Um trecho do romance “Tempo de Cão” de Márcia Barbieri
Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979. Formou-se em Letras (Unesp) e é mestra em Filosofia (Unifesp). Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Foi uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro, do canal Pílulas Contemporâneas e do projeto Pinot Noir Literatura. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (ed. independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013), lançado na Alemanha como Mosaik des grolls (Clandestino Publikationen, 2016); A Puta (Terracota, 2014/Reformatório, 2020), foi contemplado com uma bolsa de tradução pela PEN AMERICA e foi lançado em 2023 pela Sublunary editions com o título The Whore; O enterro do lobo branco (Patuá, 2017/Reformatório, 2021), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018, em breve será publicado nos EUA pela Sublunary editions; e A casa das aranhas (Reformatório, 2019), finalista do Prêmio Guarulhos e semifinalista do Prêmio Oceanos.
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Um trecho do romance Tempo de Cão de Márcia Barbieri
Prólogo
eu era um homem ¿quem discordaria?
Post scriptum
Cutuquei. Estava viva.
Cutuquei. Estava morta.
Um zum zum zum de moscas.
Uma falação de fantasmas.
LIVRO 00:00 – prólogo tardio OU A MORTE VEM A GALOPE–ƎᕋO⅃AӘ A MƎV ƎTЯOM A
Cheguei antes de amanhecer no povoado. A varíola do macaco já visitara todas as casas. Recordei de um ensinamento paterno: quando um homem fala, Deus faz silêncio para escutar. Talvez a doença fosse um castigo divino. Eu vim a pedido do meu pai e pela boca insossa de minha mãe. Fazia frio, por sorte estava bem agasalhado. Se não tivesse ouvido os conselhos maternos sobre vestimentas a essas horas estaria congelando. As mães têm certa utilidade, não podemos negar. Minha mãe pouco falava, no entanto, seu corpo se estendia em um falatório sem fim. A demência era a desgraça da minha família. Uma deficiência congênita [Os demônios, às vezes, têm formas sutis de agir], dizem que se estendeu até mesmo para alguns membros da vizinhança. Isso não me surpreende, já que as cercas eram baixas, o desejo esparramado e as mulheres usavam saias. Muitos nasceram mudos alguns catatônicos outros nasceram loucos outros tiveram ainda mais azar, eram homens esculpidos e escarrados. Não tenho do que reclamar. Poucos tiveram a minha sorte. Eu apenas escorreguei do seu útero e estava ali entre eles. Desengonçado, peludo e grande. Um protótipo de homem. Um macaco que sorria e cagava. Não pude fazer nada. A existência se dera por uma aleatoriedade que eu ainda não compreendia. Não foi uma escolha. Nunca é uma escolha. Ao menos me parece que não herdei a loucura de família. Sou sadio e bom em álgebra. Não que a matemática correta das coisas tenha me salvado do afogamento diário. Ao contrário, só me tem feito contabilizar com perspicácia o fracasso. Indague o que me foi subtraído e te forneço uma lista de algoritmos inúteis. Calcular tem sido apenas uma tarefa para tentar inutilmente espantar o tédio. Ninguém conseguiu inventar uma equação que drible as agruras da existência. Tampouco eu serei o primeiro a inventar. Não me perguntaram nada e duvido que pensaram nessa possibilidade. Eu era mais um num tronco de cem mil exemplares. Sadio, mas dispensável. Se eu morresse minha mãe copularia novamente e daria à luz a outra criatura insignificante. A parteira bateria na bunda da criança esperando o grito inaugural. Meu pai contrariado consentiria. Não respondia pelos seus espermatozoides, minha mãe que controlava quando esses simulacros invisíveis de homem podiam jorrar dentro dela. Meu genitor tinha o sangue frio como o dos lagartos, dependia do ambiente para regular o próprio corpo. Já eu não passava de um sagui sorridente e banguela. Quieto Menino, cada macaco