Um trecho de romance de Marli Walker
Marli Walker nasceu em Santa Catarina, de onde saiu aos dezoito anos para viver na região norte de Mato Grosso, região em que viveu por mais de duas décadas. Atualmente, reside em Cuiabá, onde escreve e leciona no Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). Acredita que a educação formal é o caminho mais rápido e seguro para transformar a vida das pessoas e a leitura é a forma mais fácil e bonita para alcançar outros mundos. É mãe de Juca e avó de Giovana, Isabel e Isaac, com que os quais exercita a maternidade e avoternidade, o que julga ser um aprendizado para a vida inteira. Publicou os livros de poemas Pó de serra (2006/2017), Águas de encantação (2009), Apesar do amor (2016), selecionado pelo MEC para constar no PNLD, Jardim de ossos (no prelo, 2020), premiado pelo edital Estevão de Mendonça de Literatura, e, na próxima quarta-feira, dia 12, lança o primeiro romance Coração Madeira (2020), que pode ser adquirido aqui (https://loja.tantatinta.com.br/produto/coracao-madeira/).
***
Trecho de Coração Madeira
As baratas eram parte da colônia, como eram os ratos e toda espécie de pragas, peçonhas que se entranham em frestas, montanhas de árvores mortas empilhadas no pátio da serraria, restos de madeira e pó de serra. Colônia é um aglomerado de casas iguais. As casas da colônia eram de madeira bruta, sem mata-juntas e sem forro. Quatro ou cinco fileiras com dez, doze casinhas em cada uma acomodavam, protegiam, reuniam todos em comunidade nos cafundós daquela gleba, naquele fim-início de mundo. No meio delas, o teto que abrigava o que tinha de seu e não tão seu, porque quase tudo era partilhado.
(As baratas também deviam ser), pensava enquanto matava mais uma ao entrar no banheiro colado à varanda. Madeira, mangueira e cano. Banho frio ao que nunca se habituou. Pregou na parede de madeira um suporte para as toalhas brancas que julgava bonitas. Vez ou outra, perdia a hora do banho ao final da tarde, ainda sob alguma luz do dia. Via-se obrigada a iniciar o ritual com a trêmula luz do pavio da vela de cera, sob a pressão do pavor, asco, ojeriza ao imaginar a barata gigante voadora subindo pelos seus pés, pernas, pousando em suas costas ou se aninhando em sua toalha.
Sentidos em alerta. A água fria lavando a lama, a solidão, os sonhos sonhados no sobrado rosa, alguma passagem da infância feliz vivida na casa paterna, grande, segura, amarela, constantemente amanhecendo, como no poema de Adélia Prado. As lembranças esmaeciam aos poucos, perdiam o viço, sangravam um filete pálido no coração, na memória, na vida.
Deixava a água fria penetrar nos pensamentos, acalmar as tensões do dia. Distraída de tudo e todos, imersa no pequeno requinte de um momento todo corpo, água e espuma, ouviu a voz do filho a buscar o eco da sua.
Já vou, já vou, estou terminando…
Ecoou, acalmando o menino. A toalha branca macia secava a pele e um pouco das saudades, acarinhava o corpo em cuidado e zelo. Passava o tecido macio pelo braço esquerdo, subindo até o ombro, secando as últimas gotas frias sobre a pele, quando sentiu a aspereza fétida da barata que se alojou na toalha. Queria gritar de indignação, raiva, nojo, repulsa.
Se naquela ocasião já conhecesse os escritos de Clarice, teria desejado também, como a escritora, petrificar todas as baratas do mundo num único amanhecer com os ingredientes exterminadores usados naquela “Quinta história” de Felicidade clandestina, sem remorso, culpa ou o que fosse. Desejaria também ela ser a primeira testemunha de um alvorecer em Pompeia e nunca mais queixar-se de baratas.
Voltou para o chuveiro, esbravejou, falou palavrão, chorou um choro infantil de filha, não de mãe, e deixou a água fria-cachoeira-cascata lavar e dissipar a indignação da pele, do corpo, do coração, da memória, do universo. Não conseguiu. Falhou duplamente. Atrasou-se para o banho ainda sob alguma luz do fim da tarde e não sacudiu com força a toalha branca. Ralhou consigo mesma para nunca mais cair na estupidez de esfregar barata na pele. Seria uma afronta pessoal, intransferível e indesculpável se tal episódio se repetisse nas entranhas daquele sertão.
A Filha do Meio ainda não conhecia os escritos de Clarice Lispector nem os de Adélia Prado. Não podia supor que essas duas mulheres e tantas outras viessem um dia a ser o seu esteio, refúgio, alento, paixão e ressurreição. Não sabia dos caminhos que percorreria até o seu coração compreender o efeito que todos os escritos causariam em suas travessias nos sertões de fora e de dentro, desde o Oeste frio de Santa Catarina até o calor escaldante de um Oeste mais hostil, nas entranhas da Amazônia, muito perto do Xingu. Ela não sabia ainda da existência de um outro sertão, mais profundo, cravado dentro do peito, perigoso e traiçoeiro.
Prometeu a si mesma que nunca mais na vida usaria uma toalha sem antes sacudi-la muito bem. Prometeu também que o episódio da barata seria um marco divisor em sua história de Filha do Meio. Não seria refém de medo algum, de espécie alguma, fosse de barata, fosse de voz do coração que falasse em língua morta. Não se renderia a miudezas que a distraíssem de sua lida, sua vida, seu sono.
*O episódio da barata precedeu o da mãe porque baratas são criaturas que antecedem as mães, avós, bisavós e a sequência toda.