaria para Aveiro, ela iria também, o primeiro amor da vida dele. Você ouve a história que vai se cruzando com uma outra história lá fora e a sua ali dentro, você está pensando que uma família não vai ter de volta em sua casa a mãe, o pai, o filho, a filha, a neta, o neto, o amor da sua vida, você pensa que nem vão poder velar, mesmo você não gostando de velórios, não gostando de caixões assim abertos, com flores e cheiro de morte saudade e despedida, você mesma não gostaria de velório, apenas ser transformada em cinzas e espalhada pelos ares. Você não gosta da morte. A Melina estava voltando de Luiz Alves, ali por Barra Velha sabe? Não eu não sei, senhor, me desculpe. Então, ela estava voltando por ali sabe, e então um caminhão bateu de frente com o carro dela. A gente ia casar aquele ano sabe, e ia pra Aveiro. Você vê os olhos marejados de alguém que acabou de atravessar um oceano distante. Uma família vai atravessar um oceano naquela tarde. É triste um amor que morre. Você pensa em todos os amores e tudo o que a palavra morrer carrega ou não carrega em si, para reaças ou não. Para senhores que nem sabem ao certo sobre que dores e frustrações regurgitam. A morte. Ausência, silêncio, vazio, luto, juntar o que fica, lamber feridas, seguir. Você não sabe o porquê, mas pergunta Ainda dói?. Desculpe, filha, nem sei por que a gente chegou nesse assunto. Seu miocárdio, ai. Você sabe que não tem problemas de coração. Senhor, preciso descer um pouco. Você desce. Curvada, mãos abraçando a barriga, aquele gosto ácido queimando o caminho de dentro, estômago, esôfago, faringe. Vomita, vomita entre as buzinas, motores, fumaça, um carro, outro carro, e outro e outro e mais outro e tantos outros, filhos das putas, arrombados, queremos ir para casa, buzinas, motores, fumaça, um coração, ai.