Um conto de Ângela Coradini
Ângela Coradini é poeta e editora na revista eletrônica Ruído Manifesto. Realizadora audiovisual e doutora em Cultura Contemporânea, pesquisa, escreve e desenvolve projetos que investigam as fronteiras entre o real e o absurdo.
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Invernos
Tempos atrás, amanheci antes de amanhecer, e no marasmo da espera pelo café, ouvi um ruído de água além muro. Devia ser alguém que rotineiramente amanhecia antes de amanhecer para aguar algo, talvez a alma, de suas plantas.
Como um daqueles momentos que, do nada, despertam algo que não cogitávamos, comentei com uma amiga “quero uma planta que se cuidasse quase sozinha”. Duzentos e quarenta quilômetros separavam a muda de Rosa do Deserto do meu quintal. Ela veio plácida, presa ao cinto de segurança, no banco do carro, trazendo consigo uma definição confortável “não precisava de muita água e é esplendorosa!”.
Aquelas flores magentas, de aparência frágil, mas de discurso forte, exibiam-se na minha pequena casa, ao lado da porta de entrada. Eram o testemunho de que eu podia cuidar de algo, além de mim. Mas instáveis andaram sendo nossos dias.
Nesses tantos meses em que divido minha vida com ela, quase a matei duas vezes. Na primeira, desmedidamente lhe dei adubo. A rosa ficou tomada só de flores, por tantos dias, então, todas as pétalas caíram. Exaurida, ela se entregou e restaram apenas os caules. Conselhos e mais dicas não me diziam, ao certo, como recuperá-la, só davam esperanças… “às vezes, entra em recolhimento, parece estar morta, mas só está quieta”.
Esperei ansiosa por semanas os sinais. Ela então foi, pouco a pouco, enchendo-se de pequenos verdinhos que contemplei manhã após manhã, transformarem-se em folhas. Com paciência as flores também voltaram. Escassas mas estavam lá, firmes. E nós voltamos a nos exibir, agora com cicatrizes, em frente à casa.
Mais foi então que chegou a maldita seca. O vento e aquele sol infinito que cozinha o céu e as sensações da gente. Acabei cedendo ao costume do discurso de que ela era forte, e a fiz sofrer pela segunda vez. Esqueci de regá-la e no desespero de vê-la murchar, devo ter afogado suas raízes. Ela inundou-se, enfraqueceu e eu chorei.
Chorei, abracei seu vaso pesado e a tirei de frente de casa, dos olhos da rua. Levei-a para o fundo do quintal, assisti suas rosas caírem e suas folhas despencarem. Apenas os caules se mantinham lá, eram testemunhas do meu descuido.
Esperei, foi preciso esperar, a paciência para que ela se curasse, pela segunda vez. Eu amanhecia. Eu a visitava, como quem abraça e olha no fundo dos olhos até ter certeza que está perdoada, até ter certeza que está tudo bem: “resista a mim, mais uma vez”.
Têm sido dias difíceis, para mim e para ela.
Numa sexta-feira a chuva prometia ser forte, e eu não sabia se a deixava lá, a céu aberto ou a protegia. E por não saber o que fazer, nada fiz. A chuva caiu. Dias depois, uma flor tímida ascendeu no extremo alto dos seus caules. Nada mais havia, apenas aquela única flor.
Sinto, daqui onde a contemplo, que a rosa sentiu dó do meu desalento e usou todas as suas forças para me dizer
“calma, eu estou aqui, posso respirar, você também.”
Ivy MENON
Comovente! Lindo!
Ângela Coradini
Obrigada, Ivy!