Um conto de Yan Rego
Yan Rego (@yanrego) é carioca de Vila Isabel, nascido em 1993. Cientista social de formação, atuou como professor de sociologia no Cursinho Popular Carolina de Jesus. Seu livro Agá recebeu o segundo lugar na categoria contos do Prêmio Biblioteca Digital 2021. Roteirista do curta-metragem O nariz de Euzébio e co-roteirista do longa-metragem Lulinha, meu santo!, com Camila Ribeiro, ambos em fase de captação. Era uma vez um mês seis, livro de contos publicado pela Editora Paraquedas, é seu lançamento.
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A voz de deus
1.
A vinheta anuncia que o Geral no Alerta volta ao ar. O apresentador Bocão Borzani ajeita a gravata, franze a testa e pede para a produção colocar na tela a pesquisa feita ao vivo com os telespectadores, cujo título é: “Você é a favor de protesto com tumulto?”. Atrás de Borzani, que usa paletó largo para disfarçar a barriga e colarinho alto para disfarçar o queixo duplo, são transmitidas imagens aéreas e terrestres da concentração de manifestantes, que vai do Teatro Municipal ao outro extremo do Viaduto do Chá. O não começa na frente, mas logo o sim toma uma dianteira de 500 votos.
“Não sei se o pessoal aí de casa entendeu mesmo. Não é contra protestar, isso é direito constitucional nosso”, Borzani diz e sacode a mão direita aberta no ar, o polegar e o mindinho subindo e descendo.
“Eu tô falando de quebra-quebra, depredação de patrimônio público, obstrução de via pública, deixar você preso mais tempo no trânsito na volta pra casa”.
O diretor do programa, fã de Glauber Rocha que nunca conseguiu emprego no cinema, percebe a maquiagem derretida revelando as rugas do apresentador e sinaliza outro intervalo. As respostas favoráveis a protesto com balbúrdia têm quase dois mil votos a mais que as contrárias. O diretor grita no ponto de Borzani, que leva a mão ao ouvido, gira a cabeça e olha para o V.T. como quem abre a porta de casa e encontra a família do vizinho.
“Você concorda com esse tipo de protesto? Eu sou contra, sou contra até pelo avesso. E ó, se a voz do povo é a voz de deus, nessas horas é melhor que deus seja mudo”, ele diz e esbugalha os olhos para a câmera, sua voz afina e falha.
“Ou não? Ou eu tô errado? Hein, velho?”.
O diretor avisa que vai cortar a transmissão.
“Tá pau a pau”, Borzani emposta a voz, “mas tem muito mais gente dizendo que sim. Bom, nós vamos pra um rápido intervalo e já voltamos com o comandante da polícia militar na linha”.
2.
Uma mulher de vestido preto, cruz no pescoço e avental de renda branca entra com uma bandeja, deixa um prato sobre a escrivaninha, avisa que outro doutor do trabalho ligou e sai. Borzani olha para a comida, faz movimentos circulares com o copo ao perceber o gelo derretido e bebe tudo de uma golada. Estão espalhadas sobre a mesa K7s do começo de sua carreira como repórter em uma rádio do interior do estado. Na parede estão emoldurados seu diploma, fotos com políticos e famosos, com seus filhos e as ex-mulheres. O computador toca “Preciso me encontrar”, na voz de Candeia. Uma mulher de vestido preto e pérolas no pescoço entra, tira o vestido, fica de calcinha de renda branca e diz:
“E aí, B.B., tô bonitinha?”.
Borzani tira os olhos das fotos e os põe na mulher, afunda na cadeira, desvia para o chão e cobre o rosto com os braços. Diz que não está no clima. A mulher faz força para afastar a cadeira da frente do computador e se senta de pernas abertas no colo dele, que vira o rosto e sacode a mão direita aberta no ar, o polegar e o mindinho subindo e descendo.
“Já te falei que isso é fase, amanhã ninguém mais se lembra e você continua sendo a voz do povo”, a mulher diz. “Poxa, tanto tempo te esperando separar e agora que você é meu no papel, quedê consumação?”.
A voz de charme da mulher o faz lembrar das ligações de sua filha mais nova no dia dos pais. Com uma barrigada, ele expulsa a mulher da cadeira e range os joelhos ao se levantar.
“Fase porra nenhuma, são trinta anos de carreira, Bebel. Bandalheira, vandalismo, marginalzinho – sempre foi batata. Mas agora o povo quer que eu enfie minha voz no rabo”.
“Já nem lembro o que é isso”, Bebel diz e põe o vestido. “Quer saber, azar o seu. A trouxa aqui se depilou, tá se esfregando na sua cara e você só no uísque e pão com ovo, uísque e pão com ovo, uísque e pão com ovo”.
