Um conto e um poema de Laura Vasques de Sousa
Laura Vasques de Sousa. Nascida em Lisboa, no ano de 1978. Licenciada em Biologia Aplicada aos Recursos Animais (FCUL) e em Cardiopneumologia (ESTeSL), profissão que exerce.
Desde sempre rodeada de livros, leituras e escritas, foi apenas depois dos 40 anos que teve a lucidez de lhes fazer a vontade.
Autora do blog “Espólio” (lauravasquessousa.blogs.sapo.pt). Tem contos publicados em revistas e plataformas digitais. Em 2023, venceu o 12º Concurso Literário da Academia Madureirense de Letras com o conto “Vácuo” e ficou em 3º lugar no XXVIII Prémio Literário Hernâni Cidade com o conto “Os Pardais”.
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Vácuo
Fez rodar a chave na fechadura o mais devagar que conseguiu para evitar o estalido que poderia denunciar a sua chegada à vizinha do lado. Baixou o rosto, abriu a porta, apenas o suficiente para fazer passar o corpo para dentro de casa, e fechou-a imediatamente atrás de si.
Descalçou-se e largou os sapatos ao lado do vaso que, em tempos, alojara uma orquídea. Os restos mortais da planta tinham-se transformado nos alicerces onde uma aranha teceu o seu império, protegido de intempéries. Tirou o casaco e pendurou-o no cabide, às cegas, destruindo a teia de outra aranha com menos sorte.
Avançou suavemente em direção à sala.
Cheirava a mofo e a putrefação. A pouca luz que atravessava os vidros sujos das janelas cortava o ar em fitas baças salpicadas por partículas de pó em suspensão.
Sentou-se no sofá, os joelhos afastados, os braços apoiados nas pernas e a servirem de encosto para a testa.
Seguiu, com o olhar, uma fileira de formigas que emergia de um pequeno buraco no chão, num canto, junto à janela. Labutavam, atarefadas, na exploração de um pacote de biscoitos que jazia por baixo da mesa. No cimo desta, pratos sujos empilhados, garrafas vazias e um cinzeiro a transbordar de pontas de cigarros esmagadas competiam pelo espaço que escasseava.
Suspirou, com o olhar preso ao chão. Inclinou-se para a frente e passou a mão direita por baixo do sofá. Entre papéis amarrotados, meias sujas e latas de cerveja vazias, encontrou a garrafa que procurava. Tirou-lhe a rolha e levou o gargalo à boca. Sorveu parte do seu conteúdo que, de imediato, se transformou em lágrimas roliças que lhe deslizaram rapidamente pelo rosto até chegarem ao queixo.
Ergueu o olhar e fixou-o no relógio de parede que marcava nove horas e trinta e três minutos há, pelo menos, cinco meses.
Levantou-se e arrastou os pés, com a garrafa na mão, até chegar à janela. Abriu-a e inclinou-se para o exterior.
Ainda havia luz na rua, restos do dia. As copas das árvores, vistas do décimo andar, pareciam miniaturas das suas próprias sombras. Os carros e os chapéus de chuva abertos, formigas negras na sua azáfama anónima. A vida diminuída. A vertigem. O crescendo perfeito, no esplendor de poder voar.
Levou novamente o gargalo da garrafa à boca e deu um passo para trás.
Voltou para o sofá.
Houvesse coragem de pôr fim ao vazio.
*
Dissinergia
Eu
Querias sanar a tua agonia
A minha urgência não permitia
Fintava o tempo, cortava o pavio
Teu punho fechado continuava vazio
Querias mostrar-me o frio rebelde
Que te eriçava o pelo e arrepiava a pele
Meu corpo ardia sempre mais alto
Queimava por dentro, deixava-me farto
Querias selar a noite e o dia
Com mágoa, com ganas, sem cortesia
Arrancavas promessas no cume do calor
Poemas orgásmicos, tesouros sem valor
Querias estrelas, aleluias, oxalás
Que eu partilhasse as minhas coisas más
O lençol suado, o meu cheiro guardado
Tudo o que é mentira fora desse quarto
———
Tu
Ardor com sabor de sal
Dor com cor de ferro
Ventania que rouba o ar
Fogueira com cheiro negro
Frio que queima
Seduz
Teima
Clarão que abafa
Sufoca
Mata
Ergue-me sem me tocar
Derruba-me, sim!
Quisesse eu evitar
Pudesse eu culpar-te por mim