Um texto de Vanessa Bortulucce
Vanessa Bortulucce é historiadora, professora e pesquisadora. Possui o hábito de engavetar tudo o que escreve, desde 1993. Aos poucos, está tentando romper com esta prática.
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Anotações esparsas sobre nós e mais alguns
8 de janeiro de 2008
Existe aquele gesto típico dos embriagados que é o de apoiar o corpo nas paredes, nas bordas das mesas, tentar sentar em uma cadeira desajeitadamente. É o momento em que e o cérebro, flutuando nos líquidos de sua absurda complacência, procura certificar-se da existência de algo palpável, sólido, tangível. Procurar por informações como fazem os cegos – procurar conforto em algo que não se mova, algo que parece sempre ter existido, como um Moai, como uma ponte construída por pedras anciãs, estamos todos assim, embriagados, tateando como filhotes desajeitados, procurando a solidez e a impermanência, a imutabilidade de alguma coisa neste mundo.
E todas as coisas que você poderia ter dito antes, em algum horário mais calmo, agora já não possuem mais significado nem substância. Agora já é tarde demais. Você deveria ter dito enquanto eu estava respirando sem dificuldade, enquanto ainda havia cigarros na minha mesa. Deveria ter dito todas aquelas palavras enquanto era ainda verão fresco e com sol infantil. Deveria ter dito enquanto a doença ainda era esboço e rascunho muito bem guardado pelas vísceras. Agora o que poderia ter sido dito não passa de uma mitologia de sorriso manco, as possibilidades amarelaram-se todas, nada mais pode ser cogitado, imaginado. Virou tudo um tipo de canção francesa que ninguém mais se lembra, palco dos mendigos, passo de dança patético, você e as suas palavras que não foram ditas, que poderiam ter salvado mais de um milhão de homens, você poderia ter sido a Cruz Vermelha destes homens. Mas agora, só existe o consolo da literatura, o perfume do amoníaco e as flores lilases em que ninguém mais presta atenção.
As pernas desempenham bem o movimento do caminhar, milimétricas e sem emoção como aulas de química. Este olhar que deixa as pétalas caírem depois de cinco dias sem trocar a água dos vasos. Os dedos que já colocaram os teus sabores na boca tremendo, estendem a roupa e alisam as notícias do jornal. Ideogramas de desejos lascivos são a distração do teu inverno. Joelhos acomodam o cansaço. Rápido, antes que os cotovelos se cansem desta tentativa de ser sóbrio e calmo por algumas horas. Cabelos não chovem e não se comportam como neve, então é melhor descrevê-los como páginas descartadas de um livro apenas sonhado. Carimbos e selos de correio escorregam na base da espinha e te contam segredos de uma juventude latente. A previsão da meteorologia está no seu rosto, os dentes afastam qualquer nuvem. Chiclete e canção, rodoviárias e bolhas de sabão em pó nos lembram do ar pesado de nosso calendário. Filas nos aeroportos para pedir o precioso pedaço de pão dos imigrantes. Cama desfeita, tão bela quanto um Hopper. Canela e cardamomo, anis-estrelado e um pouco de baunilha, recheando a saudade do corpo como os egípcios faziam com mirra e vinho da palmeira. Literatura na velha Olivetti, mas esta já se perdeu, agora não posso mais ouvir a reclamação das teclas na madrugada, aqueles textos foram jogados fora, as palavras agora escorregam, derrapam, atropelam, o sangue está um pouco mais diluído, eu sinto.
Meu homem-máquina, as palavras todas no dicionário podem ser utilizadas aleatoriamente para descrever-te.
12 de janeiro
Ela já sente a perda desde os primeiros instantes do acontecimento. Ela sorri com os cantos dos lábios, de um jeito meio aristocrático, refinado e contido. A velha catástrofe, já percebida, acenando lá de longe, no horizonte do calendário, presa a um quadradinho com um número qualquer.
Ela sabe. Por Deus, ela sabe e sabe e mesmo assim continua todos os seus gestos, prolonga todas as tuas palavras. Abraçar um amor daqueles sabendo que a batalha já está perdida. Que no coração daquele homem os cômodos já estão todos eles muito bem ocupados. Ela sabe que o homem chega cedo em casa, preocupado com a possibilidade de sua mulher mergulhar no tédio – e no terror – da casa vazia. Quando ele chegar em casa, haverá uma sopa esperando por ele. Lençóis cuidadosamente dobrados e esticados confirmarão a eficácia da matemática doméstica. Mais tarde, talvez uma televisão, um jornal, um cansaço familiar que os levarão para a cama E depois a reinvenção do mundo, mais uma vez.
