Um conto de Vitória Gabriela
Vitória Gabriela tem 20 anos (2002) e jeito com as palavras. Nascida em São Paulo- SP, filha de pais baianos, escreve desde a infância e atualmente além de possuir material disponibilizado on-line, participou da antologia Alma em Letras (Editora Exílio do Jaguar) e da antologia Poesia Viva 2022 (Coletivo Fomento Literário).
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‘Quanta rebeldia seu amado tem na manga? Quanto tempo até ele se tornar amargo?’ Voz grave de artista lutando pela própria vida nas calçadas, voz como rugido na selva, voz como alento no tormento. Alento a arte sempre é. Anos atrás, estive perdida no centro e, atravessando uma rua qualquer, procurando por um manual de instruções da vida em uma esquina, vi um artista. Ele estava empilhando seus fogos aos céus, balançando sua vida na palma da mão, foi assim que me encontrei. Agora, em minha volta, há sons de passos e de palavras sendo reproduzidas em um tom baixo, super-super baixo. Meus pés como patas de gatos silenciosamente se aproximam da moça, som das minhas moedas de pouco valor caindo no prato fundo de alumínio, meus lábios ressecados se partindo em um sorriso simpático, a dor é coadjuvante, quase nada por ser ignorada. A língua por cima do corte no lábio como o tique nervoso de Marylin Monroe só para confirmar que não há sangue. A cantora sorri enquanto puxa um grave e olha para mim ‘Quanta rebeldia seu amado tem na manga? Quanto tempo até ele se tornar amargo? Quanta rebeldia há em seu amado?’. Uma senhora com a neta se aproxima e deixa duas notas de 20 por cima das minhas tímidas moedas, moedas tão minhas que não possuem brilhantismo. A avó acaricia as costas da menina, e eu estou perto o suficiente para confirmar que elas duas cheiram como lar, como uma ideia acolhedora, uma realidade que jamais irá voltar. Sinto falta do cheiro de colônia que minha avó tinha. Sinto falta do cheiro de cigarro que meu pai tinha. Lembro do que me trouxe aqui, sou abatida com descontentamento porque sei que essa entrevista vai me custar algumas ideias, alguns neurônios. Elas sempre custam mais do que dão. Lembram-me de hospitais e a forma que eles me ofendem, pois odeio me sentir vigiada, observada, julgada. Ah, e quem dera eu soubesse quanta rebeldia há em quem eu amo.
– Então, essa seria uma primeira experiência com a área?
– Sim, seria.
– O que te faz pensar que você aprenderia?
Eu não soube responder. Na verdade, eu disse algo bem ensaiado e enchi algumas linguiças, mas não sei dizer o que me faz pensar que eu seria capaz. E se eu ousasse falar assim – além de me auto eliminar do processo seletivo – ele seria o incapaz da sala, simplesmente não entenderia. Talvez… se fosse outro contexto. Eu, sua filha, ele, meu pai amoroso me aconselhando sobre a vida e dizendo que não, eu não encontraria manual algum em esquinas, e que ninguém me diria nada doce enquanto eu estivesse em pé no meio da multidão chorando porque ele se foi. Talvez assim ele entenderia que meu medo de falhar é de família e afirmaria olhando nos meus olhos que deixar as coisas sem finalizar ou nem começar é algo que ele entende bem, que ele vive também. Desbloqueio o aplicativo de mensagens:
“Café? Às 16h30?” de Amor.
“Vamos naquela exposição? Você pode hoje?” de Juliana.
“Filha, vou sair com a Márcia hoje à noite, se você quiser ir…” de Mãe.
Não estou morta. Ainda lembram de mim, apesar da minha constante ausência. Mas não vou aceitar nenhum dos convites e queria poder dizer “Oi. Desculpa, estou muito melancólica hoje, vivendo especialmente por obrigação. Podemos remarcar? Adoro sua cia.” Ao invés disso disse ao meu namorado que estou com cólica menstrual, à Juliana que ia sair com ele e minha mãe… bom, ela vive comigo. Só disse que não ia.
