Um trecho do romance “Eu, inútil” de Cibele Laurentino
Cibele Laurentino nasceu em Campina Grande, Paraíba, mas reside em Conde, no mesmo estado, onde vive com sua família, na Praia de Tabatinga. Filha do saudoso Zé Laurentino, poeta e escritor, cresceu no berço da cultura e viu seu gosto pela leitura e escrita começar na infância, no convívio com poetas populares, cordelistas, cantadores de viola e emboladores de coco. Formada em Gestão em Turismo, atua na área e se dedica à literatura: estudante de Letras na Uninter, escrita criativa, curadora do prêmio book brasil 2021, é a idealizadora do projeto Conversando com escritoras. Cibele é autora de Cactus: poesias, sentimentos e emoções, seu livro de estreia; de Nobelina, romance premiado em 2021 pelo Edital Maria Pimentel – PB; Todas em mim – um compilado de contos que permeia o universo feminino. Seu livro mais recente, em formato de e-book , é Eu, Inútil, romance que concorrerá ao 7º Prêmio Kindle de literatura.
***
Trecho do romance Eu, inútil
Capítulo 10
— Como vocês demoraram! Eu já estava morrendo de saudades e preocupada com você, filha. Venha, querida. Tomou banho, penteou os cabelos, e até já lavou sua roupa. Você se sujou tanto assim que precisou tomar banho? Aonde você foi, hein? Me conte tudo. Quero saber tudinho. Vá, desembuche de uma vez.
— Calma, mainha! Meu braço…
— Helena! Meu nome é Helena.
— Fomos ao parque. Me sujei na casa de painho. Ele lavou minha roupa suja.
— Ele lavou?
— Só um pouquinho assim…
— E seu cabelo? Foi ele também, foi? Vamos! Ficou muda, foi? Já falei que quando alguém pergunta, você responde. O que eu preciso fazer pra educar você, menina? Vai ser essa moleca pra sempre? Deus sabe o quanto eu me esforço, mas você não aprende nada! Tudo é uma dificuldade… Assim, vai depender de mim pra sempre, sabia? É você que tem que lavar essas imundices. E também pentear essa bucha! Eu mereço isso, Dolores? Depois de tudo o que eu fiz e ainda faço, eu mereço?! Sabe o que você merece, sua inútil? É isso mesmo! Está merecendo ir pro psicólogo! Está, sim. Se eu estou falando que está é porque está! É para o seu bem. Se eu não ensinar você, quem é que vai? Seu pai-lhaço que não vai ser, porque ele está se lixando para a sua educação. Não! Não adianta correr. Segure ela, Dolores. Isso. Venha aqui!
Dentro do guarda-roupa, pegou seu cinturão branco. Nele, estava escrito bem grande “psicólogo”. Eu nunca esqueci esse cinto. Tirou toda minha roupa em frente ao espelho.
— Engole esse choro, menina! Se chorar, apanha mais! Não aprendeu ainda?! Agora está doendo, mas depois vai valer a pena. Tem gente que aprende na conversa. E tem gente que só aprende na dor. Da próxima vez que você pensar em ser mal-educada, vai lembrar que é melhor não. Isso, continua chorando, que eu continuo batendo. Eu tento, Deus sabe que eu tento. Eu não tento, Dolores? Mas já estou cheia de você tirar minha paz. São anos perdidos em minha vida por sua causa! Eu só me dedico a você, tudo que faço é para você. Não está vendo? Olha pra mim, menina? Você não vê? Ah, você vê? Não parece! Fale direito, sem choramingo. Desperdicei minha juventude desde que aquele mizinga do seu pai me abandonou. E com um passeio ele compra você? Não?! Não? Quer mais, é? Eu dou mais! E engole esse choro! Eu dei minha vida a você, e basta ele dar um passeio pra você me trair, me entregar um monte de mentiras. Isso é justo? É justo, Dolores?! O quê, menina?! Fale sem chorar! Desculpa? Acha que dá pra perdoar o que você fez? Largue! Me largue, menina suja! Não tem desculpa nenhuma. Não adianta ficar me agarrando, não. Dolores, tire essa menina da minha frente. Ela não sai daquele quarto por três dias, está me ouvindo? E ferva água pra mim. Se não bastasse, ainda vou ficar com dor no braço. Eu mereço! Eu mereço!
Dolores me colocou no banho, e quase não aguentei a água fria em minha pele. Deitei-me soluçando e adormeci ainda chorando. Doía tudo, por dentro e por fora.
— Bom dia, menina. Aqui, seu café. Minha nossa senhora. A pisa de ontem foi demais, num foi? Deixa eu ver. Nossa! Dá pra fritar um ovo nessa testa aí. Você tá pegando fogo, menina. É melhor eu avisar sua mãe…
— Não. Por favor, não. Vai passar já, já!
— Eita, menina. Num duvido que ela fique mais invocada mesmo. Ela também não anda bem de saúde. Então vem aqui, vai. Melhor comer. Olha, tem iogurte de morango hoje.
