Uma crônica e três poemas de Maíra Dal’Maz
Maíra Dal’Maz (1991) é paraense, mas reside em Natal – RN. É professora, com mestrado em educação, e escritora, tendo seu primeiro livro “Agouro” publicado em 2021 pela Editora Escaleras.
Blog: mairadalmaz.blogspot.com.br
Instagram: @mairadalmazz
E-mail: maira.dalmaz@gmail.com
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O CEGO
nos arredores da rodoviária velha, o cego de bengala acompanha o piso tátil
— mas esta aqui é a pior cidade depois de Aleppo, grita o cego, ao tropeçar na lajota que falta
sabe bem aonde quer chegar, este cego, mesmo sem reconhecer o desenho
do número do transporte coletivo ou os círculos no chão para demarcar seu espaço seguro
e segue firme — uma firmeza não decodificada pela maioria vidente
eu te conto, cego, estás diante da poltrona 9 e os barulhos de pedras são por causa do piche fresco
não te assustes com este profundo breu, a tua visão
tem alguém prostrado diante de você querendo entregar um santinho ou vendendo doces para criar o filho
aceite por educação, cego, estende tua mão
estamos agora contornando o rio e faz uma luz alaranjada belíssima
todos os dias passo por aqui, cego, e à altura da Pedra do Rosário,
há algumas pessoas com estilo duvidoso, por isso nunca desci para ver de perto a água do rio dos camarões
só vendo este tipo para reconhecer — desculpe, cego
chegamos ao cemitério, sabe quem está enterrado aqui? isso mesmo, Café Filho
o cego é sabido
nunca te contei do sobressalto quando te vi tropeçar com aquela sonoplastia indecente das interjeições
comparações agudas
nem do desencanto de viver apenas nos arredores — um torvelinho permanente
o vicário dos sentidos ausentes
mas você deve saber, cego, que anoitece aqui, pois são as cigarras os sinos da anunciação
lembre-se de Aleppo antes das explosões — o elegante calcário cor de marfim ou
os pisos limpíssimos e encerados que refletiam o céu sem nuvens
pois não há mais chance para se erguer da queda quando saltares deste ônibus, cego,
já que agora sabes que a memória é teu único rumo nesta escuridão
*
SCOCH-BRITE
Enquanto as águas rolavam,
via o Antiboi:
nada é caprichoso,
nada é garantido
Nessa terra de verde e amarelo,
Do amarelo macio para as mãos delicadas
e os teflons das frigideiras caras
E do verde lado — áspero dantesco
para os fios fundidos de tétano:
Quisera este canto arear as panelas
do teu panelaço
*
ESTÉTICA DA DECEPÇÃO
Carregado de mim ando no mundo
Gregório de Matos
iguais a você, tantos
andam a lustrar a tez de
um teórico com vinagres de
almíscar, têm nos olhos a
arrogância precoce do título
e batem às portas por onde
entram tantos outros
iguais a você, tantos
*
ELEGIA PARA O ROMANCISTA SUICIDA
diária exegese na capela
orando para que apareçam
os meus anjos da guarda
ou os laboriosos fariseus
a me punir por esquadrinhar
vida pregressa de Victor Heringer e
descobrir que ele se foi
a vinte dias dos seus trinta anos
estando a vinte e três dias dos meus
ainda vivo; o verbo. não sei
onde, me parece o aqui
sobram gestos e experimento a oração:
creio na remissão dos pecados e
na vida eterna, mas —
aonde vai o rio depois que o perdemos
de vista?
*
O PIOLHO DE CASSANDRA
a lida emoldurada
pela janela inclemente
uma Menina no canteiro
entre as pernas da mãe
caminhos de rato
lêndeas, gárgulas
perdoe, Menina
implora o Caronte,
com as mãos
no volante
assim lhe chega a infância
catando caju, manga
ou sendo o piolho de Cassandra