Um poema de Rodrigo Naranjo traduzido do espanhol por Caio Vinícius Silva
Rodrigo Naranjo (Santiago, 1971). Poeta, ensayista e investigador. Autor de La Muerte y La Figura (2005); Para desarmar la narrativa maestra, un ensayo sobre la Guerra del Pacífico (2011); Apartados, la máquina de tortura del testigo de los alimentos (2011); y Descabellado ¿Qué es eso? La dinámica del cautiverio (2016). También ha publicado diversos artículos sobre Literatura Latinoamericana, el barroco, las escrituras de la guerra del Pacífico y la construcción de los imaginarios de la nación en Chile, Perú y Bolivia; los regímenes del cautiverio a través de narrativas pasadas y presentes de la colonización de esclavos e indígenas en las américas. Ha traducido del inglés al castellano artículos sobre la obra del filósofo chileno Francisco Bilbao; la formación del canon en las narrativas angloamericanas de la esclavitud y la creación de Cuarto Mundo. Todos estos textos publicados en las revistas Aisthesis, Archivos de Filosofía, Papel Máquina, Escrituras Americanas, La Cañada, Simpson 7, Mar con Soroche, Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, entre otras. Recientemente su libro Apartados fue reeditado en una edición bilingüe e ilustrada al inglés por la editorial El Sur es América (2022), la primera edición en castellano y portugués fue traducida por Cristiano Moreira y Miguel Rodríguez. De su experiencia como investigador destaca su trabajo como Secretario del Laboratorio de Desclasificación Comparada codirigiendo la publicación de los Anales de Desclasificación Comparada. Por una década residió en diversas ciudades de los Estados Unidos. En 2018 hizo una residencia como escritor invitado en Johannesburgo, Sudáfrica. Actualmente mora en Santiago de Chile y prepara la publicación de su libro de ensayos, narraciones y poemas Cor de Saúva traducido al portugués por Caio Silva y Eleonora Frenkel.
Caio Vinícius Silva (@caio_sobrenome) é poeta, performer e tradutor. Profissionalmente, ensina português para pessoas estrangeiras, revisa, traduz e edita livros e textos. Co-fundador da editora independente Revistaria (@revistaria_) e co-organizador da revista de arte contemporânea Anturragem (@anturragem). Estudante do último período da graduação em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem artigos e trabalhos publicados e apresentados na área da Teoria Literária e Literatura Brasileira e atualmente pesquisa na área de Tradução Literária e Teorias da Tradução. Organizou, juntamente com outros artistas de Florianopólis, o Núcleo d’Explosão da Palavra — grupo de leitura e de performances a partir das Galáxias, de Haroldo de Campos. Duas de suas traduções estão nos processos finais da publicação: Cor de saúva (uma tradução do livro de ensaios Color de hormiga, de Rodrigo Naranjo, a ser publicado pela editora Papel do Mato) e This is not a trance (versão para o inglês do livro Isto não é um transe, de Vivianne Moureau, a ser publicado pela editora Revistaria em parceria com a Casatrês).
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Tímon, o misantropo dos pés pequenos
Neste poema, Rodrigo Naranjo trabalha com algumas figuras da misantropia, partindo de Tímon, passando pelo kafkiano macaco Pedro Vermelho, por Narciso e pela ninfa Eco, e outras personagens até chegar em Santiago, a figura que animava cristãos e espantava mouros na reconquista cristã da Península Ibérica; e que, da mesma forma, sob o nome de Santiago Mata-índios [1], aterrorizava os nativos da Costa do Pacífico Sul na conquista cristã do Chile.
“Tímon de Atenas” é uma peça teatral de William Shakeaspeare em que se retrata a história do misantropo ateniense Tímon. A palavra “misantropo”, do título, ressoa por todo o poema, que é, aliás, construído de uma forma encadeada em que cada parte ecoa na seguinte; sendo a figura da ninfa Eco central na montagem desse jogo.
Há temas, no poema, em que o leitor brasileiro poderá perceber semelhanças com o nosso modernismo, como na segunda parte, em que, depois da alunissagem, vem uma grande exploração do espaço exterior, assim como acontece n’“O homem; as viagens”, de Carlos Drummond de Andrade. Um movimento semelhante entre os dois poemas está no final de ambos [2]: o olhar para si mesmo, em que se vislumbra um certo abismo: “do espaço exterior quão funda é a ausência do homem no homem/ em expansão”.
Na continuação, surge a imagem de um Rimbaud, já longe da civilização, em alto mar, vendo a imagem de albatrozes sendo despedaçados por marinheiros ferozes. E aqui é impossível não lembrar do Albatroz de Baudelaire, retratado como “O monarca do azul” e “príncipe da altura”, que perde sua força quando “exilado no chão” no meio de muita gente. Nesta mesma parte, surge a ninfa Eco, condenada a viver isolada nas montanhas, repetindo o final dos sons escutados. E, de acordo com alguns dos mitos que envolvem seu nome, foi responsável pela morte de Narciso. Ressoando, assim, o final da parte 2 na parte 3 do poema.
