Um conto e um poema de Camila Prando
Camila Prando nasceu em Telêmaco Borba, Paraná, em 1978. Passou por Curitiba, Florianópolis, e mora há 8 anos em Brasília. Nesta caminhada foi marcada pela geografia afetiva das ruas do interior. E cresceu dando-se ao prazer de viver no interior das cidades grandes. Publicou recentemente, pela Avá Editora, o livro Dicionário de Palavras Subterrâneas, e publicará em breve, pela Metanoia Editora, o livro infantil O presente da Olivia.
***
Noturno
Domingo. Os cachorros batiam à porta e ela se recusava a abrir. Abria livros.
Escolhi o primeiro na estante. A capa vermelha. Senti as folhas já gastas, “viver a vida como peregrinação está longe, portanto, de ser uma via de mão única”. O filósofo falava das populações, migrações e desigualdades. E eu sorvia as palavras como se tivessem sido escolhidas para mim, não para as populações. Para que serviriam tantas páginas, caracteres aglomerados, em torno de palavras sentidos? No segundo livro, uma capa envelhecida cujas manchas
desfaziam a ilustração de uma mulher deitada. Folhas coladas embaralhavam a sequência da história. “Isso não me assustava muito porque existe gente assim, gente, sobretudo mulheres, que não hierarquiza os momentos e dá a todos a mesma importância trágica”. Eu me acomodei na poltrona.
A menina não havia tirado os pijamas velhos a cheiro de suor. A noite havia sido longa. Ela despertava à espera de alguma voz que a chamasse. Aos poucos as pálpebras pesavam como guilhotina. Dormia comprimida pelo peito alargado que queria sair para fora do corpo. Aquele peito despertador. A cada meia hora ela gritava do fundo da noite, o peito já não estava mais ali. Ela se espalhava no quarto, percorria a cadeira no canto da parede, entre as caixas de cartas, no meio das roupas acumuladas, tateava o chão, a coberta caída ao lado da cama, o armário cheirando adolescência. Ela passava ali mais de hora à procura do peito que se desabrigara dela e se escondera em algum canto do quarto. Mais adiante ele não foi. A porta estava fechada. Só podia estar ali, ao seu redor, tomando-lhe o tempo do sono, zombando da menina sem peito. Foi no meio das roupas sujas em cima da poltrona, numa camisa que ela um dia ganhou num concurso de inteligências, que o maldito se escondera. Quando ela o pressentiu, pôs suave a palma da mão sobre a camisa. Sentia o quente do peito, incandescente e expandido, batendo à espreita. Era sua caça da madrugada. Quando já não tinha mais saída, o dedo indicador e o polegar miúdos de menina grande pinçaram o peito num só golpe. Pegajoso, molhava a mão da menina. Vermelho, continha uma súbita explosão. A menina, prestes a lançar com asco aquele pedaço de carne para longe, lembrou que não tinha peito. E o recolocou no lugar, como quem segura um pássaro em pavor. Dormiria com ele, como num casamento, a atormentá-la noite
adentro.
(In: Dicionário de palavras subterrâneas. Brasília: Avá, 2021)
*
Domadora
Eu preciso te dizer algumas coisas. Mas
Antes de te dizer algumas coisas eu
Preciso me afastar das coisas
Pra que as coisas não me devorem antes
De eu te dizer as coisas que eu preciso te dizer
Pra que as coisas não te devorem
no vórtice
das coisas grandes demais
enquanto ruminam
Ruminam dentro das nossas cabeças
E me devoram
Eu preciso me afastar de você antes de te dizer
As coisas
Pra que você não me devore sentado nu um
soberano morando dentro de você
criado à minha imagem dentro da minha cabeça
Eu preciso me afastar de você das coisas
Enquanto sento aqui pra escrever que preciso me afastar das coisas
Pra domar as palavras imaginando
que estou domando
As coisas
Imaginando que estou matando você nu soberano
Só depois das coisas todas
mortas
Eu preciso te dizer algumas coisas.