Um trecho da novela “O que encontramos nas chamas” de Mayra Sigwalt
Mayra Sigwalt é natural de Florianópolis mas foi criada em Niterói. Desde pequena escreve histórias e tem paixão por livros. Se formou em cinema como roteirista e há cinco anos cria conteúdo na internet sobre literatura. Também é curadora e co-criadora, junto com a sua irmã, do Turista Literário, o primeiro clube de assinatura focado no público leitor jovem-adulto do Brasil. Descendente de Kaingáng em resgate, tenta através das suas histórias criar espaços para que pessoas como ela também se vejam na literatura. Mora em São Paulo e é geralmente encontrada na companhia de uma boa caneca de café.
A novela O que encontramos nas chamas (2020) é o livro de estreia da autora, publicada de maneira independente na plataforma KDP/Amazon.
***
Um trecho da novela O que encontramos nas chamas, de Mayra Sigwalt
A morte nem sempre é o fim das cosias. Nem tudo que está enterrado fica para sempre no chão, porque mesmo que os espíritos voltem para a terra, a maioria dos problemas terrenos sobram para os vivos. Foi a morte iminente da minha mãe que me levou de volta àquela casa, assim como a morte da minha avó tinha me trazido ali há vinte anos. Dirigindo pela estrada de pedrinhas, calculo os passos para sair e entrar mais rápido possível e trancar aquela porta da minha vida para sempre.
Minha mão treme levemente enquanto busco a chave dentro da bolsa. A fechadura não encaixa de jeito nenhum e o chaveiro de bambu balança freneticamente com a força que eu faço para abrir a porta. O barulho tímido da tranca cedendo parece ecoar em meus ouvidos e meu coração acelerado bate forte na minha garganta.
Giro a maçaneta com a mão suada e acompanho com os olhos a porta…
…se abrindo.
Minha tia Liara e tio Jorge sorriram pra gente de dentro da casa. Meus tios eram tão magros, altos e pálidos que pareciam vampiros despertando de seus caixões. Ter uma família que se parecia tão pouco comigo sempre me fazia sentir como uma alienígena.
Minha mãe envolveu minha tia num abraço e em seguida recebi o previsível “Camila, como você cresceu!”, e o não muito esperado “cada dia mais indiazinha, igual o seu pai”. Eu não me importava de ser parecida com o meu pai. Eu ficava feliz em saber que o carregava comigo de alguma forma, no cabelo preto e na pele terrosa, nos lábios grossos, e olhos de jabuticaba como ele costumava dizer; mas do jeito que a pessoas falavam, nunca parecia ser algo bom. Minha única semelhança genética com aminha mãe era a miopia – e por consequência os óculos de grau que usávamos – e uma tendência a dormir muito, o que explicava o porquê de estarmos sempre atrasadas.
Tio Jorge tirou as malas de nossas mãos, levando tudo pra dentro. A viagem de minha mãe para Portugal deveria durar somente duas semanas, mas eu fui preparada para passar pelo menos um mês, então eram três malas para uma única garota de 12 anos.
Não havia muito tempo ara jogar conversa fora, e percebi que a minha mãe só aceitou o café que aminha tia ofereceu para não fazer desfeita. Elas nunca foram muito próximas. Minha tia era quinze anos mais velha, morava longe e nunca se preocupou muito em tentar diminuir essa distância entre as duas.