No trecho seguinte (nem besta nem santo), há referência a Marx, que cita a peça shakesperiana para criticar as qualidades misantrópicas do dinheiro, que joga humanos contra humanos.
Na quinta parte do texto (Tick tack de Míster Ted), há a explosão quando o poeta alude ao famoso ecoanarquista Theodore Kaczynski, o Míster Ted, conhecido também como Unabomber. Seu manifesto contra a tecnologia e a industrialização “A Sociedade Industrial e o seu Futuro” ressoa no verso “má máquina”. Assim como ecoa sua ideia de destruir a civilização (tal qual Tímon tentando destruir Atenas).
Neste poema, no entanto, Tímon ocupa uma cidade já condenada [3] e é este sentido que segue a ideia dos pés pequenos: pegadas (e ecos) que se repetem e ao mesmo tempo se apagam.
O poema segue se interconectando. Na parte 6, por exemplo, é retomada a ideia de míster Ted de paralisar a evolução [4]. Assim como aparecem imagens que nos remetem a outros misantropos da história como os personagens de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, como o Coelho Branco e o Chapeleiro Maluco.
No final, numa espécie de sebastianismo às avessas, há a previsão de que “renegado Santiago voltará ao mar de tua origem inclemente”. Assim, volta ao mar o Santiago, que, depois de ser transformado em guerreiro na Espanha, sob o nome de Santiago Mata-mouros, chega ao Chile com uma iconografia readaptada na figura de Santiago Mata-índios.
Sobre a tradução:
O fato de os versos serem livres, de certa forma, facilitou a vida do tradutor por um lado; mas como a tradução — tal qual o deus bifronte Janus dos romanos (deus, aliás, da transição) — tem (quase) sempre ao menos duas caras, há também uma grande dificuldade: a sonoridade de rimas internas, como “condena” e “desencadena” na primeira parte do poema. Neste caso, a solução foi recorrer à rima toante “terrena/desencadeia”, para não perder a potência do verso.
Em relação a termos que podem soar estranhos aos olhos e ouvidos do leitor brasileiro, escolhi deixá-los mais próximos do texto de partida propositalmente, normalmente privilegiando a sonoridade e a experiência proporcionada ao leitor interessado em uma cultura estrangeira. Acredito não ser uma grande perda; não só por ser uma tradução pensada para ser publicada de forma bilíngue, mas também porque faz parte do próprio estilo do autor esse barroquismo [5] em que se chocam o presente e o passado.
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[1] A figura do apóstolo de Cristo passa por algumas transformações na história, criando a iconografia de um São Tiago guerreiro.
[2] “[…]/ só resta ao homem/ (estará equipado?)/ A dificílima dangerosíssima viagem/ De si a si mesmo:/ Pôr o pé no chão/ Do seu coração/ Experimentar/ Colonizar/ Civilizar/ Humanizar/ O homem/ Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas/ A perene, insuspeitada alegria/ De con-viver.” (https://www.ihu.unisinos.br/categorias/43-oracoes-inter-religiosas-ilustradas/602744-o-homem-as-viagens-carlos-drummond-de-andrade-na-oracao-inter-religiosa-desta-semana)
[3] Santiago de Chile é uma cidade que se funda duas vezes e este é um tema de conversas e debates sobre os mitos de origem do lugar.
[4] Lembrando também da rápida evolução de Pedro Vermelho de macaco para humano numa possível variação irônica da teoria de Darwin (outro nome que aparece neste trecho).
[5] O próprio Tímon é visto pelo autor como um personagem barroco, alternativo a Calibán, Próspero e o Ariel do mundo shakespeariano.
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Tímon, o misantropo dos pés pequenos
Que a pedra de minha tumba seja vosso oráculo
Tímon de Atenas
1 .
Cada manhã as águas se encarregam de limpar os restos de tua humanidade
nome descendência ancestrais
quem se aproxima de tua árvore se enforca
bendita condenação terrena te desencadeia
dissipa-se a névoa iracunda
conserva a margem o molde
epitáfio ilegível
saia longe daqui
2.
Será que buscas voltar a sonhar como Pedro Vermelho
oh menino selvagem de Aveyron
quando sonhos não havia
intrépido ainda mais símio
mais lobo
continuava sem interrupção
será que recobras de improviso a memória inúmera do povo perdida
precioso instante de lua ingente
depois da alunissagem todo mundo observa de outro lado
consciência planetária
ventre castigador
Narciso astronauta
do espaço exterior quão funda é a ausência do homem no homem
em expansão
3.
