Um conto de Victor Strabo
Victor Strabo nasceu em 1987 e tenta escrever. Quando vai ele escreve, quando não vai ele não escreve. É mais do não ir do que do ir, então vai demorar.
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Mato das Cobras
…a gente tava numa resenha, senhor, eu e o Lazú, o Lázaro, e assim sem mais nem menos, quando a gente foi ver, cruzando a nossa vista, um ônibus que parou e de lá dentro um homem nos mirava, um olhar duro, ressecado, cortou nossa conversa e ficamos em choque, Lazú mais ainda, envergonhado que ficou, a moral abaixou como se tivesse devendo e viissem cobrar na frente dos familiares, então foi aí que ocorreu pra ele, de perseguir, ele nunca foi de fazer essas coisas, acho que o sangue subiu e estancou, é a vingança, mas Lazú sempre foi humilde, de alma e origem, falava pouco e quando fazia, crescia pelo certo, quando vi não acreditei, ou não queria acreditar, e também assim me juntei à sensação, naquela mesma hora de segunda-sexta, menos por ser nosso horário de sempre pra voltar pra casa, a gente ficava ali parado esperando aquele ônibus e depois o nosso, é um que vai pra Água Azul, ele passa pelo Mato das Cobras de volta pra casa, e o mesmo homem no mesmo banco, na janela ficava filmando a gente, aquele olho de despejo, além de ser mesquinho sentar assim no mesmo lugar todo dia, e não falava nada, era mais pra Lazú, parecia mais coisa pra ele, ficava calado, engolindo, depois de partir o ônibus, aquela poeira e fumaça, teve um dia que foi demais, chegou nos olhos e ardeu, aí bastou pro Lázaro, já era muita usagia, lembro que foi na sexta-feira, lembro porque eu tava com dinheiro no bolso pro gás, foi no dia do vale, que me pegou desprevenido, Lazú com uma bolsa preta, dessa que o senhor perguntou, eu estranhei, mas deixei passar, é que eu tinha quase certeza do que tava lá, não imaginei porque foi rápido demais, nunca vi ele com ela, eu sabia que ia acontecer, então foi aquilo, Lazú deu sinal, o braço de cruz empenada, e eu entrei depois, um mormaço, umas crianças de colo nos bancos amarelos com as mães e uma chorando vermelha cagada, era o inferno, até pensei que ele ia desistir, mas passou a catraca, e o homem tava lá, de lei, sentado na primeira janela depois do cobrador, acho que o homem nem deu por ele porque não sei que momento ele começou a se abanar, ou vai ver ficou com medo ou nem isso, e também não era o único, mas tirando ele eram só as mulheres que tavam fazendo essa abanação, e as velhas faziam mais ainda, se eu peguei isso nele é porque agora vi que ele tinha percebido a gente, aquilo era nervoso, Lazú não olhava, ficou ali com a mão na bolsa e a outra no ferro do banco, uma mulher dormia, loirinha loirinha, devia de ser bonita acordada, mas tava com a boca aberta, vencida-tisss, e uns pingos de suor na ponta do nariz, uma vez Lazú falou pra uma dessas que ela era mais bonita ao vivo, ela queria ser modelo, mostrou até fotos pra gente, eu fiquei quieto e aceso, mas o Lázaro acertou, mirou e disse que tá mais bonito ao vivo, porque tá boa na vida e má na foto, tinha que mudar essa condição, e ela ouvia tanto, que hoje é o diabo de branco, mas está nos anúncios do aeroporto, ele certo como sempre, abria a boca e pei, certo como sempre, mas essa parecia uma morta equilibrada no banco, alguns fios ficavam passeando no punho injetado do Lazú, só isso tava incomodando ele porque ficava abaixando os olhos e trocando as mãos, mas em nenhum momento o homem olhou pra ele, nem ele olhou pro homem, ficou vendo o cobrador só no sorriso falar com uma menina. O ônibus teve uma hora que freou pra passar pruma vala, o nó cego arranhou a marcha, estacou, e aí pôs a primeira pra subir o barranco, nessa bolsa de Lazú bateu toda a parinfernália dos metais e por um buraco no lado saltou melado de barro a ponta do bico dessas tesouras de jardim, ficou um rato só espiando e voltou pra toca, nos fiapos do pano ficou dependurado a sujeira do pó, acho que só eu vi, eu fiquei bambo nas traves porque Lázaro não sabe poda, não sabe nada de jardinaria, eu fiquei pensando, ouvindo lá de dentro aquele matagal escuro varrendo o ferro azul do ônibus, eu queria tá suave, tanta coisa pra fazer que deu cansaço, e a luz do sol toda tranquila, alisando os galhos, crivando as árvores, lambendo barranco, imaginar aquilo tudo, parecia um desastre aéreo, foi triste a gente ali tendo motivo pra