Uma crônica de .karine queiroz
.karine queiroz, assim com letras minúsculas, iniciadas após um ponto final. Propõe parceiras com as letras, caminhos e olhares desde 1993. Se inspira no universo que surge quando entra em contato com o outro, que por sua vez mora em um filme, em uma paisagem, uma fotografia, um alimento, um abraço, um sorriso e até em um ser humano. Acredita veementemente na relevância horizontal de todos os seres. Documentarista, curadora, roteirista, diretora e produtora audiovisual.
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.Caminho de volta – Suco de sorvete.
38°C, era o que dizia o site “Clima Tempo” naquela tarde de agosto. Eu não sei bem onde fica localizado o satélite que faz as leituras de temperaturas, mas posso garantir que está bem longe da minha pele que, àquela altura da tarde, já sentia-se arder. Engraçado que, nesse dia, apesar do sol estonteante do lado de fora, da pele quente e das cores vivas em tons alaranjados impressos nos cantos, – do lado de dentro estava nublado, frio, calado. E eu precisava de silêncio.
Em resposta ao calor e em busca do silêncio, tomei um banho e saí à rua – lugar onde meu silêncio favorito costuma se esconder. Subindo a rua São Joaquim, a passos lentos e com o olhar atento em busca do silêncio, lá ele se manifestou. Seu mensageiro, um pássaro bem-te-vi – muito utilizado, por sinal – me contou que estava próximo e que, se eu olhasse atentamente para as copas das árvores no percurso, poderia encontrar o silêncio com facilidade.
(Eu não sei vocês, mas eu confio no canto dos bem-te-vis. Muito afinados, são capazes de se comunicar e serem reconhecidos por grande parte dos seres humanos que eu conheço.
– alá, um bem te vi.)
Segui meu caminho, com a cabeça para cima e os olhos para o alto, ansiosa na minha busca implacável por silêncios. Não posso ser injusta, ele deu sinais. Uma folha se desprendendo da árvore aqui, um sorriso entre pai e filho do outro lado da rua, teve até um tropeço que enquanto eu olhava para cima, me lembrou de manter os pés no chão, revelando um mapa nos buracos encoberto de folhas em diferentes tons de decomposição espalhadas pela calçada.
Mas o que eu queria mesmo, é aquele silêncio que cala, que suspende a realidade, aquele momento de trégua com o tempo – maior inimigo dos silêncios – capaz de transformar um segundo em eternidade. Esse silêncio eu ainda não havia encontrado.
Comprei o sorvete.
No caminho de volta, com sabor doce e pele fresca, diminuí os passos – talvez em virtude da baixa coordenação motora ou a serviço da busca. O vento bateu diferente, o sol que estava a se pôr, consentiu para que os olhos pudessem ficar um pouco mais abertos, e até os bem-te-vis, que me contavam sobre suas andanças durante todo o caminho de ida, no caminho de volta deram espaço para minha busca.
O sorvete derretia, eu tropeçava, as araras cantavam e lá estava ele.
No momento exato em que os sensores de luminosidade entenderam que a luz natural já não eram o suficiente para iluminar o que estava do lado de dentro, o silêncio apareceu, preciso e genuíno.
O silêncio, naquele momento se revelou inédito em um lugar conhecido. Eu estava atenta aos movimentos das copas das árvores, mas foi o voo de pássaro azul que condicionou meu olhar para o momento em que as luzes acenderam entre uma graduação mínima de luminosidade. Um nanosegundo entre a falta e a necessidade, eu estava lá e pude ter o silêncio de que precisava.
Antes que eu pudesse agradecer, o silêncio escapou pelo fio de energia que cruzava a rua, deixando o movimento como lembrança. Esse momento, que durou a eternidade necessária para fazer sentir, aconteceu em uma tarde de agosto no caminho de volta – anunciado pelo bem te vi, com sabor de suco de sorvete.