Eco maldita
Deslumbrado olho de peixe
Rimbaud subiu na nave
levou âncoras
conheceu marinheiros ferozes
despedaçavam albatrozes
ai terra mãe
aonde foste
aonde foste
desapareceste deixando baldia a amizade
tantas Vietnam
Palestina
Afeganistão
Eco maldita
desengane-te de tua humanidade
4.
Nem besta nem santo
Relambendo crostas deixadas
homem inimigo do homem
coraçãozinho de Marx
anti-econômico muchacho
extraviou de um empenho
completamente alienado
trabalhando na obra terminal da consciência
faça o pior
faça-o pior
mira como bem resultam os acabados do inferno
5.
Tick tack de Míster Ted
Guarda a caixinha o autógrafo de Míster Ted
escrito com tinta invisível
um regalo
oferenda presente
carta do olvido
borrador
não é nenhum segredo
má máquina
em companhia de um
exit somente
6.
Coelho em seu chapéu
Em que você se converteu misantropo?
animal sem nome gênero nem lei
Darwin duvida seriamente de sua natureza
mas não da existência
anatema
antimatéria
porque as criatura vivem em pares
ainda que sejam inusuais
pentragruélico montanhês
da incongruência com o destino
espécie cômico
espírito trágico
qual escaravelho
pés pequenos
arrasta paciente uma bolinha de excremento
escondendo laranjitas no relógio
quer paralisar a evolução
traga sua língua
estrondoso o silêncio ameaça
enrosca-se no final
giram as areias do tempo
7.
Espada Flor
Hilariante o misantropo é um ser que recebeu um dom desnaturalizado
contra-regalo para todos os presentes
para ceia chá de ervas
abre-se futuro clarividente
rompe o feitiço
osso e pedra
sol queimante acusa
a contramão flui gente contra gente
desborda o desejo um charco de prata
estrelada de espanto a mente amuralhada cede
renegado Santiago voltará ao mar de tua origem inclemente
que os raios do sol se apartem
deixem trabalhar as águas na orla
///
Timón, el misántropo de los pies pequeños
Que la piedra de mi tumba sea vuestro oráculo
Timón de Atenas
1.
Cada mañana las aguas se encargan de limpiar los restos de tu humanidad
nombre descendencia ancestros
quien se arrima a tu árbol se cuelga
bendita condena de la tierra te desencadena
se disipa la niebla iracunda
conserva la orilla el molde
epitafio ilegible
sal lejos de aquí
2.
Será que buscas volver a soñar como Pedro el Rojo
oh niño salvaje de Aveyron
cuando sueños no había
intrépido un todo más simio
más lobo
continuaba sin interrupción
será que recobras de improviso la memoria innúmera del pueblo perdida
precioso instante de luna ingente
después del alunizaje todo mundo observa desde otro lado
conciencia planetaria
vientre castigador
Narciso astronauta
desde el espacio exterior cuan honda es la ausencia del hombre en el hombre
en expansión
3.
Eco maldita
Deslumbrado ojo de pez
Rimbaud se subió a la nave
levó anclas
conoció marinos feroces
despedazaban albatros
ay tierra madre
dónde te fuiste
dónde te fuiste
desapareciste dejando baldía la amistad
Tantas Vietnam
Palestina
Afganistán
Eco maldita
desengáñate de tu humanidad
4.
Ni bestia ni santo
Relamiendo costras quedas
hombre enemigo del hombre
corazoncito de Marx
anti económico muchacho
extravío de un empeño
completamente enajenado
trabajando en la obra terminal de la conciencia
haz lo peor
hazlo peor
mira qué bien resultan los acabados del infierno
5.
Tick Tack de Mister Ted
Guarda la cajita el autógrafo de Míster Ted
escrito con tinta invisible
un regalo
ofrenda presente
carta del olvido
borrador
no es ningún secreto
mala máquina
en compañía de uno
exit solamente
6.
Conejo a tu sombrero
¿En qué te has convertido misántropo?
animal sin nombre género ni ley
Darwin duda seriamente de tu naturaleza
mas no de la existencia
anatema
antimateria
porque las creaturas vienen en pares
aunque sean inusuales
pantagruélico montañés
de la incongruencia con el destino
espécimen cómico
espíritu trágico
cual escarabajo
pies pequeños
arrastra paciente una bolita de excremento
escondiendo lulos en el reloj
quiere paralizar la evolución
se traga su lengua
atronador el silencio amaga
se enrosca en el final
giran las arenas del tiempo
7.
Espada Flor
Hilarante el misántropo es un ser que recibió un don desnaturalizado
contra regalo para todos los presentes
para la cena agua perra
se abre futuro clarividente
rompe el hechizo
hueso y piedra
sol quemante acusa
a contramano fluye gente contra gente
desborda el deseo una charca de plata
estrellada de espanto la mente amurallada cede
renegado Santiago volverás al mar de tu origen inclemente
que los rayos del sol se aparten
dejen trabajar las aguas en la orilla
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Caio Vinícius Silva: