Um conto de Vinícius Portella
Vinícius Portella é escritor e baterista. Nasceu em 1988 em Brasília. Publicou em 2017 o romance Procedimentos de Arrigo Andrada e é doutor em literatura comparada pela UERJ.
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Alguns exercícios
Pense na sua alma. Se você acha alma uma palavra “espiritual” ou “transcendental” demais, pense no seu estômago, intentino delgado ou grosso, par de pulmões, etc. Agora pense nessa alma (ou estômago, ou intestino delgado, ou grosso, ou sistema circulatório, até) esvaziada do que ela tem, derramando pelas mangas, jorrando mesmo, e depois esprimida, até não sobrar nada, ficar só a forma oca, despreenchida, dobrada em si mesma. Caídas no chão, as suas partes parecem agora algo como pedaços de pano e juntas movediças sujas de alguma coisa gosmenta. Agora volte e passe espíritos distintos naquele mesmo maquinário, pra ver o que acontece. Ele fatalmente vai se inflar de novo, assumir diversas poses, figuras, esgarçar umas aberturas, amolecer umas partes rígidas de sua anatomia, enrijecer partes moles, assumir o que poderíamos chamar de uma plasticidade formal maior, de um repertório expressivo significativamente mais robusto. Agora retorne o seu espírito anterior pra dentro daquele maquinário (se o tiver extraviado; o que é normal, arrume outro, de qualquer material). Você verá com toda certeza que quase todos os seus medos deixaram de existir.
Pense num jogo de futebol americano universitário. Diversos homens correndo, trombando deliberadamente uns com os outros. Os cérebros dentro do maquinário de ligas, juntas e carne se chocam o tempo todo contra as paredes do crânio. Na plateia, um antropólogo e um analista de sistemas discutem o que é que eles estão assistindo. O analista de sistemas é tcheco, acha o esporte ridículo, só gosta de futebol de verdade. O antropólogo é norte-americano, cresceu assistindo aquilo, mas hoje tem dificuldade de conciliar o seu carinho pelo esporte com a violência que ele envolve, necessariamente. Vários daqueles jogadores terão demência no final da vida, ele diz. Eles todos estão sofrendo o equivalente a uma série de pequenas colisões de carro, toda vez que jogam esse jogo. O primeiro diz que aquilo é um análogo de guerra, mas um que traz catarse, deixa a galera ventoar umas coisas, e que esse lado ele acha legal (o analista de sistemas inventa palavras quando não sabe se expressar com uma existente, o antropólogo sabe e gosta disso). O antropólogo fala que acha que é, sim, um análogo expressivo da guerra, até pela coisa territorial, mas não acha que seja minimamente catártico, acha que funciona mais na base mimética mesmo, uma estrutura menor e menos séria daquele que é o gesto representativo total daquela sociedade, espelhando e reforçando o ato dramático que mais diretamente congrega aquela vastidão num único corpo expressivo. A guerra. As tropas sinedóticas que morrem pela sua liberdade lá nos longes marrons, eles acreditam. A sério. Os dois estão bêbados; um deles está, também, fumado. Os dois ficam em silêncio, demoram por um instante os seus olhares nos traseiros chacoalhantes das animadoras de torcida (embora um deles seja homosexual; eles estão perto o bastante pra que no momento toda a comoção coreografada e tão jovem reúna boa parte das atenções disponíveis). O analista de sistemas pergunta: se agora eles estão subcontratando a guerra para os robôs, será que vão fazer isso com essa aqui, simbólica, também? O antropólogo ri, levanta os olhos de novo para o jogo, imagina aquele mesmo lugar tomado por robôs (ou ciborgues) daqui a vinte, ou trinta, anos. Maxilares que caem e são re-instalados na hora, botinhas turbo que soltam fogo, lançamentos precisos de centenas de metros, eles se desmontando nas porradas, torsos se descolando das cinturas (como naqueles Comandos em Ação antigos) e se remontando. Ambas espinhas tem um tremelique.
Pense na pessoa que você mais ama, e que agora tem apenas desprezo por você e tudo que a sua pessoa congrega e representa (se essa pessoa não existir, conjure a sua dimensão emocional a partir de elementos de pessoas que existam). Imagine agora essa pessoa do seu lado, contorcendo o seu rosto em figurações expressivas de desprezo, formulando durante horas variações de frases incisivas que repisem justamente aqueles pontos mais farelentos e quebradiços do seu caráter. O seu amor por ela, enquanto isso, vai inchando, sem saber pra onde ir e o que fazer consigo mesmo, preenchendo sulcos esparramados, completando reservatórios secos, vestindo paletós e calças guardados no armário.