estar, além da bolsa, devendo pesar, e o homem deu sinal, a moça nem se mexeu, então ele deu um toquinho no braço da loirinha, a boca um sorriso besta, e a mulher acordou num pulo dos olhos, como um filme que ressuscitam a criatura com choque, e o homem passou por Lazú com os olhos baixos de desculpa, eu pensei esquece isso, tava nervoso, e só foi o que pensei, depois eu me perdi, senti o joelho da mulher martelar o meu, me estranhei e quando recuperei fui até ir com o Lázaro pro fundo, pra descer do ônibus, dei um tropeço no segundo degrau, isso que me fez empacar, o Lazú lá de fora apertava o velho como se fosse parceiro de noitada caminhando na beira do mato cerrado, fiquei lá olhando a estrada ficar pra trás e um moleque apontava os dois pra outro num cochicho, o motorista também não respeitava as pessoas lá de dentro, a gente se acostuma, vai deixando os outros tomar uma liberdade, mas às vezes alguém se mete de tudo, toma as dores de tudo e grita ô, vai com calma, motorista do caralho, isso faz quando tá descendo, que é esperto, e mais os ousados, eu não perdi a minha e fiz com gosto e desci fora, nada vinha do outro lado, só o ônibus deste indo embora, se assanhando na estrada, pensei também da onde vinha aquela opinião do Lazú, mas rápido, depois quando voltei em mim os olhos, Lazú tava correndo atrás do homem, os dois encaminhados pra mata fechada igual dois cães, e eu fui dar suporte pro meu amigo, não sei se o senhor conhece praqueles lados, já deve ter experiência, se entra dois sai um, o senhor sabe o que é corpo lá dentro, se avisam pro senhor, eu entrei sozinho, mas era eu que tava na dianteira porque eu tava seguro, de tanto correr sem alvo, direto, perdi o som dos dois perto de um córrego, esperei com os pés molhados, uns mosquitos passando na boca e no nariz, um barulho rasgando o ar de avião e aí achei que não tinha mais jeito, fiquei desesperado, da onde vem essa opinião, pensei de novo, vi um azulão voar por baixo de um vespeiro, pousou na folha seca e ouvi gritos que nunca, antes de chegar pra eles eu tremia, o azulão na mia compania duas vezes piscou as asas na folha seca, e meus olhos viram o insano, Lazú, o Lázaro, apertava o velho num tronco e currava assistido pela muita coisa pontuda que tinha naquele saco e que tavam enfiados com as pontas na terra fazendo um cê com a boca virada pra eles, tinha um velho também, ou tinha uma senhora que eu nunca vi de perto, senhora eu digo velho-velha, de vestido branco, touca e tudo, o Lazú empurrando com força no velho e a velha estoca as costas do Lázaro com o que desbicava daquele cê na terra, eu não entendia, o grito ia conjunto e durou o tanto que eu vi, quando aquela tesoura curiando suja no saco era a única que estava deitada no cê, e a velha pegou do cê e foi até o velho, e fechou a lambida na sua garganta, um jorro porco e o velho já não podia mais, com o Lazú eu chorei quieto comigo, porque ele se ajoelhou contrariado, não sei se foi o peso de que ainda tava ali engatado com o peso do velho, ou se foi outra coisa, e a velha de frente, olhou pra ele, e maltratou mesmo, foi muita estocada, no rosto, no peito, na barriga e ele já não era meu amigo, o Lazú se foi sem eu ver, o Lázaro não vai sair da minha impressão nunca mais naquilo que sobrou dele, a bicha foi violenta sem eu entender nada e deixou lá os dois sofridos, e eu não pude ali achar nada pro meu amigo, na folha seca não paravam de piscar, e eu pisei e macerei suas asas até sumir o azul com a fricção do meu sapato e corri dali no ponteio do fôlego, não sei como em casa fui banhar, mas esperei os dias que eu não consegui segurar mais, perguntavam e eu enfurnado, e o amigo, até que não deu mais, eu deixava no ar outra coisa, Lazú falou pra mim que a vida é uma carroça, dá até pra rir, como carroça, dessas sem arrimo, a gente até, anda, tropeça, sacode, naonde a gente vai dar é coisa que não sabe, e no chão já é coisa que não se importa, Lázaro é assim, pei e no alvo, sai fora, carroça é pra zoar mesmo, ficou a bolsa preta sem nada, mas olha como é esquisito o senhor me dizendo que eu tapeio e sei onde estão, que pode ajudar, só se o senhor, sem deboche, me quiser por na tranca pela borboleta, ela eu até aponto de cor e salteado, dos outros, nunca mais vi nem os velhos nem Lázaro nem os trecos, vivi assim pra chegar até aqui, assim, aí o senhor me enquadra aonde…
guarulhos novembro 2023