Um conto de Wesley Henrique Alves da Rocha
Wesley Henrique Alves da Rocha é Doutorando e Mestre em Estudos de Linguagem, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGEL/UFMT). Bacharel em Psicologia pela UFMT. Organizou os livros Descolonizando a Psicologia: contribuições para uma prática popular (2020), Psicologia e Educação: teoria e prática (2020), Escrever e inscrever-se: espaços de voz e resistência (2020), Corpo e afeto: população negra em pauta (2021), Gênero e sexualidade: resistências dissidentes na contemporaneidade (2021), Racismo e antirracismo: reflexões, caminhos e desafios (2021) e é autor da obra Diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus: saltando os muros da subalternidade (2021).
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11 de março de 2030 (que poderia ser 2018)
Nunca fui de escrever textos diarísticos, embora seja assíduo leitor desse gênero. Mas, hoje, achei que poderia me atrever a isso a fim de materializar alguns pensamentos que se alojaram em minha mente confusa. Em mais um atrevimento, copiei o estilo carolineano de escrever diário. Coloquei a data no topo da página e, acreditem ou não, escrevi à mão. Escrever à mão… algo quase inexistente nos dias atuais. O avanço tecnológico e, felizmente, a facilidade no acesso à tecnologia transmutaram o ato de escrever à mão em digitar… algumas pessoas já nem utilizam as mãos, algum aplicativo capta o som do que está sendo dito e vai digitando na tela de uma forma tão precisa que, pelo menos a mim, chega a assustar. Anna Luz, minha filha, deve ter usado lápis e caneta umas duas vezes durante a vida, pois na escola também se usam os tais aparelhos tecnológicos. Tenho minhas ressalvas quanto a isso, mas na atualidade é inútil lutar contra a intromissão assustadora da tecnologia. Voltando… escrevi à mão, mas depois digitei para compartilhar com alguns colegas.
Anna chegou em casa às 13h depois do primeiro dia letivo do ano. Ela está cursando o sexto ano do ensino fundamental, que eu insistentemente ainda chamo de quinta série… não consigo me acostumar com a nova nomenclatura, mesmo décadas depois da mudança. Minha esposa e eu estávamos em casa, trabalhamos em regime de home office. O trabalho em casa popularizou-se muito durante e após a pandemia do coronavírus que começou lá em 2019. Gostaria de dizer que a popularização se deu por conta de as empresas começarem a pensar um pouco na qualidade de vida de seus empregados, mas… sabemos que não foi assim. O que motivou a adoção desse modelo foi a economia na conta de energia, no vale-transporte, no vale-alimentação, na compra de equipamentos, gastos que foram repassados para nós, os trabalhares… foi isso, o puro e perverso capitalismo que, acreditem ou não, não foi extirpado na nação brasileira após o governo do “comunista” partido vermelho. Bom, minha filha chegou e, como de costume, fomos almoçar juntos. À mesa, perguntei como havia sido o dia na escola. Ela disse que teve aula de história e que a professora falou que o “comunismo” não deu certo em nenhum país, que não seria diferente no Brasil e que com esse “novo” presidente as coisas poderiam voltar aos eixos.
Minha esposa e eu nos olhamos e, como em uma comunicação telepática, parecia que estávamos tendo um déjà vu. Havíamos ouvido esse mesmo discurso nas eleições de 2018… a tal luta contra uma ideologia comunista inexistente. Após quatro anos de governo do presidente fascista Messias, um “comunista” voltou a governar o país em 2022, resultando em uma gota de alívio para mais da metade da população brasileira e revolta para alguns lunáticos que, em protestos antidemocráticos, chegaram a pedir ajuda a alienígenas. Na época achei engraçado e senti certa inveja daquela obstinação cega que, se direcionada para algo palpável, como a extinção da fome no país, poderia ser até de bom uso.
Agora, em 2030, quem assumiu a presidência dessa república mal estabilizada foi o Messias Jr. Quem diria, né? Olha aí a novela se repetindo. O mesmo discurso lunático conquistando a afeição de brasileiros e brasileiras…
Não comentamos nada à mesa, apenas pensei sobre o assunto e aposto que minha esposa também, afinal nossos olhares nos entregaram. Almocei e voltei para o meu “escritório”, um pedacinho na sala de estar com minha mesa e um notebook. Ao fim do expediente, por volta das 18h, me levantei da cadeira, dei dois passos e me sentei no sofá. Inevitavelmente o assunto que, desde o horário do almoço, estava infiltrado em minha mente começou a borbulhar.
Pensei na escritora Carolina Maria de Jesus que disse que o país precisa ser governado por quem já passou fome; que disse que os políticos se divorciam do povo depois da vitória… palavras ditas na década de 1960 e que soam como se tivessem sido ditas hoje mesmo.
Pensei nos lunáticos que, com medo do “comunismo” que espreita o país desde sua invasão pelos portugueses, elegeram mais um boçal na esperança de que? A resposta, para mim, é nítida: resgatar e manter seus próprios privilégios.
O governo antecessor não foi perfeito, na verdade, nunca é. Mas, para quem pertence às camadas sociais mais pobres do país, foi evidente a melhoria na qualidade de vida, pois o poder aquisitivo, principalmente na questão alimentícia, aumentou bastante. Mais uma vez me vem à mente as palavras de Carolina: quem inventou a fome são os que comem.
