Um trecho de novela de Marcelo Ariel
Marcelo Ariel, 1968-Santos-SP, é poeta, crítico e performer. Autor de Me enterrem com a minha AR 15 (Dulcineia Catadora, 2003), Tratado dos anjos afogados (Letra Selvagem, 2007) entre outros. Seu livro mais recente, Ou o silêncio contínuo -Poesia Reunida 2007-2019, lançado pela Kotter em 2019, contém trinta anos de sua produção poética. Atuou como ator-roteirista no filme Pássaro transparente de Dellani Lima e gravou o disco de spoken word Scherzo rajada contra o nazismo psíquico em 2012. Atualmente coordena cursos de criação literária em São Paulo.
O texto abaixo é um excerto da novela inédita O triunfo de Cubatão.
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A água veio do sol, disse o breu
“ difícil é ver se a luz
rima ou não rima com a mão”
Herberto Helder
nós saímos correndo para o mangue para fugir do fogo
vinte anos antes eu havia entrado no mangue e visto pela primeira vez os negros que eram albinos e viviam em uma carroça, eu estava perto de desertar da escola, havia pulado o muro para escapar e correr até o cinema para ver AURORA no único cinema que havia em SERRA DO MAR mas nesse dia não havia conseguido entrar escondida na sessão e decidi caminhar até o mangue, a natureza estava sempre no lugar do filme, me esperando.
O mangue era como uma enorme linha de fuga no horizonte desenhando a possibilidade de um outro mundo como um descanso da zona industrial que sempre me pareceu irreal como a maquete de um pesadelo. Das chaminés das fábricas subiam nuvens vermelhas como o sangue e nuvens escuras como as de tempestade que formavam espirais no ar, dragões e corpos humanos incompletos; talvez o espirito de crianças que nasciam mortas, que nasciam sem cérebro se materializasse nas nuvens que se misturavam com a neblina da SERRA DO MAR. Essa fusão de nuvens e neblina também era meu cinema, ela e os sonhos que constroem suas próprias paisagens,
estou divagando, caminhando por dentro, de novo. Venha para fora, Patrícia Galvão, me diz a garça que olha para mim com um olhar irônico e aponta com seu bico para a sinfonia dos sapos, no caso dela cantando o próprio réquiem, no instante em que a garça furava os olhos deles com a mais delicada fúria de todos os tempos, eles se transformavam em nuvens de sangue.
Havia a ilusão da primeira pessoa que na prática jamais existiu tão falsa quanto a figura da exterioridade do leitor, mas é de ilusão em ilusão que se constrói essa dobra,
ainda estamos dentro do mangue ao longe há o contorno humano de um catador de caranguejo com metade do corpo dentro da lama, um contorno de dez milhões de anos se movendo lentamente entre as dimensões da terra e da água. O contorno desaparecia e reaparecia e na distância era como uma fusão de um molho de chaves com um polvo – aquele mundo pertencia aos espíritos da lama, da pedra e das raízes de antes da história, eles e toda a paisagem comentavam a cidade com sarcasmo.
talvez este seja o último catador de caranguejo.
Em volta do mangue havia o porto industrial e as favelas: duas metástases. A favela DO ATLÂNTICO era um tumor benigno, com seus mais de dez mil entes vivendo nas bordas do humano. Agora uma nuvem-baleia pairava por cima de tudo, composta por fumaça química e sopros oceânicos, uma espécie de cadáver de um deus híbrido.
Ao chegarmos no Mangue com o corpo em chamas, notamos que o fogo havia seguido à nossa frente como um cão e o mangue também estava em chamas. O catador de caranguejos era parte da comunidade dos negros, por isso ele não se movia na direção da favela e desaparecia e tornava a submergir no chão de névoa – tudo no mangue se assemelha a uma extensão sonhada de um tempo anterior, quanto mais avançamos dentro do mangue mais o tempo retrocede e desacelera e enfiar os braços dentro da lama deve ser o equivalente de congelar o tempo e dele retirar suas raízes vivas: os caranguejos.
Me lembro de um momento em que me deitei debaixo de uma das árvores e acendi o pequeno escorregador dentro da mente que dá acesso ao sonho, sonhei com os negros: que havia entre eles uma menina chamada Diacov. Sei o nome dela porque os negros o gritavam bem alto, ela se vestia como uma sultana, uma menina albina hermafrodita, ela colhia bananas-ouro de uma plantação enorme que circundava o mangue e gritava algo em uma língua antiga para um dos outros negros albinos que vinha correndo. Havia um turbante em sua cabeça e ele corria em círculos crescentes em volta do descampado e apontava para o Sol com o dedo indicador num gesto enigmático. Então ele interrompia sua corrida e olhava para mim e eu acordava. Me lembro desse sonho porque não existe mais o descampado. Havia atrás dele um campinho de futebol onde os negros jogavam – tudo foi devastado para que fosse construído o acesso ao Porto Industrial.
A impressão que tenho aqui dentro é que não existe o tempo no singular, existem os tempos e a natureza reúne em si todos eles. O tempo cronológico é uma narrativa sem sentido, mas essa reunião de tempos, mineral, vegetal, cósmico e animal, esse embaralhamento de infinitos é algo que podemos sentir nos ossos. Cheguei hoje bem cedo. Em todas as lâminas de grama que nos recebem quando entramos, o orvalho era a medida dessa mistura de infinitos, do infinito menor das plantas com o outro infinito maior. O orvalho desce do Sol e se materializa como que por teletransporte: deve haver mundos dentro de uma gota de orvalho. Paro minha caminhada e examino uma espada de grama repleta de gotas de orvalho, uma anticolonização. A fotossíntese é certamente algo melhor do que a ideia de um deus, essa obsessão que temos na origem como busca de um sentido para coisas que necessariamente não necessitam de um sentido; não havendo uma origem comum a tudo e todas as coisas, isto apenas comprova a potência do encoberto.
Os negros acenderam uma fogueira para cozinhar inhame o céu começava a converter a luz mas ainda não estava escuro um dos negros me viu e foi correndo avisar aos outros que logo olhavam para mim na distância menor onde podemos distinguir os rostos mas não vemos os olhos,
O pensamento do meu próprio corpo me moveu até o calor do fogo e um dos negros que era tão branco que sua pele parecia translúcida me ofereceu um pedaço de inhame cozido. Sorrindo, perguntou meu nome e o que eu estava fazendo ali sozinha. Cheguei a esboçar um fio de voz por dentro, mas ele não tinha força suficiente para ser uma resposta e apenas meus olhos falaram no dialeto dos viciados em ver ao longe o horizonte se dissolvendo até que como um galho que cai do alto o toque da mão do negro me levou para dentro.