Vocês se separam de novo. Você volta aí pro seu trabalho na firma, ela volta para a sua rotina itinerante onde ela coordena diversas forças-tarefa eminentemente práticas e locais em defesa do meio ambiente, dos direitos humanos e da diversidade ontológica (amplamente compreendida)
Você acompanha as vitórias dela pelas redes alternativas de angariação e reverberação de eventos noticiosos. O seu grupo liberta diversas cidades, escravos, espécies, afirma a legitimidade política e afetiva de uma série de agrupamentos comportamentais. Vários amigos seus compartilham fotos dela em palanques, comitês, barricadas. O seu amor por ela explode canos, irrompe de aortas. Enquanto isso, a firma para a qual você trabalha vende aparelhos usados de radiografia para presídios do interior, você mente para a sua avó deprimida e sozinha que está ocupado demais para visitá-la.
Todos os eventos contínuos da realidade parecem confirmar de maneira quase escandalosa todos os pontos defendidos por ela na última ocasião em que você foi (justamente) descascado. Você secretamente acredita que ela talvez seja o messias redivivo (ou, no caso, rediviva). Numa das fotos, se você olha direito, ela parece estar levitando.
Vocês se encontram novamente, dessa vez no interior do Paraná. Ela está lá a trabalho, você a seguiu para que pudessem se encontrar, de novo. A passagem, comprada de última hora, não foi barata. Ela chega duas horas atrasada, cercada da patuscada irritante que sempre corre com ela agora. Tá vestida só de diversas penas sintéticas coloridas formando uma penugem iridescente como a cauda de um pavão, com só uns trinta por cento do seu corpo descoberto (mas justamente as partes mais interessantes). Quando você pergunta pra ela de qual é a das penas, faz uma piada a respeito do Carnaval ser só semana que vem, ela fala por tempo demais do pavão e seu simbolismo alquímico, Proustiano, Jorge Beniano. Você olha pra cima, pras unhas.
Por um instante, a arrogância tão feia dela (ainda que justa, em certo sentido) a respeito da sua própria exuberância lhe permite que sua extrema pujança moral e estética se veja diminuída por um instante. Por isso, pelo menos, você é muito grato.
Pense num professor universitário de religião comparada. Ele (você) tem trinta e cinco anos e rabinho de cavalho, alterna estranhamente entre camiseta e pochete e um blazer de veludo verde-escuro. Tenta cultivar uma imagem aberta, experiente e um pouco misteriosa, de alguém que detém mistérios orientais e alguma expertise lisérgica e mística que ele gostaria que já sentissem nele antes que ele soltasse qualquer sinal mais explícito nesse sentido. Ele nunca tinha tido nada muito próximo de uma experiência mística, embora as achasse bem interessantes de se ler, fingidas ou genuínas.
Um dia, depois de cochilar diversas vezes assistindo televisão, e não conseguir nem chegar na metade da comprida cinebiografia do Malcolm X, ele decide desligar a televisão, vai do sofá pra rede. Fica deitado na rede olhando para o armário de cor de madeira, pescando.
Olha de repente para a janela, a faixa de vidro que fica bem à altura da sua atenção quando está na rede (e só nessa ocasião).
Tem só três meses que ele mudou pra esse apartamento. Ele olha e de longe tem a impressão de estar vendo um palito de fosfóro e as lascas de um lápis, assim flutuando no escuro. Ele não entende direito o que é que ele tá vendo. Pensa de repente que estão congelados ali gestos dele dos quais ele ja tinha esquecido. Fixos. Talvez por estar quase dormindo, isso lhe parece muitíssimo profundo, e ele em seguida entende com muita naturalidade o tempo como um elemento espesso no qual todo mundo está metido, entranhado, o tempo todo, viscoso como xarope de bordo. E vidro era luz grossa. As imagens deviam ter se atrasado ali dentro daquele ali, ele pensou. Isso fez todo o sentido do mundo. Ele percebeu que poucas vezes esteve tão feliz, e tranquilo, antes de adormecer.
No dia seguinte, de manhã, enquanto toma café aguado e come biscoito de maizena, ele lembra da experiência, fica até emocionado. Começa a narrar todo o processo pra si mesmo várias vezes, modulando o tom e as ênfases, acinzelando uma sucessão dramática. Quando volta pro quarto pra dormir mais dez minutos antes de se vestir (ou até tomar banho, dependendo da hora), ele ao deitar na rede olha de novo pra mesma faixa da janela, e vê que o fósforo e as lascas de lápis (e também umas colunas baixas de cinza de cigarro) ainda estão lá, flutuando, só que numa teia de aranha; ela que agora você consegue ver também, na dela, do tamanho dum chip de celular, cinza-marrom, calma.