Pensei no que faz esse pessoal ouvir um discurso contra a fome e escutar “comunismo” em alto e bom som? Imediatamente me lembrei de Zaratrusta que disse: “não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos.” A boca que fala em igualdade e erradicação da pobreza não é para ouvidos de uma elite que, na maioria das vezes, acha que faz parte da elite, mas seus ouvidos estão tapados por míseros salários que os fazem crer que são superiores a alguém.
Eu só posso chegar a uma conclusão: a eleição de propagadores de ódio e desigualdades sociais vai continuar se repetindo toda vez que os grupos minorizados galgarem algum tipo de ascensão social, por mínima que seja. Essa elite empunha uma bandeira do Brasil que, segundo eles, jamais será vermelha… mas é essencialmente vermelha desde a invasão das terras dos povos originários em 1500. É vermelha por ser um país alicerçado no sangue de povos originários, no sangue das pessoas negras, no sangue dos pobres, no sangue dos LGBTQIA+… A elite que repudia tanto o vermelho, tem as mãos lavadas de sangue, por onde pisam deixam sanguinárias pegadas vermelhas…
Quando Angela Davis disse que a liberdade é uma luta constante, imaginei que em pleno ano 2030 já teríamos alcançado essa tal liberdade, mas o ciclo se repete… anos de governo “comunista” e “esquerdista” interrompidos por anos de governo FASCISTA… uma repetição que parece não ter fim.
Então, convoquei Angela Davis novamente para afirmar: “Não podemos continuar fazendo o mesmo.” Se o ciclo continua a se repetir, algo de diferente precisa ser feito. Enquanto nossos olhos estiverem voltados para os neofacistas pintados de verde e amarelo, não haverá interrupção desse ciclo. Enquanto cada grupo minorizado estiver lutando apenas pelos seus próprios direitos, nossas vozes continuarão dispersas e segregadas.
Aqui, do ano de 2030, reafirmo a urgência do que Davis disse: “Teremos de ter disposição para nos erguer e dizer ‘não’ unindo nossas almas, articulando nossas mentes coletivas e nossos corpos, que são muitos.”
Ou, ainda, como disse Kwame Ture: “Portanto, nos movimentamos em direção ao poder e é claro que conquistaremos o poder. Mas só vamos conquistar o poder através das massas organizadas. É claro, também, que o capitalismo deformou o nosso pensamento, procurando sempre fazer parecer que a organização das massas é um objetivo inatingível.”
Davis e Ture disseram, por décadas, algo que me parece que grande parte dos grupos minorizados ainda não conseguiram conceber. A união das vozes marginalizadas é a saída para o rompimento desse ciclo fascista que insiste em nos atormentar. É preciso nos organizarmos para alcançarmos o poder!
Enfim, depois desses pensamentos “comunistas”, me levantei do sofá e fui tomar um banho. Aproveitei cada gosta de água que caia em meu corpo, procurei sentir cada gota, pois o banho dura, no máximo, 2 minutos. A escassez de água fez com que o governo limitasse a duração dos banhos. Medida que acho necessária, não fosse pelo fato de que quem pode pagar mais, pode sentir as gostas d’água em seu corpo por mais tempo.
Saí do banho, me enxuguei, me vesti. Passei no quarto da minha filha, ela estava deitada e lendo o último livro que eu a havia dado de presente; um livro de poemas intitulado Tudo nela é de se amar: A pele que habito e outros poemas sobre a jornada da mulher negra, de Luciene Nascimento. Entrei no quarto, coloquei nela a sua touca de cetim para ajudar a conservar suas longas tranças. Dei-lhe um beijo na testa e fui para o meu quarto. Minha esposa, Beatriz (que por sorte minha significa aquela que traz felicidade), já estava dormindo, também usando a sua touca de cetim. Olhando-a, lembrei de um trecho do livro Minha mãe usa touca de cetim, de Cintia Almeida da Silva Santos:
Todos os dias, antes de dormir
Mamãe conta histórias e cantigas pra mim
Faz carinho em meus cachinhos
E nos dela, coloca sua touca de cetim
Uma linda touca
Preta
Macia, cheirosa,
Toda bonita
A touca de cetim
Ajuda a deixar
Nossos cachinhos
lindos,
Cuidados
Por vários dias
Minha mãe usa touca de cetim
Acho tão legal
E também normal
Ver tanta beleza
Em sua natureza
Deitei-me para dormir junto à minha esposa, abracei-a por trás, senti o cheiro do seu cangote… aparentemente Beatriz não traz apenas felicidade, traz, também, a paz.
Amanhã, recomeça o ciclo.
Referências
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10ª edição. São Paulo: Ática, 2014a.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Organização de Frank Barat; tradução de Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018.
SANTOS, Cintia Almeida da Silva. Minha mãe usa touca de cetim. Araraquara: Letraria, 2021. Disponível em: https://www.letraria.net/wp-content/uploads/2021/08/Minha-mae-usa-touca-de-cetim-Letraria.pdf. Acesso em: 01 nov. 2022.
TURE, Kwame. Fundamentos para a revolução. Diáspora africana: Editora Filhos da África, 2022.