Uma resenha de Anna Cristina de Araújo Rodrigues
“Carta à rainha louca, uma resenha” de autoria de Anna Cristina de Araújo Rodrigues é mais uma resenha da série da Livraria do Mulherio das Letras, em que autoras cadastradas resenham as obras umas das outras. Dessa vez, o romance resenhado é Carta à rainha louca de Maria Valéria Rezende.
Anna Cristina de Araújo Rodrigues é mineira de Coqueiral e mora em Brasília há 32 anos. É formada em Letras e Jornalismo e atualmente faz o doutorado em História da Arte na Universidade de Brasília – UnB.
Maria Valéria Rezende nasceu em Santos e vive atualmente em João Pessoa. É autora dos romances Vasto Mundo (2001), O Voo da Guará Vermelha (2005), Quarenta Dias (2014, Prêmio Jabuti), Outros cantos (2016, Prêmio Casa de las Américas e Prêmio São Paulo), Carta à Rainha Louca (2019), além de diversos livros de contos, crônicas, haicais e histórias infanto-juvenis.
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Carta à rainha louca, uma resenha
O livro de Maria Valéria Rezende – Carta à rainha louca – trata essencialmente de liberdade – ou da falta dela, mais precisamente. Não é uma história de amor malfadado, nem a autobiografia de uma moça branca e portuguesa porém pobre que resolve escrever uma carta à rainha para, humildemente, pedir socorro e clemência.
Na voz da narradora-personagem central, o que se lê é um texto que se apresenta em forma epistolar, mas que, de fato, é um manifesto, visto que seu cunho político é notório. Desde as primeiras páginas, a autora da carta à rainha deixa clara sua intenção de expressar seu ponto de vista sobre como são as ações violentas, corruptas e abusivas dos mandatários políticos na então colônia portuguesa, sendo ela própria, Isabel das Santas Virgens, uma vítima reiterada da tirania e da opressão dos representantes da Coroa na colônia. Da primeira à última linha do texto, não há descanso: as tragédias pessoais de Isabel se misturam com as desgraças de outras mulheres de diferentes segmentos sociais, todas enfrentando doenças mentais tão equivocadamente associadas aos tempos modernos – depressão, ansiedade, pânico, surtos psicóticos: Blandina e sua mãe, representantes das elites agrárias, ambas melancólicas e apáticas, incapazes de enfrentar as dificuldades da vida; as escravas que as acompanham e se sacrificam para diminuir-lhes o sofrimento injusto e excessivo, uma delas Basília, muda em decorrência de ato de violência que lhe arrancou a língua quando ainda era criança (que coisa simbólica!); as “santas e nobres freiras clarissas que vieram de Évora, […] todas elas de boa estirpe e professoras de véu preto”, com o tempo, abandonadas à própria sorte sem ter sequer roupas com que se vestirem; e a própria rainha, sobre quem não há uma linha sequer, mas cujo fantasma de mulher louca vai assombrar o leitor desde o título até o ponto final.
Quem foi essa monarca?
Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana – ou simplesmente D. Maria I – foi a primeira mulher a ocupar o trono português, em 1777, e mãe de seis filhos, um deles D. João VI, seu sucessor no trono, depois que ela foi considerada incapaz de governar. Pode parecer irônico que Isabel recorra a essa rainha para pedir por sua vida e por justiça. É conhecido que D. Maria I, abalada pelas notícias sobre a queda do absolutismo na França, graças à Revolução de 1789, perdeu o controle sobre si mesma e tomou decisões violentas e cruéis contra aqueles que defendiam ideias libertárias. Perdido esse controle, foi afastada do governo e sucedida pelo príncipe-regente em 1792. Não sabemos se a carta chega ao seu destinatário, nem se, uma vez nas mãos da rainha, abrandaria o coração da D. Maria I. Mas, a julgar pelos valores que nortearam seu reinado e o de seu filho, em 1818 proclamado rei, é muito verossímil supor que a Isabel não socorreria melhor sorte.
A leitura desse livro pode variar entre um relato de uma mulher vítima de contingências de sua vida infeliz – e, nesse caso, será uma leitura um tanto arrastada e cansativa pela sequência ininterrupta de obstáculos, conflitos, situações limítrofes de vida e morte, de muitos momentos de desespero – ou uma reconstrução histórica deste nosso cada dia mais infeliz país – e, nesse caso, uma leitura vertiginosa que retomará a história europeia, desde o século XII, com a Inquisição, as grandes questões mundiais a partir do século XVII, como as descobertas de novas terras no globo terrestre, o imperialismo, o tráfico de negros da África para as colônias, o Renascimento, o florescimento do Iluminismo, das ideias liberais e do culto ao individualismo, passando pela Reforma e pela Contrarreforma, pela independência dos EUA e pela Revolução Francesa, até chegar aos nossos dias, mais especificamente ao nosso momento presente, quando já não somos uma colônia portuguesa, mas uma nação que não consegue se desvencilhar das suas origens violentas, ultraconservadoras, racistas, misóginas e corruptas e por isso é hoje um grande calhambeque desgovernado e desenfreado, avançando firme no sentido do que há de pior na humanidade.