Fiquei a noite toda me forçando a ler um livro que peguei na biblioteca semana passada, porque odeio devolver sem ler, mesmo sendo uma das piores leituras da minha vida. Comi pão de milho com cobertura de sorvete de chocolate, ficou surpreendentemente bom, minha abstinência por açúcar no sangue faz florir uma criatividade imensa. Caí no sono quando resolvi pintar uma tela nova e acordei com tinta nas mãos e cabelos. Olhei para a minha criação e odiei cada mínimo traço dela por ser tão minha. Olhe só para nós aqui, eu e ela, criador e criatura na mesma sala, com papéis invertidos – ou não. Pois éramos a mesma. Eu estava confusa e ela borrada, éramos a mesma coisa. Assustadoras, vívidas cadáveres, bagunçadas e a verdade é que aquilo me fez na mesma intensidade que eu o fiz.
Horas depois do instantâneo realismo, recebi uma visita coletiva, algo em grupo que estavam fazendo e eu era a missão deles. Disseram-me que fazia dias que eu não dava um sinal de vida convincente e que estavam preocupados comigo, eu disse que ‘admito as avaliações nesses locais me deixaram ansiosa’ e que além de me preocupar em me encaixar na sociedade, eu queria que ela se encaixasse em mim. Queria trabalhar, ser comum na minha pequenez, mas também me expressar e ser grande com minha arte, ser grande. Bem sucedida. Nada de fama, só ser vista e reconhecida. Não queria nem que vissem meu rosto ou ouvissem minha voz, queria que vissem minhas telas e por lá, ouvissem meu rugido na selva. Amor, Juliana e Mãe disseram palavras gentis, mas vazias. Sei que eles me amam e que me querem por perto, mas nenhum desses desejos podem me salvar do medo. Estou aterrorizada com o que vejo e eles, infelizmente, por mais que queiram não poderiam me salvar dessa bagunça universal. Estou confusa e perdida, mas lembrar que nada é pra sempre é meu alívio constante. É tão clichê quanto real. Tudo acaba, por bem ou por mal.
Decidi que iria mudar, até coloquei Vou recomeçar da Gal para tocar, disse que ficaria o restante do dia na companhia do meu namorado e que do dia seguinte em diante, eu mudaria meu modo de vida. Então fomos ao cinema, jantamos na praça de alimentação do shopping, andamos de mão dadas, ele me faz bem. Tem os olhos tão brilhantes, parecem duas estrelas com sua luz própria me encarando. Eu conseguia ver todo um futuro, uma perspectiva linda para o resto de sua vida, mas às vezes ficava pensativa porque eu não conseguia me incluir. Constantemente sentia que ele merecia mais do que isso. Se eu dissesse e assumisse isso para alguns desses repetitivos mandantes das coisas, eles diriam que se eu sinto isso, é porque deve ser verdade. Ah, sei lá eles não sabem de nada e gostam muito de opinar. Parece que se esquecem como é sentir algo assim que deixam o sentimento morrer.
No fim do dia ele me deixou em casa e com as pontas dos dedos geladas tocando na minha pele quente do braço, disse que eu devia ser mais confiante e que eu não me via como ele via, que minha luz era tão grande que me cegava, mas ficava óbvia para o resto das pessoas. Bobagem. Mas me deixei acreditar pelo seu encanto. Admiti estar cansada e não sei se ele entendeu onde exatamente estava o cansaço, mas me ofereceu seu colo e quando deixei minha cabeça descansar, percebi que esse meu descontentamento é crônico. Estava aqui quando eu era uma criança ambiciosa, quando eu fui uma adolescente descontente, quando ousei sonhar, quando me libertei das esperanças, e está aqui agora que tenho tudo quando observo que tenho nada. Corri, corro e correrei desse vazio no peito que me come por dentro e nunca está satisfeito. E foi aí que ele disse que não me amava. Não completou com um “mais” o que significava que nunca amou. Chorei e Gabriel me abraçou, ele não disse nada, só me escutou. Ouviu-me contar mais uma vez sobre o dia em que meu pai me deixou.