— Jura?
— Sua mãe mandou colocar no seu café da manhã.
— Mainha é maravilhosa. Não merece que eu seja desobediente mesmo.
— Uhum… Espera. Vou pegar um remédio pra essa quentura aí. E, olha, sua mãe não deixou abrir a janela nem acender a luz, viu? Num me inventa de desobedecer. Vai que ela vê a luz por baixo da porta…
Aqueles três dias se arrastaram. Eu pensava em painho e sua família, na escola, até na aula de balé. Refleti sobre como a senhora Marina cuidava da casa e dos filhos de um jeito diferente, mas logo me repreendi. Meu Jesus Cristinho, lá vou eu desobedecer de novo. Não, não, não. Mainha trabalha muito, é doente da pressão e por isso que ficava estressada.
Querido diário, mainha me deu uma surra porque fui desobediente. Eu bem que mereci. Não lavei minha roupa, não penteei meu cabelo e ainda fui para o sítio de painho com a família dele. Prometo que nunca mais vou fazer isso. Nunca mais. Verdade, verdade purinha!
Só de pensar que mainha ainda não sabe a verdade sobre meu passeio com painho… Lasquei-me foi todinha! Não devia ter ido. Mas foi tão bom! Preciso me lembrar de pedir pros meus irmãos me ensinarem a ser boa. Assim, não vou mais ser castigada. E, se mainha me achar uma menina educada, pode ser que fique que nem a senhora Marina… Ela escovou meu cabelo devagarinho. E ficou até que bonitinho.
Estou com saudade de tudo, de mainha também. É muito ruim ficar aqui dentro sozinha.
Quando mainha me bate, bem na hora sinto muita raiva, todo meu amor por ela parece acabar. Faço mil juramentos, que nunca mais vou olhar na cara dela, que não vou perdoá-la nunca mais. E não sei o que acontece, mas no outro dia já esqueci. Eu a perdoo sem precisar de pedido de perdão.
Um empurrão na porta, eu me encolhi no canto da cama, cruzei as pernas e rapidamente coloquei o diário escondido dentro da blusa. Os movimentos fizeram meus braços e pernas doerem.
— Boa noite, meu amor! Venha, me dê um abraço. Venha! Não sou um bicho. Está com medo de mim?
— Helena, vai me bater de novo, vai? Estava com saudade. Me tire do castigo, por favorzinho.
— E descansar e ser medicada por acaso é castigo? Ei, calma. Só vou sentar aqui do seu lado. Que bicho mordeu você, hein? Viu um fantasma?! Olha, meu amor, depois que me contar toda a verdade daquele dia que passou com seu pai, vai poder tomar seus remédios de rotina. Tudo vai voltar ao normal, vai ficar tudo bem. Você sabe que tenho um coração enorme, né? Você não vai me decepcionar de novo, não é? Vai me contar tudinho, não vai? Já mandei colocar um jantarzinho bem especial para você. O que está escondendo na blusa? Deixe eu ver! Aqui! Isso. Se você soubesse o quanto me irrita esse seu choramingo. Está apanhando, por acaso? Ah, ainda está doendo? Aprendeu, pelo menos? Olhe só o que você faz comigo. Estava calma, serena. Eu tento manter a calma com você, lembrar que é uma criança doente, necessitada de ajuda. Mas você parece que faz de propósito. Venha aqui, menina! Deixe eu ver.
Em apenas um impulso, arrancou meu diário de mim.
— Ah, então é isso! Você foi se juntar lá com aquela familiazinha ordinária, não é? É melhor você ficar calada. Melhor ficar quieta do que abrir essa boca pra contar mais mentiras. Dolores! Dolores! Traga pra mim uma tesoura. Não importa! Traga logo. Não é assunto seu. E, você, sua inútil, engole esse choro. Está apanhando, por acaso? Não, não vou bater em você de novo. Meu braço ficou esculhambado. Eu mereço! Me dê isso logo, Dolores. Venha aqui, menina. Não vai vir? Eu arrasto você então. Olhe. Olhe ali pro espelho. Ah, você não gosta de se olhar no espelho. No seu lugar eu também odiaria. Olhe ali. Vamos! Estou mandando! Aquela catraia escovou esta bucha direitinho, não foi? Ficou bonito, foi? Então pronto. Fique olhando. Agora assim. Pronto. Não tem mais nada pra ela escovar da próxima vez. Não, Dolores! Não limpe, não. Deixe essa bucha jogada no chão mesmo. Venha! Ela está precisando de mais uns dias de reflexão. Quem sabe um dia ela aprende. E não me olha com essa cara, Dolores. Nem você vê que tudo o que faço é pro bem dela? Está ficando uma mocinha, precisa aprender.
Enquanto meus cabelos caíam, sentia medo até de levantar o olhar. Quando vi, estava parecendo os meninos da minha sala.