Um poema de Roger de Andrade
Roger de Andrade é natural de MG. Em Belo Horizonte foram lapidados seus anos de aprendizado e sua educação sentimental. É graduado pela FACE/UFMG, mestre pela Unicamp e doutor pela Universidade de Londres (UCL), com pós-doutorado pela Universidade Paris XIII Nord. Atualmente, é professor da Unicamp. É autor dos livros de poemas Nenhuma Poesia e Flores em Escombros (inéditos) e do romance Memórias Sentimentais de um Gauche na Vida (publicado pela Ed. Reformatório), além de outros trabalhos in progress, tanto em prosa como em poesia. Já publicou na Ruído Manifesto o poema “meia quatro (o que é)” e a coletânea Abecedário Amoroso.
Email: roger.andrade@uol.com.br
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Elegia (Novo?) Milênio
(The Waste Land, Reloaded)
Venho eu caminhando, matutando,
em uma rua qualquer, esburacada,
tarde, noite ou manhã, não sei dizer,
na selva de drones, câmeras, algo/ritmos,
buzinas, ar-água-solo, polutos,
mercadorias, merdas, dores, me espiam.
Carregado de mim ando no mundo,
carregado de mundo ando em mim,
palmilho, inlasso, o reino das palavras,
curioso, ante tanta maquinação:
mundo, corpo, terra, pedra, sertão,
tudo, tudo, pura devastação.
Mas a máquina, o monstro, o verme, horrores,
me empurram para a explosão das formas:
será a única solução?
Lá fora, vermes, monstros, máquinas me/nos convocam
cá dentro, palavras me cavucam:
pode a ruína ruminar o radioso canto?
A grande máquina fabrica monstros
a máquina selvagem verte vermes,
vertigens, vômitos, vórtices, ávidos.
A máquina gangrena a grafia do sonho
pinta úlceras na paisagem branca
sua matéria prima, a relíquia bárbara,
a contradição em processo,
o valor que se valoriza,
obscurece o horizonte.
A máquina mói mores
mares, morais
desfolha ideais
esfola afetos
semeia tumores
colhe tormentas
estrondos, tremores.
A máquina espessa
ceva, ceifa, cega
o cuidado do outro.
O monstro corrói afetos
pensados e sentidos
os ares de eros
beijos, abraços meros
memórias.
O monstro demonstra o que mostra
o corpo, a terra, carcome por dentro
no centro, no ventre.
Os bichos que o monstro menstrua
sonham nossas entranhas
entranham nossos sonhos
nublam as manias de um novo avenir
gaiata a gala de gaia
futura uma natureza lesa
deixa fera a biosfera
despluma as plantas do planeta
(desplante!)
o planeta (des)terra:
berra a mãe-terra.
Chuva, rio, mar, nuvem: me dito:
a vida no corpo, na terra, é um ciclo.
O verde se degrada
o azul se degrada
o vermelho se degrada
o arco íris do mundo
(degredo)
nada o agrada.
(Que praga, seu peste!)
O verme sem verve
germina no ovo
da serpente, se esboça como serpente
tem medinho do novo
sonha a nostalgia dos tolos
até aí, nada de novo.
O verme tudo corrompe:
pátria, deus, família, polis
a besta bruta blasfema
a noite a manhã violenta.
Que os vermes falam fezes
já saquei tantas vezes:
é desgraça sem graça
que escorraça sua graça
que desgraça sua raça
bota praça, mordaça
faz pirraça e arruaça.
Seu brinquedo preferido?
pós-verdade, pré-mentira,
insulto à inteligência
inculta violência
simplista, maniqueísta
insano obscurantista
bebe na ingaia inciência
mas um dia se curva à turba,
ao triunfo dos livres, justos
da verde verdade vera
verdade verdeamarela.
O mais cruel dos meses são todos.
Seres rasos se arrastam na terra árida
onde não há trem azul
nem floração multiforme
onde tudo é desoceano.
Tropeço em ares sujos
matas desoladas
gelos chamuscados
água acidulada
“campos soterrados
de cinzas infecundas”
casas com piscina
casas sem banheiro
casas com morfina
casas, bem maneiro
que se shopping centram:
esgotos escrotos.
Uns dizem retrotopia
outros, horror, distopia
uns dizem sim
outros não tão
me parece o estopim
pra tanta indignação.
E sua, nossa, vida?
dádiva da diva?
pura construção?
(no deserto?)
ou teleologia?
cadê o novo céu?
ou uma nova terra?
para quem tem sede?
para quem tem fome?
de pão, água e fogo?
Aceito a chuva
mas não a guerra
o desemprego
a injustiça
e, sim, quero, posso, mãos dadas, dinamitar a ilha da fantasia.
Agora pós-tudo
tudo muda
tudo chama
o poema livre, a poesia impura, o verso negro.
Opressão?
Repressão?
Supressão?
Depressão?
Expressão.