Deixando de lado a leitura apenas como relato, já que é muito mais interessante a leitura vertiginosa (que para isso existe a literatura), Isabel das Santas Virgens, na superfície do texto, escreve uma carta à rainha de Portugal para pedir que a monarca tenha piedade e determine seu retorno a Lisboa, já que sua vida na colônia é uma sucessão de perdas e sofrimentos. A partir daí, ela relata as injustiças todas que sofreu desde muito cedo, agravadas pelo aparecimento de um homem mau que destruiu não só a sua vida, mas a de outras mulheres, e transformou-a numa mulher de saúde mental instável e comportamento moral e ético discutível.
Saindo da superfície e mergulhando no lodaçal da vida na colônia, Isabel, de fato, não está pedindo misericórdia à rainha, mas acusando a Coroa dos seus abusos de autoridade. Ela se dirige à autoridade máxima da Coroa – portanto responsável pelo destino da nova nação e autora das determinações desumanas que autorizavam a sangria da colônia e a violação da dignidade das muitas pessoas que aqui viviam – e denuncia sua condição de mulher sujeita a todo tipo de arbitrariedade da sociedade machista a que pertence e até pede desculpas pelos excessos verborrágicos que comete – e que o leitor pode ler, e deve ler, porque ali se encontram as verdadeiras críticas que ela faz a todos os setores da vida nessa sociedade, inclusive imputando à rainha a culpa por esse estado de coisas. Ela ataca a religião – o Cristianismo –, com suas contradições e seus discursos paradoxais de pobreza mas cuja existência é cercada de riquezas e avarezas; enfrenta os problemas políticos causados pelos interesses do Estado português, invariavelmente se confundindo com a Igreja Católica e adotando princípios desumanos, como a escravidão e as desigualdades sociais; e expõe o estado de miséria da mulher nessa sociedade, seja ela rica ou pobre, exacerbado quando essa mulher é negra e escrava. Em resumo, escancara o cerceamento da liberdade, especialmente da liberdade da mulher, de quem se espera pureza e submissão ao homem, caso contrário pagará com a desonra, o isolamento e a morte a desobediência perpetrada contra as determinações patriarcais.
Como não surtar depois de levar uma vida inteira de sofrimento e aprisionamento?
Haveria motivos de sobra no relato de Isabel das Santas Virgens para a leitora atual querer cortar os pulsos, não fosse a potência salvadora das letras. Apesar das desditas vividas, Isabel teve um naco de sorte ao ser criada na casa-grande, junto com a menina Blandina, e ser educada por um padre contratado para cuidar da educação das meninas e a elas ensinar o português, o latim, línguas estrangeiras, além do amor pelo conhecimento (apesar de a tradição luso-brasileira ter passado ao largo do Iluminismo e escapado do impacto da Reforma, parece ter sido impossível matar a semente que ambos os movimentos plantaram). E foi o domínio das habilidades de leitura e escrita que permitiram que Isabel sobrevivesse inteligentemente a muitas situações difíceis. Também foi o amor pelos livros e pela leitura que a salvou de viver uma vida miserável, reclusa e, em alguns momentos, até clandestina, pois os livros deram a ela a chance de conhecer o prazer e alguma alegria.
Esse naco de sorte, porém, não seria suficiente para defini-la. Isabel é mais que isso. É inevitável, em dado momento da leitura, enxergar nela uma personagem que antecipa traços de Antônio Conselheiro, beato que, cem anos depois de concluída a carta à rainha, funda uma comunidade no interior da Bahia, recusando todas as normas da sociedade estabelecida. Trágico fim teve a Guerra de Canudos, e Isabel, como o beato e seus seguidores, acaba por pagar um preço elevado por desafiar a determinação da Coroa de não ser permitido professar outra fé na colônia que não o Cristianismo.
Isabel é uma síntese do povo que somos hoje e da sociedade que aqui se constituiu, marcada pela vasta parte da população marginalizada, seja no interior, seja nas periferias das grandes cidades, e pela minoria poderosa que não dá mostras de superar sua vocação escravocrata, racista, classista, misógina e homofóbica, desinteressada da educação escolar, amante do obscurantismo e sem nenhuma virtude pública.