Valentina Feita de Arco-Íris – Episódio 6
Valentina Feita de Arco-Íris
(Série Policial em 6 Episódios)
Episódio 6 – Da Última Vez, a Chuva.
Cuiabá amanheceu pegando fogo. O calor sentia-se na pele. A temperatura mais elevada do ano: 42°C. E os telejornais com cobertura massiva do assassinato de Claudiney Ferraz. Uma verdadeira panela de pressão.
– O inferno na terra. Péssimo dia para morrer; sentenciou Muñoz, entre um sorriso, que mal disfarçava a irritação, e a repetição do gesto de enxugar com as mãos o suor da testa.
Valentina observava o frenesi. Uma cidade temendo a violência desenfreada, mas sem saber que, nas sombras de hotéis de luxo, seus filhos mais prestigiados negociavam a juventude e a sexualidade de suas crias. A detetive sentiu a impotência de outrora, todas as sensações que a invadiram quando soube da morte de Eva Maria.
Valentina ainda não havia digerido o “sair de cena” do seu informante voluntário. Examinava atentamente os movimentos de Muñoz. Por mais que pensasse, não conseguia encontrar uma ligação entre os Tedescos e o tenente. Um outro fantasma era o fato de Ferraz parecer ter a dianteira no jogo, mas, ainda assim, acabar descartado. O engano que cometera foi atroz, custou a vida de um cliente. Afinal, ele também havia a contratado para encontrar o assassino de Emily. De qualquer modo, portou-se de uma maneira tão pouco sincera quanto Paola. Sinais confusos vinham de todos os lados. Inconformada, a investigadora particular se desvencilhou de Muñoz e começou a circular pela residência de Claudiney Ferraz, o rei do sensacionalismo que tinha o seu dia de explorado. Um tiro de Beretta 9mm no peito direito conduziu o jornalista, sem passagem de volta, para os programas policialescos de todo o território brasileiro.
Enquanto colhia os olhares raivosos ou consternados dos policiais que transitavam na área do crime, Valentina viu uma foto de uma jovem Paola, grávida, ao lado de Oscar e de um homem, que identificou como o vereador Orlando Braz. O político para o qual trabalhava o assessor que articulou um esquema milionário com a empresa de segurança de Tedesco. A detetive olhou mais atentamente para a foto. Paola não estava sorrindo e Braz parecia pálido. No máximo, Paola deveria ter 17 anos. Menina rica. O pai era proprietário de uma rede de restaurantes e de um pequeno buffet. Em seguida, Paola, já esposa e mãe, assumiu o buffet, que mudou de nome, tornando-se Tedesco & Valadares. Nesse instante, a detetive voltou sua atenção para a algazarra que se formava no templo do homem que alimentava paparazzis e compreendeu o que Paola revelava com sua pose rígida e olhar triste. O vereador Orlando Braz havia oferecido sua filha, a deslumbrante Paola, a Oscar Tedesco. Foi assim que surgiu o tal Clube X. O assessor era um laranja, o testa de ferro pronto a pagar pelas consequências. A menina grávida da foto era, na realidade, a primeira vítima do esquema. E não Rita Tedesco, a irmã de Oscar, como Ferraz a havia relatado. Policiais passavam por Valentina e pareciam desconfiar de algo, de que ela conhecia uma verdade que eles precisavam proteger, em nome da propina que dava refeição aos lobos, em nome da manutenção do status quo, em nome da moral e dos bons costumes que conservava a hipocrisia no mundo.
O que os envolvidos no negócio de compra e venda de licitações não esperavam era que Paola engravidasse. E que Oscar Tedesco desejaria que a filha Emily viesse a ver luz do dia. Aquela foto. Bendita foto. Maldita revelação. Valentina observou Muñoz, que sorriu para ela. Com certeza, Ferraz tirou a foto, no tempo em que a amizade e a paixão platônica por Paola o governavam.
Valentina foi até o seu escritório. Saiu sem conversar com Muñoz. Carregava o medo dele esconder um segredo. Mas também carregava o horror de desconfiar de um amigo. A detetive fez algumas pesquisas e ligações. Braz teve um ataque cardíaco em 2009. Tedesco e Ferraz foram assassinados. Restavam Valadares e Paola Braz Tedesco, os atuais donos do Clube X. Paola herdara os negócios do pai. As duas frentes em que Orlando Braz atuava: comida e sexo. Só que o pai foi fraco, cedeu espaço para Tedesco e Valadares. Cobrando favores de uma amiga que trabalhava na Receita Federal, Valentina descobriu que o ex-vereador fez movimentações bancárias de somas consideráveis no final dos anos 1990 e começo de 2000. Transferências para as contas-correntes de Tedesco e Valadares.
A detetive desejou um gole de uísque. Porém, uma necessidade mais premente era a de descobrir quem matou Emily. Aquela confusão era sedutora, mas uma armadilha para a lucidez. Quando voltou a se concentrar mentalmente na foto, lembrou-se de ter visto um homem, no fundo. Jovem, na verdade. Um segurança de Braz? Talvez? Segurava uma arma na mão direita. Cano para baixo, olhos atentos. Surpreendeu-se com os detalhes que conseguiu registrar de um rápido exame da fotografia. Em sua mente, veio a imagem da arma que o segurança carregava: uma pistola Beretta 9mm. Com o susto, Valentina fechou os olhos. “O mesmo modelo de arma de fogo dos meus atentados e a de que matou Ferraz”, ponderava a detetive.