Ela sabe que já perdeu tudo isso. Toda esta história irá durar uns quarenta maços de cigarros, vinte jornais, duzentas viagens de metrô e centenas de recortes de jornais, um dicionário e catorze canções. Mas, mesmo assim, apesar de todos os indícios colocados à sua frente como criminosos prontos a serem reconhecidos pela vítima, ela aceita o convite e senta-se na mesa de pôquer. Alisa com a ponta dos dedos o feltro verde da superfície.
Ela tateia os bolsos. Não possui nenhuma moeda. Qual é a aposta? Ela vai apostar o quê, se já sabe que irá perder? Por que tamanho prazer em deixar-se transformar, mais uma vez, na segunda opção da carne dos homens? A errata, o adendo febril, a nota de rodapé urgente da literatura alheia. Uma droga. Eis, ela pensa, eis o meu Waterloo, por que não posso ser Stalingrado, Medeia, pelo menos desta vez? Está bem, eu aceito. Eu já conheço esta sina, esta perda que já alarga seu estandarte no espaço, eu talvez seja uma destas pessoas especiais, não? Talvez eu seja um dia coroada com aqueles diademas de ouro e pedras, porque reconheço a perda, porque não ignoro sua existência, porque ela anda de mãos dadas comigo, porque minhas veias são elásticas e alongam-se até os seus cabelos, porque tive coragem de olhar bem no fundo daqueles olhos castanhos sem nuvens. Com o passar do tempo, todas as vidas irão estourar no ar como bolhas de sabão. Não existe nada para se preocupar, afinal.
Enquanto isso, ela distrai-se com a possibilidade de ser derrotada mais uma vez, polindo o metal orgulhoso de seus privilégios secretos.
A sensação de encontrar a palavra certa é aquela de quando se dobra uma esquina. A surpresa, a satisfação, uma luz que esbofeteia a cara. Ela observa o campo, a natureza. A natureza apenas é. O cavalo castanho comendo grama apenas é. Como é que a gente faz pra apenas ser?
16 de janeiro
Começamos a falar do tempo. Analisamos as nuvens, citamos palavras do tipo cirrus nimbus, cumulus nimbus, perguntamos se vai chover etc. Dentro de nós, esquecemos o perigo real de nossas nuvens cinza-chumbo, avolumando-se, anunciando a tempestade. É melhor comentar o tempo exterior, esquecer a meteorologia secreta que antevê os rumos inevitáveis de uma próxima era glacial.
É o mesmo motivo pelo qual temos medo dos sinais vermelhos no trânsito. Quando a luz encarnada não nos permite avançar, e somos obrigados a nos lembrar de nosso pensamentos, observar as pessoas na rua, pensar no que faremos mais tarde, não daqui há algumas horas, mas bem mais tarde, daqui a uns cinco anos, decidir de uma vez se continuamos ou não juntos, se deixamos tudo explodir ao redor de nós ou fazemos o primeiro talho na carne, expor a ferida para toda a atmosfera, deixar o som perfeito dos tambores encerrar a apresentação dolorosa de nosso teatro.
20 de janeiro
Eu fico rezando pelo erro perfeito. Pensando ao contrário, sentindo-me forte o suficiente para errar. Uma década de cadeiras escolares para refinar as minhas estratégias de erro. Quero errar de uma maneira magistral, errar como se erra pela primeira vez, quando se comete o deslize com inocência, e não existe o medo. Depois que se erra uma vez, nenhum erro consegue ser puro como aquele original. Passamos a ter medo de errar, e desta maneira prejudicamos os atos que poderiam ser mais belos se o ingrediente do erro estivesse presente. Poderíamos errar em francês, em inglês, em islandês e também em italiano, que todos ficariam absortos em observar a beleza do ato. Nossos erros virariam refrões de música, modelos de festa, teses de doutorado e sabores facilmente deglutíveis. Nenhum erro moraria mais no dia seguinte, eles seriam muito bem recebidos nas nossas salas de estar, adquiririam tons de pó de arroz bem burgueses. Todos os nossos erros seriam fáceis de assoviar. Deixariam felizes a todos os fabricantes de balões coloridos. Contudo, as pessoas estão mais preocupadas em falhar em seus erros, e isto já recebe o nome de acerto, e bem-sucedido é quem sempre acerta e nunca erra, e não percebem que este, sim, é o verdadeiro engano, sentado em sua poltrona de veludo, ostentando o seu cetro sorridente.
