Uma fábula de Santiago Nazarian
Santiago Nazarian (São Paulo, 1977) é autor de uma dúzia de livros e tradutor de dezenas.
Este texto é um capítulo de seu romance mais recente, Fé no Inferno (Companhia das Letras, 2020), que retrata o Genocídio Armênio de 1915 e faz paralelos com os tempos atuais.
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A fábula da serpente
Fugindo da perseguição dos turcos, caminhando por campos e montes, o caminho se revelava mais macio do que nunca. Talvez já fosse o hábito, mas cada abrigo que eu encontrava me oferecia um pouso tão lúgubre e, ainda assim, cada decisão de partir parecia tão fatalista, que cada partida se revelava uma nova benção dúbia, com a incerteza de um pouso incerto no caminho.
Dessa vez meus passos seguiam por campos perfumados, de sol aberto, terreno plano, com um deus do otimismo a acoitar‑me em frente. Eu seguia disposto, mesmo com tudo o que acontecera à minha família, mesmo com tudo o que aconteceria, mesmo com toda a desgraça que eu sabia ser inevitável, eu seguia otimista.
Mas o perfume só é doce quando se retém o sabor do amargo, o sol só é bem-vindo enquanto se sente sua falta. Caminhando dias e dias sob sol, sobre pasto, em meio ao perfume, eu me sentia tonto e enjoado. Queria mais do que nunca água fresca para me renovar a garganta. Um banho para me desgrudar dos campos. Um sono sombreado.
E como para demonstrar que o deus do otimismo ainda estava ao meu lado, o campo deu lugar à beira de um rio tranquilo, onde pude beber água fresca até me fartar, então me banhar sem medo de ser levado, depois seguir pela margem em busca do que quer que fosse, porque o que quer que fosse sempre chegaria até a margem de um rio.
Mas um rio também pode se estender muito além da paciência de um menino. E depois de dias seguindo seu curso, passei a me incomodar com a umidade perene, minhas roupas que nunca secavam, os insetos que não me largavam, o borbulhar da água em meus sonhos.
Assim eu saí da margem do rio para voltar aos campos. E logo dei com um bosque convidativo. Por todo esse capítulo de minha jornada, eu não cruzara com nenhuma alma viva, nem ser humano, nem pássaro, nem mamífero — nenhum bicho que se poderia considerar merecedor de alma — e nem um turco. E agora eu me encontrava num bosque que mais parecia um enorme pomar, todas as árvores eram frutíferas. Havia amoras, peras e maçãs. Cresciam morangos, melancias e melões. Também muitas outras frutas que eu só conhecia pelos livros ou das quais nunca havia ouvido falar: maracujás, laranjas e abacaxis. Sentia pela primeira vez o cheiro de manga, banana e coco. E pude provar de todas as frutas e todas estavam doces e maduras. Experimentei a crocância das sementes de jabuticaba, a consistência gelatinosa de um caqui, a leve dormência provocada pela carne do caju. E apesar de cada fruta ser única e deliciosa, apesar de me encherem a barriga e me darem energia, no final do dia eu já estava enjoado de seus aromas, suas texturas e doçura. O que eu não daria por um pão quente, uma carne assada… Cheguei então a uma única árvore, uma árvore única, que dava uma fruta que eu não tinha ideia do que era. De cor viva como uma ameixa, mas numa cor branca como neve, com um cheiro doce de baunilha, mas azedo como o limão, com uma consistência macia de pêssego, espinhosa como mangostim. Colhi uma, intrigado, observando sua cor, sentindo seu cheiro e testando sua consistência, com mais curiosidade do que apetite. Então escutei uma voz:
“Ei, ei, criança…”
Soltei a fruta imediatamente, como para escapar de um flagrante.
Olhei ao redor e não avistei ninguém.
“Quem?”
“Aqui. Aqui na árvore. É muito atrevimento da sua parte roubar minha fruta…”
Examinei entre os galhos por alguns instantes, então, como se materializasse do ar, num movimento, localizei a serpente que se encontrava a poucos centímetros de meu rosto. De cor viva como a ameixa, um branco como a neve, exalava um cheiro de baunilha, com algo azedo de limão; suas escamas pareciam macias como um pêssego, em formato espinhoso de mangostim.
“D‑desculpe…”, gaguejei. Não acreditava que estava falando com uma serpente, uma serpente falante. Refletia se toda aquela fruta, todo aquele açúcar estava me provocando alucinações.
“Não vi alma viva, nem de homem nem de bicho. Achei que este pomar não fosse de ninguém.”
“Como não?”, sibilou a serpente. “Este pomar é de todos. Todos os frutos estão aqui. De onde você acha que vieram as nêsperas, toranjas e nectarinas? De onde tiraram as sementes do figo, do damasco e do abricó? E mesmo as frutas mais exóticas, que só se encontram tão longe, só se encontram tão longe porque foram tiradas daqui, levadas dias pelo mar, noites a cavalo, semanas no estômago de um rouxinol, dentro do estômago de uma águia. E germinaram num único reino específico, num jardim protegido, alimentando a filha de um rei já esquecido. Mas daqui vieram, vieram daqui, e aqui ainda estão.”
Abri então as mãos. “Pois se é de todos, e de todos também faço parte, por que reclama?”
A serpente chiou e avançou ultrajada, fazendo eu me lembrar de que falava com um animal perigoso, me fazendo recuar.
“Estou dizendo que este pomar todo é de frutas para você provar. As frutas de que mais gosta e as frutas de que nunca ouviu falar. Frutas que você pode cultivar em seu próprio jardim e frutas de que nunca mais provará. Frutas que se tornarão suas prediletas e frutas de que nunca mais irá esquecer. Só esta, só esta árvore que é minha e só minha e que peço que dela jamais prove.”
Dei de ombros. “Se aqui estão todas as frutas, se são tantas e todas ao meu alcance, por que eu iria querer exatamente essa sua?”
“Ahhhhh…”, sibilou a serpente em malícia. “Porque esta é a mais doce de todas, cheirosa como nenhuma, macia como só ela, e é toda só minha, só eu a posso ter.”
Dei de ombros novamente. “Neste pomar, já provei muito do doce, conheci novos aromas e experimentei texturas que nunca havia sentido. Que diferença faria mais uma?”
A serpente olhou profundamente nos meus olhos, como para me convencer. “Hummmm, se alguém já tivesse provado todos os sabores do mundo, viajado para todos os continentes e experimentado todos os prazeres possíveis, eu diria que só restaria esta fruta, só restaria esta fruta a ser provada.”
Olhei para a fruta caída aos meus pés. A árvore ainda repleta delas. Perguntei‑me afinal qual sabor teria e, enquanto pigarreava para responder à serpente, senti em minha garganta o sabor doce, ácido e insistente de tantas outras que provara. Voltaram num arroto.
“Pode ficar sossegada. Sinto como se não pudesse engolir mais um único gomo, provar nenhuma polpa, sorver uma gota de suco. Na verdade, o que não daria agora por um assado quente e consistente. Uma carne salgada e saborosa.”
A serpente cuspiu e praguejou, como ofendida. “Não adianta tentar me convencer! Sei que está de olho na minha fruta deliciosa, a única do mundo; e por mais que eu seja só uma, por mais que esta árvore esteja carregada, por mais que eu seja apenas uma serpente indefesa e sem veneno, eu aviso: você nunca a terá!”
Olhei novamente para a árvore, para a fruta e para a serpente, então me decidi. Agarrei o réptil pelo pescoço e o torci.
Naquela noite, jantei carne de cobra assada na fogueira. Era salgada e amarga, rançosa e fedida, dura e fibrosa.