Um poema de Alberto Pucheu
Alberto Pucheu é poeta, professor de Teoria Literária da UFRJ e ensaísta. Como poeta, publicou Para que poetas em tempos de terrorismos? (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2017, e Porto: Exclamação, 2019), mais cotidiano que o cotidiano” (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013) e A fronteira desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007)” (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007).
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tensionando a vida em cabos de aço
estendidos
do extremo norte
ao sul das Américas
pontuando os vazios
e as imensidões
que atravessam
e os atravessam
buscando saídas
da morte
em barcos inflados
sobrecarregados
de perdas
pelo mediterrâneo
em campos
de refugiados
onde apesar de tudo
ainda tentam
sobreviver
por todos os lados
são os Estados
os exércitos as polícias
as bombas as balas
as fronteiras as moedas
as línguas as cercas
eletrificadas os muros
as discriminações
a morte qual será o som
desses cabos
tensionados
desses aços
desses mares
desses cactos
espetados por ponteiras
de ferro
a espetarem-nos
qual será o som
do espetado
qual será o som
do que espeta
nessa guerra sem fim
cada vez mais acirrada
qual será o som
dessas vidas
rasteiras miúdas
mimosas
mesmo que frágeis
tentando vingar
tentando se vingar
tentando
se fazer
valer tentando
se adequar
ao que encontrar
pelo caminho
tentando se desviar
para não
se ferir qual será
o som dessas vidas
montanhosas
cruzando continentes
com seus
excessos
cruzando continentes
pelas montanhas
com suas
carências
qual será o som
dessas vidas
marítimas
cruzando oceanos
em botes infláveis
superlotados
prestes
a naufragarem
qual será o som
dessas vidas
afundadas
precárias
grunhindo
entre o excesso
e a falta
na beira
de bares
essas vidas
de índias
desterradas
destribalizadas
tornadas pobres
mendigas
mulheres
desempregadas
sem conseguirem
pagar
seus aluguéis
suas roupas
suas comidas
pobres até
virarem
mendigas
moradoras de rua
que ruídos
emitem
essas vidas
doentes
perambulando
pelas cidades
buscando
em algum lugar
uma ancoragem
qualquer
impossível
que ruídos
que sons
são esses
escutados
por quase ninguém
que grunhidos
são esses
a jamais
ecoarem
por outros
ouvidos
por outros
poros
por outras
vidas
mas que quando
se está em um
bar qualquer
num sábado
à noite
do centro
de uma grande
cidade
arruinada
podem emergir
bem ali
ao seu lado
à sua frente
dentro de você
adentrando você
por ser a voz
de uma filha
de potira
que a escuta
perdida
esparramando
mostarda
na mesa
movimentando
os dedos
na pasta amarela
levando-os
à boca
para falar
o que seria
inaudito
contando
que na noite
de ontem
choveu muito
debaixo
da marquise
tendo ficado
toda molhada
encharcada
ensopada
debaixo
de seus
sessenta anos
sem ter conseguido
os R$12,00
para pagar
a pensão
em que dorme
e toma banho
quando raramente
consegue
vender 3kg
de latinhas
para o ferro velho
explicando-me
que 1kg são 45
latinhas
que quem lhe dá
comida
depois de uma hora
da manhã
escondido do dono
é o toninho
um dos garçons
do restaurante
em que estamos
que ele é
como um filho
para ela
que tem leucemia
mas que o médico
disse que ela não vai
morrer disso não
afinal ela é dona laura
filha de potira
ela saiu
de sua tribo
na amazônia
na fronteira
da venezuela
aos 27 anos
porque chico mendes
fora assassinado
e o cacique
da tribo
e os caciques
das tribos
aliadas
de chico mendes
que tanto ajudou
os índios
resolveram vingar
sua morte
declarando guerra
de homens
guerreiros guerra
de índios aos homens
brancos
guerra perigosa
a tornar perigosa
a permanência
das mulheres
nas tribos
a levar as mulheres