23 de janeiro
Uma vez ele me pediu para que eu desabafasse, para que eu dissesse tudo o que estava preso à minha mente. Mas não consegui dizer nada. Tampouco consegui escrever. Sonhei com uma torrente de sílabas, e, ao invés disso, a boca seca acusava-me de falsidade e desolação. A gramática tornou-se um deserto, um campo infértil, e eu percebi como o medo esteriliza tudo com o seu cheiro de éter. Em vez de nisso, transformamos nossas urgências nos últimos lançamentos de música, de receitas de tortas, comentários sobre geografias distantes, jornais absurdos etc. Menos de um ano modificado em quarenta e duas décadas de tédio, transmissões em código Morse obsoletas, algumas frases banais, pensei em você, eu também pensei em você, e por aí vai. Conversa que apenas preenche o tempo, estourando as bolhas de plástico, cigarros acesos no cinzeiro, não se preocupe, eu não vou abandonar você, literatura barata. Eu deveria ter atendido o desejo dele e me esforçado para desabafar, dizer qualquer disparate ou frase inconclusa, apertado o botão da bomba e ter dado início a um bom combate. No entanto, este apego à nossa Guerra Fria particular… ainda não me cansa o suficiente.
3 de fevereiro
Eu não sei andar de bicicleta. Eu não tenho carro e quase bati o do meu amigo tentando aprender a dirigir. Eu não sei tocar guitarra, e mesmo assim fui bem recebida na grande máquina que respira fumaça e cospe notas fiscais duvidosas. A minha distração ao atravessar as ruas aboliu todo o meu medo. Ainda ouço as mesmas músicas e sempre tenho frio à noite. Sempre retorno, em pensamento, aos locais que frequentei e fico imaginando-os vazios, destruídos, abandonados, mato e grama sem pedigree crescendo nas axilas do prédio, concreto e tinta de parede tristes como sorriso de palhaço.
Não importa o quanto se tente, não se consegue ser livre totalmente. Ninguém consegue ficar livre de tudo. As letras e as páginas em banco ficam gritando para que eu construa uma frase bem feita, mas eu só consigo soluçar sentenças esparsas. Quando não há ninguém em casa e a noite começa a surgir impiedosamente, eu me sento diante do computador e lamento a perda de minha Olivetti. Ela está bem guardada em um armário, mas, cada vez que penso em usá-la, fico imaginando o uivo de um animal antigo preenchendo o meu quintal. Cada barulho de cada tecla, uma página de um diário escrito há uns nove anos, que nada mais tem a dizer nem para mim, nem para ninguém. Não posso mais me transformar em uma correspondente de guerras já perdidas.
9 de fevereiro
Coloco água para ferver. Sinto uma necessidade de tomar uma xícara de chá. Estou sentada sozinha na cozinha, devem ser umas dez horas da noite, ou ainda talvez mais cedo, estou sentada esperando a água ferver. O mundo está tão quieto que parece que ele todo está esperando por este caldo quente. O saquinho de chá me sussurra várias promessas desidratadas em forma de hibiscos, maracujá, groselha e outros lilases comestíveis. Eu estou aqui na cozinha que nem é minha, eu ouço o telefone tocar, nasceu mais uma criança na família, e a minha alegria agora é esperar o chá ficar pronto. A alegria do meu primo, o pai da menina, seria idêntica a este meu prazer? De repente parece que o universo todo está se multiplicando e que apenas eu encolho e me retorço, como uma árvore anciã. Vidas nascendo ao meu redor, e a superfície da mesa aqui da cozinha transforma-se em um deserto árido. Minha nuca, meus pulsos, minhas pernas, o meu organismo todo sente-se estéril e triste. Sinto-me o som de um único oboé no espaço. Delicados sistemas circulatórios sendo formados a cada minuto, prazeres transformando-se em carne ainda transparente, e eu aqui esperando o meu chá. Em todas as línguas possíveis neste mundo, a vida nascendo como brotos macios de se mastigar, e eu vejo o xadrez da toalha da mesa da cozinha como um pequeno deserto.