no seu galho! Um estranho no ninho. Dizem que quem sai aos seus não degenera. Cara de um focinho de outro. As fotos na parede da escadaria retratavam este fato com fidedignidade. Não ofereceria meu rosto para envelhecer dentro de um autorretrato, que o tempo me engolisse junto com minhas feições. Eu não perderia horas discutindo com a ancestralidade do daguerreotipo. Não há dúvida que a câmera automática tenha inventado o sorriso. Entre mortos e feridos estavam todos esbanjando arrogância. Cada um com uma cara de paisagem diferente, mas semelhantes na tolice. Quem sai aos seus não degenera… De boca fechada não nos assemelhávamos uns aos outros. Um amontoado de ossos e costelas nos aproximava. Um sobrenome em comum no registro dos nascidos. Uma marca como aquelas que distinguem os gados, evitando assim que o dono seja surrupiado ou que o animal atravesse a cerca vizinha. Não podia imaginar que eu tinha despencado do mesmo buraco que eles. Parecíamos frutos verdes arrancados à força do pé. Não podíamos ser devorados. Apodrecíamos aos poucos. Nós estávamos conscientes que o corpo era apenas uma matéria emprestada. Uma cova se abre a cada passo. Torciam os narizes como se fossem os únicos nessa terra de amaldiçoados. Ninguém diria que eram filhos da mesma desgraça e partilhavam os mesmos genes deficientes e a mesma privada. Se conhece um lugar pela fisionomia ignóbil dos seus habitantes. Os moradores deveriam andar com as caras enfaixadas. Apesar da desgraça, minha mãe continuava orgulhosa alisando a própria barriga como se fosse Deus, se gabava por ter parido meia dúzia de desalmados. Se achava melhor do que as vizinhas estéreis e do que as mulas de carga. Mantinha um sorriso tonto na cara, certa do seu parentesco divino. Apertava as bochechas dos filhos com uma alegria bestial. Olhava a cara de suas crias e via a própria cara refletida num espelho distorcido. Assim mesmo não se enxergava. Ela amava com afinco aquelas criaturas de beiços protuberantes e pernas arqueadas. Eu não abriria a boca para contrariá-la. No entanto, não a perdoaria por ter alojado meus irmãos no mesmo ventre que me nutriu. Meu pai como todos os pais se assemelhava a um fantasma encarnado. Uma assombração familiar, às vezes, sentava-se à mesa. Ele mantinha o tronco um tanto inclinado, como se não quisesse se responsabilizar pelos genes que espalhou. Sim, ele tinha consciência do seu erro. Ninguém precisaria lembrá-lo. Eu via diante de mim um macaco arrependido. Acendia o cigarro, tragava e jogava a fumaça na direção do chão. Em certas ocasiões, flexionava os joelhos e remexia na terra, uma espécie de preparação precoce do próprio enterro. Não morreria tão cedo, é verdade, assim mesmo encenava. Ao menos não se tornara tão alienado quanto minha mãe. Contudo, nada que fizesse poderia retratar o seu equívoco. Já tinha errado o suficiente. Contava as suas faltas com os dedos das duas mãos. Não bastava. Baixava a cabeça envergonhado por ter esparramado pela terra seres estranhos e inadequados. Eu tampouco poderia ajudá-lo, nada que eu fizesse alteraria o fato de ele ter infestado o mundo com seres a sua imagem e semelhança. Se não fosse por ele a humanidade seria um tanto melhor. Coçava a cabeça como se abrigasse uma colônia de piolhos. Era pior do que isso, ele abrigava homens debaixo do seu teto. Ele cuspia uma reza indecifrável por baixo da mesa e depois se retirava, quase se desculpando pela existência desnecessária. Se eu fosse ele também me sentiria culpado. No entanto, não puxei o lado paterno e a culpa não me acompanhava por cima dos ombros. Me sentia confortável tendo nascido com um saco escrotal, não ter um útero já me parecia uma vantagem incalculável. Eu não sabia, mas previa que ser mulher numa terra de homens não era nada confortável. As mulheres eram como animais maquiados.