para o primeiro
exílio a levá-las
para manaus
onde morreram
assassinadas
doentes estupradas
pobres mendigas
pelas ruas becos
docas rios
mas ela
é filha de potira
ela sobreviveu
se mandou
para o rio grande
do norte
para o rio de janeiro
onde ficava
pela central
do brasil
onde jogaram
gasolina nela
enquanto dormia
para tocarem
fogo nela para
matarem ela
índia pobre mulher
mendiga pela central
do brasil
onde tentaram
estuprá-la
mas ela é filha
de potira
se safou
sobreviveu
se mandou
para são Paulo
em cujas ruas
do centro vive
até hoje
amando os gays
amando as travestis
cheia de sonhos
de línguas
estrangeiras
mas por que a senhora
não volta
para sua tribo
eu perguntei
a ela ela me disse
porque meu corpo
é um corpo doente
um corpo vacinado
um corpo
doente minha tribo
não tem contato
com branco
não fala português
eu falo tupi-guarani
se eu voltar
para minha tribo
meu corpo doente mata
as pessoas de lá
você não está
entendendo
meu irmão
tem cento e dois anos
é o cacique da tribo
minha mãe teve 22
filhos homens
só depois eu nasci
a primeira filha
a única mulher
eu era mulher
do pajé
não posso voltar
para eles
se eu voltar
para a tribo
eu mato eles
com as doenças
que trago no corpo
já voltei
algumas vezes
nem me sinto mais
muito bem
por lá
eles não falam
português
ela me disse
chorando
tragicamente
desenraizada
de todos os lugares
desenraizada
de todas as pessoas
desenraizada da tribo
da cidade
de todos os lugares
desenraizada
dela
num bar
de uma grande
cidade
arruinada
onde
pode emergir
bem ali
ao seu lado
à sua frente
aqui
adentrando você
a voz de outro
alguém a voz
de outra mulher
a voz
de dona leila
uma voz igualmente
inesperada
sofrida
pobre
que sem
conseguir pagar
seu aluguel
por 7 meses
encontrou
o movimento
dos sem teto
do centro
conseguindo
morar no hotel
cambridge
ao qual voltará
quando acabar
a obra financiada
pela caixa econômica
e pelo governo
estando
no momento
na 9 de julho
tendo a chave
da galeria
reocupa
na qual mostra
a instalação
de nelson
felix para nós
dizendo que quer
ver o trabalho
dele na bienal
apontando
para nós
a horta comunitária
que um projeto
da universidade
está fazendo
na ocupação
que tem show
de muito artista
na ocupação
que dória mora
perto só botou
polícia e lata
de lixo na rua
que a políca
chega logo
que eles ocupam
que haddad ia sempre
na ocupação
almoçava sempre
com ela e com todos
comia no prato
deles a comida
que elas faziam
contando para nós
sua vida
sofrida
sua vida
de pobre
sua vida
de desempregada
a ter encontrado
o movimento
dos sem teto
do centro
na praça
dizendo que
as pessoas
dizem que tem
bandidos na ocupação
que tem drogas
na ocupação
não tem nada
disso ali
na ocupação
ela disse
eles não deixam
ali dentro não
dona carmen
não deixa
de jeito nenhum
semana passada
no quarto andar
um marido bateu
na esposa
os homens foram lá
botaram o marido
para fora na rua
expulsaram-no
da ocupação
ele não pode mais
voltar para ali
outro dia
houve uma tentativa
de estupro
de uma adolescente
os homens foram lá
e expulsaram
quem tentou estuprar
a menina
a dona carmen
é muito forte
botou câmeras
em todos os andares
é ela quem escolhe
os prédios
ilegais a serem
ocupados
beneficiando
um monte de gente
pobre desempregada
como ela que ela
tem muito orgulho
da ocupação
quer ocupar mais
prédios ilegais
que não pagam
impostos
para beneficiar
outras pessoas
como ela
foi beneficiada
pelo movimento
ao ter um lugar
para morar
para não morar
na rua
por não conseguir
pagar aluguel
por estar
desempregada
por ser pobre
ela quer ajudar
outras pessoas
pobres a terem
onde morar
porque se a pobreza
é indigna
mais indigno ainda
é a pobreza
de quem não tem
onde morar