10 de fevereiro
Na festa, comemoram-se mais as tristezas e os perigos passados do que as reais alegrias. Comemorei dançando todas as perdas, porque eu ainda continuava lá, eu ainda continuava testemunha de todas as mazelas e não tinha perecido. As alegrias podem ser lembradas em qualquer hora do dia, em qualquer data e época, elas não doem muito, mas a tristeza, que às vezes nos apavora só pela simples lembrança, esta prefiro colocar para fora de meu corpo junto com o suor alcoólico de meus gestos.
Eu gosto de observar o sorriso e o olhar dos sofridos. Existe algo de joalheria neles, algo duramente burilado, talhado, aplainado e polido que os torna singularmente solitários ao mesmo tempo que carregam nos braços toda uma geração e suas histórias. Não é algo exclusivo dos velhos, tampouco característica dos doentes. É ainda mais belo nos jovens observar o ontem em seus rostos, compreender que não conseguimos nos livrar daquilo que muitas vezes recusamos a acreditar que tenha sido real.
Ela estava dançando freneticamente ao som de todas aquelas músicas antigas e, de repente, como se alguma pane tivesse colocado seus circuitos internos em total contradição, sentou-se em uma cadeira vazia e observou a noite aberta, escancarada com campo, as árvores em seus tons de verde simplórios, e ficou ali, mão apoiada no queixo, pensando em como a beleza, às vezes, adora andar fantasiada de mendiga e desgraçada, como ela gosta de morar nas notas de rodapé da respiração humana.
Eu não entro em competições estúpidas para saber quem se sente mais sozinho naquele grupo, porque sei que todos o são. Os casados, os funcionários públicos, as donas-de-casa, os pós-doutores, estamos todos sozinhos e nos queixando pelo canto da casa. Ele havia me perguntado, enquanto acendia mais um cigarro, se eu estava feliz. Depois de alguns anos separados, é uma das primeiras perguntas que são feitas, o que você anda fazendo, como está indo a vida e logo em seguida: você está feliz? Eu resolvi não responder de imediato, preferindo tragar o meu cigarro olhando para o horizonte, e isso foi uma resposta, e ele me disse: eu também não me sinto feliz, apesar de meu emprego, namorado, carro, salário etc. etc. etc. Como se um deus teimoso tivesse cortado a minha língua, eu nada disse, e fiquei brincando com as pedrinhas no chão. Ele me confessou que o amor já tinha perdido há um certo tempo a sua agitação, aquela emoção borbulhante, como estava perdido e não sabia o que fazer. Eu, que há algum tempo não sei o que é estar com alguém fisicamente, disse a ele para ser mais paciente, para manter-se calmo, e outras coisas que para mim mesma eram um punhado de asneiras de almanaque. Disse algumas palavras apenas para cumprir uma função calculada de amizade que se importa e se envolve com o drama alheio, mas a verdade é que eu nada poderia dizer sobre o amor que não conheço, ainda mais sobre o amor dos outros. Se eu tivesse sido sincera, diria para ele se acostumar com tudo isso, que o amor carrega consigo uma boa carga de desgraça e que em algum momento você vai ouvir todos os perigos cantando debaixo da tua janela, colocando em insônia o teu coração.
11 de fevereiro
Os diálogos racionais existem entre nós apenas como um disfarce, nós sabemos disso e continuamos em frente, dizendo imbecilidades um para o outro, banalizando nossa vergonha etc. etc. Mais vinte e quatro horas se passaram, e eu penso que poderia ter escrito um capítulo inteiro de um livro de arte, ou ter concluído um artigo que eternamente dorme pela metade em minha gaveta; os dias passam, e sinto uma preguiça absurda em produzir mais textos para este mundo. A única coisa que me interessa é escrever na mente, sem recorrer à gramática – cada distração cotidiana transforma-se em um parágrafo, cada toque em nosso corpo que realizamos na solidão de cada amanhecer transforma-se em espelhos d’água no meu pensamento. Tenho rabiscado nos meus cadernos notas esparsas de uma virilidade que apenas presumo, mas desconheço. Um homem feito assim, 75 por cento de distância estrangeira, dez por cento de fluidos incomunicáveis e os outros 15 por cento de matéria nebulosa, circuitos de câmera obscura, e eu ainda nem sei como é o seu timbre de voz. Um delicioso fantasma a carregar céu com nuvens cor de pérola – ele se transforma em um espectro e eu engulo o desejo dele em um susto. As suas pernas e os seus braços podem ser resumidos em algumas laudas, a boca é uma colherada bem cheia de anteontens e as sobrancelhas me fazem sonhar com uma casa cheia de cômodos ensolarados, onde deposito, próximas às janelas, as partituras de minhas súplicas.
