Um trecho do romance de Rafael de Oliveira Fernandes (e três poemas inéditos)
Rafael de Oliveira Fernandes nascido em São Paulo em 1981, formado em Direito pela USP, autor dos livros de poesia Menino no Telhado e Cadernos de Espiral (ed. 7letras) e dos romances Vista Parcial do Tejo e Baseado em fantasmas reais (ed. Patuá). Siga: @rafael.o.fernandes
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Trecho de Baseado em fantasmas reais, capítulo 18, página 66
Agora, depois de alguns anos, ao reencontrar a Ana, parecia que eu revivia tudo aquilo, que o ar me faltava de novo. Mas ela oferecia uma solução, ficaria encarregada de tudo novamente. E me dizia que, de certa forma, eu estava no caminho certo. Isto é, que o texto da minha mãe poderia me levar a encontrá-la, aquela alma que escapara, o pedaço de ar que fugira, correra de mim. Quando nos encontramos pela primeira vez, na época em que frequentava a casa da Luciana, contudo, a solução era outra. Não estava além, em um texto, mas dentro de mim. Consistia em fazer um novo ritual. Desta vez, para afastar o mal. E o ritual dependia do seguinte: era preciso outro corpo para afastá-lo. Um recipiente para aquele espírito nas minhas entranhas, por meio do qual pudéssemos transferir o mal e depois extingui-lo. Disse, sem rodeios, na sala dos fundos, que precisava de um gato. Explicou o fato. Segundo sua vivência com o oculto, o gato era capaz de transitar entre dois mundos. Atravessava as fronteiras entre este e o que estava além. Como nas vezes em que o animal era capaz de, em cima de um muro, caminhar entre uma casa e outra. Os muros, as paredes, para o gato, existiam como se fossem de papelão, como as paredes da antiga casa de minha avó. Ele as ultrapassava, derrubava e construía novas com a facilidade de alguém que troca paredes de papel.
*
Guardar lembranças
Hoje ao caminhar
com minha mãe
à beira-mar parecíamos
refazer os mesmos passos
de trinta anos atrás
e reviver as mesmas lembranças.
Vimos o apartamento
em que costumávamos nos
hospedar
o orquidário
onde adorávamos passear
Foi como se nossas pegadas
não houvessem sido
apagadas pelo mar
mas esperassem
no fundo do oceano
todos esses anos
para serem devolvidas
à areia
por onde iríamos passar
dentro de pequenas
conchas
*
O tempo
Nós sempre soubemos que a areia
era o tempo se acumulando.
E quando íamos à praia
o tempo parecia mesmo ali parado.
Alguns voltavam no tempo,
construíam castelos de areia
e fingiam que viajavam a séculos passados.
As meninas faziam bolos,
depois os cortavam e ofereciam
um pedaço de tempo às amigas
como se comemorassem um aniversário.
E houve o ano em que atiraram
uma bola de areia em meu peito,
era tão pesada que parecia
haver uns cem anos naquela arma.
Fiquei coberto de rugas até mergulhar
no mar azul, como o céu,
e quando voltei estava jovem novamente,
como se houvesse
ressuscitado
*
Viagem dentro de um quadro
Ela olhava pra fora
do carro como se houvesse uma pintura
que ia se fazendo aos poucos.
Então passava os dedos no vidro
como se fosse ela
que pintasse a paisagem.
Primeiro pintava as árvores, contornando-as,
ou as rosas, cujas pétalas
pareciam sair da tintura vermelha das unhas,
e um lago aparecia conforme a respiração
embaçava o vidro e ela murmurava o barulho das águas.
Depois, era a paisagem que entrava pelo vidro aberto,
na luz que coloria a pele,
no vento que trazia os cheiros das flores
e desenhava seus cabelos
como se fosse ela que estivesse dentro do quadro.
Ela parecia dormir encostada no vidro,
sonhar com a paisagem
que aos poucos se formava.
Por isso, ao atravessar um longo túnel,
a lua aparecia como um olho brilhante que investigava tudo.
E quando uma montanha na forma de menina
enrolava toda a pintura,
parecia ser ela se preparando para dormir
do outro
lado