O que veem meus olhos cansados:
mariana, brumadinho,
nada lá vale
pico do cauê
onde está você?
serra do curral
deságua mineral
serra do curral: fachada
metáfora do estrago
no nada
rio doce, amargo,
amarga descaso
o velho chico, nasce na canastra,
morre na triste bahia
queimada, desmate, garimpo
não, não tem nada limpo
fêmeas, serras, índios, rios
nada escapa a seu arrepio
museu nacional, favela
põe tudo na conta dela
amazônia nas chamas
(não, não são, penso em vão,
amazonas em chamas!)
o recado da mata
o recado do morro
lama, detrito, destroço
me dá tudo um troço.
O que veem meus olhos cansados:
moralistas hipócritas bestas desembestadas brancos limitados racistas incendiários
reacionários otários neoliberais irracionais eficientes incompetentes burgueses
irrelevantes bufões ufanistas boçais ignaros bárbaros racionais parvos motivados mulas desmioladas antas paralíticas …
O que veem meus olhos cansados:
estado de exceção vida líquida estado de exclusão vida bandida povo da mercadoria
feitiço da mercadoria mais-valia xenofobia alienação exploração desejo frio sorriso
cinza seca dos afetos laços liquefeitos corrosão solidão auri sacra fames angelus novus …
O que veem meus olhos cansados:
o paraíso perdido
a giesta do deserto
a terra desolada
a máquina do mundo
a rosa radioativa / com cirrose (cadê a pluriaberta?!)
o cão sem plumas
o poema sujo
a queda do céu.
O que veem meus olhos cansados:
o duro mundo de drummond
o manual de manuel
a mente de mendes
a clareza de clarice
os amores de moraes
o mel (?!) de melo
os cabras de cabral
os chistes de hilst
a gula de gullar (turva)
os prados de prado
o campo dos campos.
Sobre o que
verso?
(des/con/tergi/verso?)
verso reverso?
inverso?
converso?
adverso?
anverso?
perverso?
diverso?
controverso?
universo?
multiverso?
subverso?
Transverso.
Poesia: séria
brincadeira
com a língua.
O poema:
trama de palavras, lavras
saturnino renitente
porta para o infinito
às vezes, só ouve estrelas
às vezes, roça as veredas
as ruas da resistência
a alameda do alarido
areja o sufoco, o grito
recusa, rói a reação
artefato antisséptico:
a máquina, o monstro, o verme.
No caos do acaso
da contingência
onde não chega
perto a ciência
no caos do ocaso
no cosmo da gosma
penetra um cometa
torrente de luz
o poeta caminha
um gauche na vida
(besta)
na noite sinistra
na tarde sem vida
aviva o véu d’alma
almeja a partilha
expecta quereres:
a comunhão dos comuns.
Minha língua
tem sotaque
lá de minas
deus lhe pague
(não é blague)
A geo-meta-física
das minas geraes
me ampara, me apara
como o pasto o boi
“eles conversavam
entre si e com o homem”
como a serra a lua.
A chama do tempo
chama o chão de ferro
as veredas de ouro.
Quisera ser tão sertão
salvar a mata que matam
descerrar o desterro
das serras, do cerrado
florar esta flor, esta
no que resta da floresta.
Não faço poema ruguento
quinem xexelento
não judio palavras
chucho um cadinho de vida
(se tiver)
no encardido desgramado
não compro verso na mão de ninguém
mas um tiquinho de ardor
me deixa adoidado:
duro pelejar com este troço
(não é troça)
Onde o horizonte era (é?) belo
tengo como bandera el cielo
as damas da noite flambam
belorizontinamente
o sono rubro do tempo
um acerbo sentimento
do fundo da noite
eu espero chegar
um grande país.
“No lixão nasce flor”
tá ligado, chapado?
rosa do povo? do morro?
ginestra no deserto?
íuca em floração branca?
cava o tédio, o nojo, o ódio?
ou é o poema a flor?
que antena em quarentena
um nada luminoso
um tudo opaco
o rumor impreciso
o mel mais impuro
a náusea brilhante
no tempo suspenso
o silêncio dos seres
o coração das coisas
a pressa das esperas
na música das esferas
acende chama no real
o poeta se funde ao poema: poet/ma.
O que/m lá vai? o poet/ma?
onde? como? quando?
na contramão?
a sangue-frio?
à queima-roupa?
a palo seco?
: é a capela
velô sem vela
a contrapelo
a contravento
o poet/ma grande
cria/mos o novo céu, a nova terra
para quem tem sede, fome,
de água fogo terra vento
evoca o passado
provoca o presente
convoca o futuro
o grito rouco
o duro confronto
“o suspiro da
criatura opressa”
recusa o vazio entre
existência e canto
canto coral: encarnado, coletivo
mundo e palavra
o fugaz e o perene
os olhos vencem o abismo
a acídia da torre de marfim
o poet/ma
arte/fato anti tudo
ato est/ético anti escombro
sede da sede
ascende a ação salvadora
cisma a comunhão cidadã
ordena o “estado de
bagunça transcendente”.
Never more!?
I would prefer not to!?
Ai! que preguiça!?
Nexo, next, nex – neca!
É agora, José!