13 de fevereiro
A memória que tenho de você às vezes se perde durante o dia, como um pedacinho de papel que se esconde no fundo da minha bolsa, retorcido e ignorado diante de tantos horários e dores de cabeça. No jardim das contas a pagar e dos cafés apressados, procuro salvar a tua vida, que se dilui, plasma-se em poças d’água indignas, e permanece por lá até que o meu esforço em resgatá-la seja mais forte do que os números e os relógios. Em alguns momentos esforço-me para esquecer tua presença, de maneira deliberada. Gosto de fazer de conta, de tentar retornar ao tempo quando as coisas todas existiam sem saber que você existia com elas.
15 de fevereiro
Meus amigos todos me dizem que tenho que arrumar um lugar melhor para morar, que desta forma me sentirei menos só e terei mais liberdade para conhecer outras pessoas. Eles torcem para que eu encontre outro emprego, que assegure um salário melhor e garanta uma estabilidade confortável etc. Eles me dizem que tenho de aprender a dirigir com urgência, pois assim meu direito de ir e vir se tornará mais interessante etc. etc. Eles me dizem gentilmente, pontuando as falas com sorrisos, que eu devo parar de fumar, ou pelo menos fumar menos e publicar o que eu escrevo. Fiquei duas horas consertando um texto que escrevi sobre escultura e, ao mesmo tempo, com os músculos doendo de tanto procurar pelos sinônimos perfeitos, pensava no carro, na casa, no emprego e nas pessoas que preciso adquirir. O texto sobre as obras ficou perfeito, com todas as suas quatro patas amarradas com laçadas gramaticais, cavalos selvagens prontos a serem domesticados. Senti pena das palavras e dos argumentos, senti pena de tudo aquilo que dizem que eu tenho de conquistar, senti pena da vida encadernada que seguimos e tomamos como natural.
16 de fevereiro
Estou entediada com os velhos temas, com as mesmas técnicas de raciocínio, os idênticos procedimentos de pesquisa, todas estas coisas. Há quinze anos atrás eu mergulhava na biblioteca com os braços e a cabeça agitados, tentando não me afogar com todos aqueles livros. O caráter de novidade era tamanho, que algumas tardes inteiras na biblioteca transformavam-se em minutos apressados: procurar nas fichinhas de papel, militarmente enfileiradas em gavetas de metal esverdeado, nome de autor, tema, número de tombo, anotar tudo isso na mão ou em papeizinhos risonhos. Subir, descer escadas, passear pelas estantes como um fiel temeroso, com a cabeça e os pés reverenciando lombadas e letras de todos os tipos. A seção de obras raras, privilégio dos livre-docentes e dos funcionários; as obras em língua estrangeira eram pequenos territórios, ansiando por exploradores; lombadas grossas, marrom-avermelhadas, me pareciam mães; livrinhos pequenos espremidos ao redor eram as crianças com as suas bochechas de celulose ainda transpirando o cheiro da gráfica. Recordo o silêncio que inibia risadas e confidências, quase um cemitério. Às vezes alguns títulos simplesmente desapareciam, seja pelo furto, seja por um leitor distraído. Os bibliotecários nos ofereciam algumas boias para tentar nadar naquela imensidão de letrinhas e argumentos, mas um tempo depois descobrimos que a graça estava em deixar-se levar pelo afogamento, perder-se e torcer para não ser resgatado.
Hoje perdi este sabor de aventura e de exploração com as minhas bibliotecas mais conhecidas: já sei o que se esconde por trás das portas, as estantes me cumprimentam, sigo em frente, entro na penúltima estante, dobro à esquerda, olho para cima e ele está lá, o terceiro, a contar da direita. Ficou tão fácil achar o livro. Visito os velhos parentes como se estivesse no cemitério. Depois, faço o contrário: caminho entre os jazigos, leio as lápides, vejo todos os mortos também como livros, fico lendo todo aquele silêncio.