“Foi presente do Protágoras e eu quase nunca tomo”, ele grita para as costas de Bebel e completa quando ela bate a porta, “só quando tô triste”.
Espanta uma mosca sobre o prato e encara a garrafa que ganhou do grande zagueiro do Palmeiras, craque nacional que apoiou o atentado de uns milicos linha-dura no Riocentro, trancou seus caminhos no auge da carreira e morreu de câncer de próstata pouco tempo depois. Borzani bebe até restar menos de dois dedos de uísque, espatifa a garrafa em um Troféu Imprensa – categoria formador de opinião – e dorme na cadeira apoiando o queixo na papada e as mãos na barriga. Sonha com o dia em que entrevistou o Papa:
“O que Vossa Santidade tem a dizer aos brasileiros, o povo mais crente do mundo?”.
“Per Brasile, niente. Ma per te, ho un messaggio di Dio“.
Ele dá um sorriso fiel para a câmera, os olhos cheios de lágrimas, volta a encarar o velhinho e espera as bênçãos de sua santa língua, igual à do nonno.
“Vaffanculo, figlio mio”, o Papa diz e faz o sinal da cruz no ar com o dedo do meio.
Borzani acorda com a cabeça doendo e batidas na porta do quarto. Constata que o presente do Protágoras é paraguaio. Gira a maçaneta e encontra o sorriso esticado de um assessor do dono da emissora, que tem o aperto de mão macio dos puxa-sacos. O homem diz que todos sentem sua falta, a audiência não é a mesma, a concorrência está abrindo e fechando todas as portas desde seu sumiço.
“Eu não quero ver uma câmera de novo. O que eu falo não se escreve mais, o povo não quer saber de mim. Ou não? Ou eu tô errado? Hein, velho?”.
O assessor pede perdão e diz que ele está, sim, errado. Pega o celular do bolso, faz uma ligação, repete coisas como positivo; sim, senhor; e de forma alguma, senhor. Estica mais o sorriso quase a rasgar o rosto e lhe estende o celular com o dono da emissora na linha.
“Alô. Eu sei, seu Al-makki. Sim, eu ainda tenho colhão, mas é falar em estúdio e ele sobe até o esôfago”.
“Ô, Borza”, diz uma voz que se gastou com charutos e lances em leilões, “vê se me escuta. Essa merda de mês vai entrar pra história do país? Talvez. Agora, daqui a um ano ninguém vai lembrar da sua cagada. Continua mostrando o que você sabe: filho matando o pai, marido matando a mulher, viatura perseguindo bandido na marginal. Em dois meses a audiência vai subir e o seu salário também”.
Borzani desliga o telefone e dá uma mordida no pão com ovo gelado.
3.
De terno e queixo bem cortados, Borzani posa sério para câmeras. Atrás dele, um pôster com uma foto sua de sorriso vazado, a Ponte Estaiada de fundo e um número de três dígitos em verde e amarelo. Seus cabelos acaju estão penteados para trás e a maquiadora fez questão de pintar seus lábios de rosa-presunto para criar contraste com o branco-presunto da pele do rosto. Uma repórter da Tribuna de Tarso levanta a mão e pergunta:
“Candidato, o senhor é, citando suas próprias palavras, um velho conhecido da população que sempre defendeu a mesma bandeira. Portanto, a sua passagem por 7 partidos nos últimos 4 anos não pode ser interpretada como contraditória pelos eleitores?”.
“Dona Patrícia Raabe”, Borzani sorri como quem dá um arroto estreito. “A senhora dorme e acorda pensando em mim, só pode. Tanto que nem tem tempo de fazer as unhas”.
“Eu só faço o meu trabalho”, ela diz e dobra as falanges para dentro da barra do vestido preto. “Como meu colega, aliás, o senhor deveria saber”.
“Colega, uma banana. O que você faz é que é a contradição do jornalismo, é manipulação pra dividir o país. Pois pode ficar tranquila”, diz para as câmeras, “porque eu não tenho e nunca tive motivo pra me preocupar com o que o povo acha de mim”.
Ele deixa a coletiva e dentro do carro o assessor do aperto de mão macio lhe passa um celular.
“Borza, meu irmão”, diz uma voz que se gastou de gritar glória em falsete. “A congregação já está te esperando, hein. O povo de Deus sempre integrou sua audiência e vai com você pra guerra, na paz do Senhor”.
“Amém, pastor. Vamos provar que santo de casa faz milagre”.
Borzani desliga e passa o celular para o assessor, que o guarda no bolso do paletó. Pergunta:
“Azedou?”.
“Ele não gostou que falei santo. Caguei”, Borzani diz e sacode a mão direita aberta no ar, o polegar e o mindinho subindo e descendo. “O importante é o rebanho dele ouvir minha voz no pé da orelha na cara da urna. Ou não? Ou eu tô errado? Hein, velho?”.