Um poema/díptico de Maíra De Benedetto
Maíra De Benedetto vive e trabalha em São Paulo.
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Díptico
Composição para um problema de diferença e imagem, como também de glória
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Segunda composição para um problema de diferença e imagem, como também de glória
Composição para um problema de diferença e imagem, como também de glória
1.
Post Scriptum *
Na eternidade morna
enclausurada na morte da paisagem
e a cabeça de ferro batendo contra o sino caído
árido e pesado
teu espírito está fora do corpo
tuas mãos
teus ouvidos apertados,
Atacama se encontra em Jerusalém, enquanto Igitur se encontra com Ulisses
e Godot espera a morte, que entoa para Simone Weil:
a justiça não encontrará tua santidade, e a linguagem não transcenderá o humano, e nem
a si mesma. Os operários dividem o pão todos os dias à mesa ao mesmo tempo em que
o pão recusa a práxis
e sempre em direção à noite,
e ao sacrifício de tua carne
na boca do texto de teu deserto, dentro da guerra
palavra que rompe o espectro, phantasmata da loucura
na figura do mundo que chega invariavelmente às mãos
que atravessa teus sentidos, antes de tua presença, e fora dela, linguagem do incorruptível e
inegável sofrimento dos homens
ali mesmo no corredor
em todas as paredes que esperam
ali mesmo na distância, no tempo que volta
no círculo que atravessa os cantos,
ali mesmo teu suicídio
ali mesmo tua ode
e ali mesmo tua graça
corpo que se apresenta em meio a uma topologia de morte
matéria
nuca
crânio
linguagem do mundo dos fatos
enquanto que de pedra percorre teu silêncio, ao passo que ecoa e comporta a gravidade
que seja tua natureza
ao passo que abre ao limite o que te tem de corpóreo, abra o espaço no limite do
movimento. É possível estar no corpo mesmo estando fora dele.
2.
Olhar o plano das árvores
presença que te abre aos olhos da mata
e os troncos firmes no espaço
abrindo um espaço movente
olhar o plano das árvores
quando não se tem clareira
e terra nos pés
seu luto é um poço de piche porque sua violência é permeada por uma matéria inerte
e pensa que atirava três pedras
três pedras na noite
no rio
imergindo as ancas, na falta de um rosto,
o corpo todo no corpo da mata
nesse alento soando as preces
e guardado de ouro, aquele trepidando à frente
com os fios de signos junto das águas do peito
tentando ao caminho,
ao espírito ou casa ou uma só palavra para tudo,
e então?
não querer teu rosto em meu juízo
não querer dizer, teu rosto em meu juízo
em deus não querer morrer
foram clamados pela história
foram clamados pela história fora de seu tempo
e quando em punho poderia realizar-se
entre o tempo da imagem própria e o tempo de uma flecha que paira infinitamente imóvel em
todos os seus vetores, poderia realizar-se exatamente onde ela escapa, exatamente quando
a força violenta de um único corpo em seu concreto vai ao encontro do que o atravessa
os antigos sempre nos disseram das virtudes, o que conseguimos em nossa prática é somente
saber que fraqueza é ferir a dignidade, e ainda ferir até sua impossibilidade,
a imagem da história será dada ao olho da barbárie
enquanto alguns confiam – “a história me absolverá”
muitos poderiam matá-lo
mas como toda coisa que morre, deverá ser somente a modo de sacrifício
(a terra que vem à água que vem ao fogo que vem à água que vem à terra).
3.
Segunda composição para um problema de diferença e imagem, como também de glória
1.
os papéis escapam das mãos
e permanecem dias,
como se à espera de uma contra-história ou abandonados ao peso do tempo
para escrever é preciso um hiato
uma hesitação
o caminho da luz.
Muitos são perseguidos
e considerar que figurações de um mundo se colocam também aos fatos possíveis, permanecemos mexendo nas imagens e na face opaca da história.
2.
“Quero ser enviada novamente à França com instruções precisas e uma missão – perigosa por escolha – no trabalho clandestino… Eu acolheria qualquer grau de perigo se somente pudesse fazer alguma coisa realmente útil. Minha vida não vale nada para mim enquanto Paris, minha cidade natal, estiver sujeita à dominação alemã. Nem quero que minha cidade seja libertada somente com o sangue de outros. (…) A dor e o perigo são indispensáveis por causa da minha conformação mental. (…) O infortúnio que cobre a superfície do globo terrestre obceca-me e oprime-me até ao ponto de anular as minhas faculdades, e eu não conseguirei recuperá-las e livrar-me dessa obsessão se não me calhar a mim mesma uma boa parte de perigo e sofrimento. (…) Suplico-lhe que me encontre, se puder, a quantidade de sofrimento e de perigo úteis que me preservará de ser esterilmente consumida pela mágoa.” – Simone Weil, em 1942, nas cartas para Maurice Schumann, onde também escrevia seu ‘Projeto de uma formação para enfermeiras de primeira linha’ para combater os soldados e a propaganda hitleristas.
3.
Era preciso uma paisagem, ainda assim não seria suficiente. Era preciso uma imensidão pontuada de referências e permeada por uma espacialidade que abrisse teu espírito. Nem sempre se encontra uma paisagem enquanto caminha. O corpo caminhava ritmando as dimensões dos sinos que o antecipava. E era como se precisasse revelar a natureza de seu espírito pela imagem de um esquecimento realizada por um presente concreto
o fim
amantes das trincheiras!
suplicantes da passagem!
ei-lo!
sem formação!
sem devaneio!
por livre coincidência as badalações do sino desenham uma triangulação infinita que se movimenta adentrando o próprio infinito e sua geometria,
a história deveria ser escrita assim,
um corpo se expandindo à potência sonora desse infinito
a presença do corpo na história pela configuração espacial da experiência determinada por uma temporalidade do esquecimento, quando a espacialidade da história determina a temporalidade do corpo presente em sua atualidade e a história se atualiza no corpo pelo esquecimento desse mesmo corpo, o corpo é aberto à temporalidade da história que por sua vez se realiza na espacialidade do corpo, que, depois da história, não se delimita à espacialidade presente. Esquecimento é um modo de esvaziamento onde se determina uma espacialidade possível. Mas a história ainda não acontece aí. Queremos escrever, na história, todo o movimento do corpo que se expande à consciência histórica e à consciência de si na história ao mesmo tempo em que perde a referência do espaço presente, do espaço em que o corpo se desloca mas que não sustenta a espacialidade aberta pela história e pela consciência. A consciência é para o corpo a expansão histórica de sua espacialidade
no espírito de teu regresso.
* Post Scriptum é o último excerto do livro qui novit nomen, quaestio – Excertos de Transcendência e Crime, publicado pela editora Phármakon, em 2018; https://pharmakon.hotglue.me/ .