Uma fábula contemporânea de Marcio Markendorf
Marcio Markendorf publicou contos de forma esparsa em coletâneas: “Vanishing point”, do livro Decálogo (SESC/SC, 2008), organizado por Carlos Henrique Schroeder; “Introdução casual ao pensamento sujo”, projeto de três minicontos em Só muda a roupa (SESC/SC, 2009), organizado por Manoel Ricardo de Lima; “Deslizamento do gozo”, “O circo invisível” e “O delicado cadáver do leão”, do volume Todos os livros do mundo (SESC/SC, 2010), organizado por Tabajara Ruas e Rozi Oesterreich; “A história do cílio caído do olho”, narrativa para o projeto artístico de Fabulações reminiscentes (Cultura e barbárie, 2015), idealizado pela artista plástica Juliana Crispe; “O coração de Manassés” e “O gobêri”, reunidos em Entre estantes e entre tantos – histórias inusitadas na biblioteca (UFSC/Biblioteca Universitária, 2017); e “O pinguim” (Intempestiva – Revista de Literatura e Artes Visuais, 2019). É autor da novela Soy loca, Lorca, feito um chien no chão (Urutau, 2019). Em parceria com Adriano Salvi, publicou o livro Microcontando (Caiaponte Edições, 2019) por meio da lei de incentivo à cultura da Fundação Cultural de Balneário Camboriú. É professor do Curso de Cinema e do Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.
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As ovelhas e os lobos
(uma fábula contemporânea)
Naquele tempo, as ovelhas viviam no descampado, sendo reunidas e recolhidas à noite apenas com latidos dos ovelheiros. Mas, por alguma estranha razão, as ovelhas acabaram achando que os lobos seriam melhores que os cães pastores – ainda que esses tipos canídeos pudessem morder os tornozelos, as jugulares e destroçar um ovino.
O que não se imaginava é que as brancas ovelhinhas assim se mobilizaram porque experimentavam, no fundo escuro de si mesmas, certa indisposição para com algumas minorias do grupo, chamadas pejorativamente de ovelhas negras. Algumas começaram a dizer que se fosse com os lobos, não haveria nada daquilo. Era, em parte, tudo culpa dos cães.
Então, de um modo a princípio difuso e indeterminado, balidos dissonantes atraíram lobos sanguinários. E as ovelhas que mais se identificavam com os lobos, algo que se poderia chamar “lobo em pele de cordeiro”, fizeram um trato com a alcateia: o rebanho seria domínio deles se dessem um jeito em tudo.
As ovelhas negras, pressentindo o perigo daquela negociação, tentaram alertar os cães e as brancas ovelhas. O fato só ampliou a recalcada indisposição contra elas. Assim, de uma violência antes velada, as ovelhas brancas passaram às mordidas, às cabeçadas e aos chutes nas outras.
Em um dia como qualquer outro, aconteceu.
Não se sabe o que se deu com os cães, se foram mortos ou se partiram. Sabe-se, apenas, que de uma noite para outra não estavam mais lá. No lugar deles ficaram aqueles outros canídeos, ferozes e altivos.
Acabou que não demorou muito a mudança. Os lobos decidiram prender as ovelhas em um cercado. A princípio, elas acharam que era uma coisa boa, pois triste mesmo era época em que os cães governavam.
Os lobos, então, começaram a pôr para fora as ovelhas que julgavam perigosas ao rebanho. Houve um tipo de comoção entusiasmada de início, um senso de vitória, justiça.
O sentimento, no entanto, foi se transformando quando, em meio às ovelhas negras, algumas brancas também foram apartadas. “Se foram levadas, alguma coisa fizeram”, pensaram sérias, procurando se convencer dos benefícios daquela severidade ríspida.
As brancas ovelhas ainda achavam que tudo estava dentro da regularidade quando começou aquilo que, anos mais tarde, os outros animais do campo chamariam de “o grande abate”.
Os lobos, em sua inteira ferocidade, passaram a eviscerar as ovelhas do lado de fora da cerca. As outras, do lado de dentro, que haviam desejado aquilo porque se achavam diferentes, começaram a sentir remorso e tristeza ouvindo os balidos de terror. Houve até pontadas de saudade do campo aberto, de quando viviam juntas e protegidas pelos cães. Mas era tarde demais, e a convicção dizia que aquele tempo era melhor, ainda que exigisse sacrifícios.
Pouco a pouco, no espaço restrito em que viviam, as ovelhas de dentro pressentiram que estavam erradas sobre o futuro. Não admitiram de imediato nenhuma culpa porque pensavam não ter interferido diretamente nos fatos. Era a prova da inocência delas.
Tal sentimento, contudo, logo se esvaiu.
Com grande espanto, não demorou a patinharem em sangue. Era como uma última mensagem dos corpos de parentes, filhos e amigos mortos.
E como não eram cuidadas pelos lobos como supunham que seriam, tiveram que lamber o sangue do chão para matar a sede. Era terrível ver as brancas ovelhinhas manchadas de vermelho nas patas e nos focinhos, como se fossem a própria alcateia.
Mais tarde, não suportando a fome, nem ao destino que deram a si mesmas, começaram a comer umas às outras. Não sobrou nenhuma.
No princípio, as ovelhas não queriam que houvesse nada daquilo. E não houve mesmo mais nada para ninguém.