18 de fevereiro
Então um dia consigo me transformar novamente em estrangeira e corro para o museu. Mostro ao funcionário o bilhete de entrada, agradeço sem olhar para os olhos de ninguém, avanço o corredor, subo dois lances de escadas largas e de um cinza claro elegante, enquanto observo a enorme parede de vidro que protege minhas costas. Escolhi não pegar mapa nenhum do prédio: tudo o que eu preciso é encontrar o salão da arte moderna produzida no início do século XX.
Encontro o local, desajeitadamente, quase escorrego na curva e desabo em uma parede. Não respiro mais, meu corpo passou a produzir energia por meios que desconheço. Vejo, no final de um corredor, a sala dedicada a eles. Penso que a atitude mais correta é atravessar aquele espaço com passos lentos e inchados de discursos, e então faço desta forma, lamentando a lentidão contemplativa dos que estão ao meu redor. Eu quero arremessar-me à obra e, depois de alguns passos, estou lá. Chego perto de todas, olho cada pincelada, acaricio as assinaturas, sorrio por dentro, por fora, tudo em mim sorri, o pâncreas e as unhas dos pés, a coluna vertebral e meu umbigo, tudo é sorriso e espelho de quem eu fui um dia, de quem ainda sou, de certa maneira. Três mulheres admiram a mesma obra que eu e me perguntam se eu entendo o quadro. Claro que sim, respondo, estudei por nove anos este artista, e comento um pouco alguns aspectos que julgo interessantes. Elas me agradecem e partem para outra sala, e eu permaneço de pé, olhando as telas, como se estivesse olhando para você pela primeira vez, dizendo baixinho você é tão mais interessante ao vivo, tão mais colorido e pulsante, quase sinto a urgência de teu criador tremendo na superfície. Não foi o dinheiro guardado nem a passagem aérea que me trouxe até aqui, foram trinta e três anos de livros e redações, exames e formulários, teses e conversas, que se converteram em quilômetros e agora se transformam em silêncio.
Os quadros possuem uma camada invisível de verniz, um verniz de perguntas, dúvidas, pontos de interrogações que se equilibram na moldura. As telas despejam as suas questões que não envolvem teorias de arte. Eu não consigo responder nenhuma delas. Elas me perguntam sobre os ausentes que carrego comigo e por que eles pesam tanto nos meus ombros. Tem um homem que se comporta como vocês, eu digo, baixinho, me inclinando um pouco. Ele é como uma tela para mim, distante e pertencente a outras mãos. O máximo que posso fazer é pagar uma entrada, encontrá-lo, admirá-lo de longe, jamais colocar minhas mãos nele, analisá-lo com a frieza das teorias. Não posso levá-lo para casa.
1 de março
Esforço-me para manter-me dentro da realidade. Sinto os músculos doerem nestas tentativas. Prestar atenção nos sinais de trânsito, sentir o gosto da comida, observar cientificamente a paisagem que vejo da janela do trem, evitar devaneios. Eu luto todos os dias para manter-me incrustada neste real, enfiada no meio dos noticiários, tentando permanecer bem no meio do real cru, do real de pele gelada, pele de cobra, necessidades físicas e inadiáveis, eu estou tentando seguir o fluxo. Se eu tomar o atalho do real, jamais esbarrarei na curva da fé. Preciso de uma realidade sem lapsos de memória, preciso da velocidade e da urgência do real, preciso pensar menos em tudo isso.
Preciso tirar uma fotografia do real e olhar para o sorriso desta navalha, sem cair na tentação de pensar em rimas e alusões. O cotidiano sem metáfora: pontos de ônibus são apenas pontos de ônibus, ferro de passar roupa, sapatos molhados de chuva – matéria umedecida por água que cai do céu.
Números, números, números. Bancos e relógios, jornais e caos, preciso enxergar, preciso apurar minha visão. Tudo o que é já está sendo, e não poderá ser mais aquilo que pode ser. Nada poderá carregar o inchaço das minhas divagações.
O real feito de impulsos elétricos e ligações químicas, o real construído por concreto e espasmos, plástico, petróleo e branqueadores ópticos. A boca está seca, sedenta de realidades. Onde posso comprar o real?
