Um poema de Luciene Carvalho
Luciene Carvalho é escritora e poeta. Publicou Conta-gotas; Sumo da lascívia; Aquelarre ou o livro de Madalena; Porto; Cururu e Siriri do Rio Abaixo (Instituto Usina); Caderno de caligrafia (Cathedral); Teia (Teia 33); Devaneios poéticos: coletânea (EdUFMT); Insânia (Entrelinhas) e Ladra de flores (Carlini & Caniato). Essas obras conquistaram prêmios e condecorações. Parte importante do seu trabalho como declamadora se faz em shows poéticos em que une figurino, efeitos cênicos e trilhas musicais para oferecer sua poesia viva e colocá-la a serviço da emoção da plateia. Luciene ocupa a cadeira n. 31 da Academia Mato-grossense de Letras. O poema “Periférica” integra o recém-lançado Dona (Carlini & Caniato, 2018).
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Periférica
Não sou nova
nem sou antiga,
sou inteira.
Na astrologia chinesa
sou serpente de madeira.
Pra rebater dor no corpo
tomo chá da casca da aroeira;
quando é pra falar,
falo à minha maneira.
Já é madrugada,
não dá nada
se alguns consideram
estes versos
apenas uma besteira…
Poesia é assim mesmo:
começa e não tem fronteira.
Costumam considerar,
classificar, rotular
– sei lá –
meu verso como popular…
Já tá passando da hora
de eu fazer a correção:
meu verso é periférico;
pulou o muro,
entrou pela janela,
veio pela entrada de serviço
– eu sei disso.
Meu verso é pardo
como meu país.
Meu verso é onde guardo
o olhar que tenho do mundo
que vejo da janela
do fundo
do ônibus,
da calçada
andada a pé.
Meu verso tem pé na rua,
sua sob o calorão.
Não tem ar-condicionado,
não tem horário marcado,
meu verso é feito à mão.
A mesma mão
que faz a comida
faz a rima,
faz a compra no mercado
como dinheiro contado;
quando passa o cartão:
débito, por favor.
Meu verso é meu maior amor,
mas sabe o susto na conta
que chega da água e da luz.
Meu verso faz corre pra pagar:
se vende em livro,
se vende em show.
Meu verso não é só difusão literária;
é carga horária,
conta bancária,
trabalha por mim.
Na periferia é assim:
tem que trabalhar
pra não cair pro crime
e o verso assume
seu papel:
meu verso
é meu fiel,
minha esperança,
meu sonho,
meu sustento,
meu alento
e meu tamanho.
Sou poeta
no vazamento,
na telha precisando de conserto,
na batalha pra comprar uns panos.
A identidade periférica
no passar dos anos
desprende-se da vergonha,
desfaz-se da cor tacanha
e se assina;
assassina a barreira social
que me limita
e grita
pra minha escrita:
é bonita
é bonita
e é bonita.