Há dez anos acordei em um quarto que não era meu, olhei para o teto e pensei: então é isso. È apenas isso e vai ser assim sempre. Nem mais, nem menos. Tudo segue uma ordem alheia a todas as minhas intenções de encontrar respostas. Aquela manhã e aquele pensamento eram apenas eles. O real é Saturno devorando seus filhos, e eu desejo desfazer minha carne inteira em sua boca faminta de humanidade.
4 de março
Está chovendo fortemente, e estamos todos na rua. A água constrói uma cortina cheia de franjas cinza-opaco. Corremos todos para debaixo de um ponto de ônibus coberto. As pessoas se aglomeram debaixo do toldo torto. A umidade de suas roupas, junto com as mechas de cabelo escorrido, começa a emanar um calor abafado, um coletivo de circulações sanguíneas sufocadas. O braço do homem ao meu lado encosta no meu, gruda nossas peles e o desconforto se instala. Somos cavalos em um galpão, recolhidos a contragosto. Alguém acende um cigarro. A fumaça mistura-se à umidade, de repente estou em um bairro chinês, negociando um pouco de amor físico com o aquele homem, em um código Morse de braços enroscados, uma corrente elétrica e orgânica, pele que se esfrega com pele, gotas da chuva arranhando todos os horários marcados. Meu corpo encolhe, os corpos encolhem, na tentativa de economizar espaço. A carícia desconhecida e circunstancial que fazemos nos permite esboçar um sorriso para os paralelepípedos da rua, para as janelas dos prédios, que a água transforma em superfície de celofanes. Não ouso olhar para o rosto deste homem que me toca; ele contempla o vazio. O ritmo da orquestra molhada, enfim, diminui, e nossas peles se afastam. Ele se afasta em passos largos, eu pouso minha mão no meu cotovelo e me pergunto quem eu fui durante aqueles dez minutos: fui um pouco da sua mulher, da sua mãe, ou irmã naquela proximidade dos nossos braços? Que amostra de humanidade curiosa emergiu debaixo daquele toldo; a nossa condição imperfeita de humanidade, o pudor vermelho da pele, o toque que atiça os pensamentos, e tudo termina de repente, como começou. Pensar demais às vezes incomoda, e os guarda-chuvas são ridiculamente inúteis, não podem nos proteger do humano.
5 de junho
Com o passar do tempo a lucidez ganhou cada vez mais espaço na minha consciência e aboliu a ingenuidade, ela disse. Olho para o rosto de uma mulher que nada tem de naïve. Os contornos da sua esperteza agora estão bem nítidos em seu olhar, na sua boca, na ponta do nariz e até nos dentes. Um bocado de orgulho inofensivo pendura-se no seu queixo. Estão isso é ser lúcido, pensei, sabendo que este mesmo pensamento só formulou-se na minha mente devido a minha ingenuidade, a ingenuidade que a moça havia arrancado dela.
Ela continuou a conversa, dizendo que as suas necessidades físicas, emocionais, espirituais etc. eram sempre cuidadas para serem satisfeitas integralmente. Isso exigia uma certa coragem, bem como disciplina, observação, astúcia e um pouco de olhar enviesado, também. Mas que tudo o que conseguia era obtido com mais facilidade e honestidade, pois deixara de acreditar em uma série de fórmulas que escutara desde a infância. Me diga que fórmulas são essas, perguntei, ansiosa, mas então ela me disse que tinha de ir, que o marido a esperava em casa para irem juntos a uma peça de teatro. Antes de desaparecer no salão, porém, ela me disse: “Procure manter-se dentro daquilo que é real”.
Vejamos. Agora vou jogar minha vida toda em cima da mesa e vou separar o que é real daquilo que não é, transformar tudo em grãos de feijão. Aquele homem seria real? O corpo, difuso, que desconheço, quase não é matéria, liquefeito assim pela distância, mas ele é real em alguma parte. Ele tem de ser real. Em outra geografia, aquele homem é bem real, real até doer os olhos. Mas o meu desejo, mesmo irrealizado, é bem lúcido. O desejo se transforma. É a alimentação deste desejo que me fará sentir a mais voraz das fomes. É este excesso de ar fresco que será o responsável pelo colapso de meus pulmões. O desejo é um cavalo que necessita de rédeas. E falta-me vontade para direcionar minhas energias para o amor real. A fantasia é um ato de preguiça; ela nada me exige senão o meu pensamento, os meus devaneios tortos e algumas horas de um ardor mais elaborado.