Valentina foi até a janela, pensou em fumar. Precisava refletir, colocar em ordem as informações recém-descobertas e confrontá-las com o passado recente. Voltou a se sentar em sua mesa. “Essa Beretta…”. Depois disso, o clique de algo recordado, que, na fração de segundo em que se manifestou, provocou a sensação de ossos sendo quebrados. “Pelo menos é a que o meu sobrinho usa no treinamento”. Muñoz havia comentado sobre o sobrinho ser do exército, manejar a pistola com excelência, logo após a investigadora ser avisada com tiros em sua porta que deveria se manter longe do caso Emily Tedesco.
Valentina se negou a acreditar, mas precisava reconhecer que a descoberta já era algo concreto desde o dia em que decidiu proteger Sabrina. Enquanto a detetive tornava suas suspeitas certezas absolutas, Muñoz abriu devagar a porta do escritório. Eles estavam, enfim, cara a cara.
– Assim que você saiu da casa do Ferraz, fui olhar o que te fez sumir tão de repente. Encontrei a foto. Um descuido e tanto do nosso amigo jornalista.
Valentina pensava no seu revólver calibre 32 escondido na última gaveta de sua mesa. Estava ao alcance da sua mão. No entanto, o que a incomodava em toda essa situação era o fato de Muñoz a estimular desde o princípio.
– O Valadares… Ninguém te disse para não importuná-lo, não é?
– Eu precisava que esse pedófilo cometesse um vacilo. Mas ele só elogiava a Emily. Ficou no canto dele. Queria tirá-lo de vez da vida da Paola. É complicado se livrar de um sócio, sem que a suspeita seja lançada sobre quem divide sociedade com a vítima.
– Por que você não me despistou? Seria bem mais fácil para concluir a vingança de vocês.
Muñoz riu. Um riso quase insano. Propositadamente insano.
– Feita de Arco-Íris é difícil dar um nó em você. A verdade é que a Paola se desesperou, deu um passo em falso ao contratar uma detetive. Eu mantive a polícia na dela, pois quantos poderosos não passaram pelo Clube X. Com o secretário de segurança no laço, como a investigação iria pra frente. O que você não sabe…
– O que eu sei, Muñoz, é muita coisa; intrépida, Valentina interrompeu seu mentor. – Talvez vocês não quisessem um bode expiatório, nem uma salvadora da pátria. Mas já que ocorreu a precipitação da Paola, você quis me manter por perto pra saber o que fazer na hora certa.
– Isso tem lógica, né?; Muñoz manteve-se sério.
– Me corrija, caso haja alguma imprecisão. Você trabalhou como segurança para o vereador Braz, para a família Braz. Saiu do exército e encontrou esse emprego na empresa do Tedesco. Paola e Rita eram meninas ainda, 16 para 17 anos e Tedesco já contava os seus 25, correto? Um sucesso como empresário. Logo que o Clube X se iniciou, você conheceu a Rita e ficou sabendo o que aconteceu com a Paola. Devoraram a adolescência dessas duas. E, você Muñoz, apaixonou-se pela Rita, quando ela começou a frequentar a casa dos Braz.
Muñoz permaneceu parado, na entrada do escritório. Não fazia gestos abruptos, somente prestava atenção na história que Valentina desenrolava com desenvoltura.
– Rita era linda e triste. Não tinha como não se encantar. Vocês chegaram a namorar. Mas a jovem ainda tinha umas missões a cumprir para o irmão. Um ensaio mais ousado deve ter sido testemunhado por Emily, algo que Oscar dirigiu e horrorizou a criança. Aí começaram os problemas de Emily. Um medo terrível do pai. Na verdade, repugnância. A sua Rita não suportou e fugiu, caiu no mundo. Paola recebia… Recebe notícias dela, por isso nunca houve registro de desaparecimento, não é?
O tenente não respondeu. O olhar absurdamente soturno revelava a sua maior perda, aquilo que classificaria como irrecuperável e teria que arcar para o resto da vida.
– Mas a Paola e você mantiveram contato. E planejaram se livrar do tormento, da culpa. Só que não do Clube X. Afinal, todos têm suas ambições. Tedesco morreu com uma 45mm fria que você arranjou e se livrou em seguida. Anos depois, o vereador Braz teve um ataque cardíaco. Paola o provocou, acelerou o coração dele ao máximo. Como? Eu não sei. Especulo e dramatizo para ficar mais verídico. Falta o escroto do Valadares. Mas hoje é jogar contra eliminá-lo. Porém, pra você é uma questão de honra dá cabo dele, por Rita.
– Valentina, agora chega…
– Não, ainda não. Falta Emily. A verdade sobre Emily. Ela era bipolar. Quando eufórica, destruía o mundo. E isso atraiu Claudiney Ferraz. Obcecado por Paola… O triste disso é que a jovem Braz nem chegou a rejeitá-lo. Não é verdade? Tedesco chegou como um furacão e Paola caiu direto na trama de fraudes fiscais e perversões sexuais que o pai criou. Logo depois, Tedesco se apropriou do negócio sujo do velho e carregou com ele o Valadares. Mas Paola nunca envolveu Emily nisso. Ela tirou aquelas fotos para o Ferraz, que descobriu sobre o Clube X e começou a chantageá-la. Para Emily, as fotos não passaram de uma brincadeira. Estranha, mas brincadeira.
– Exatamente!
– Paola nunca conseguiu se livrar de Ferraz. Até esse dia, mas o estrago já estava feito. Emily era a cara da Paola. Em tudo a menina lembrava a amada maculada, que se tornou a dama de ferro, aquela que não quis mais saber de romances e nem de amores. Aí Emily fugiu de casa, com vergonha dos problemas que acreditava causar para Paola. Procurou Ferraz. Afinal, era a figura masculina mais presente na vida dela, já que Valadares é um pedófilo desgraçado e você precisou agir nas sombras, manter-se afastado. Ter Emily tão perto deixou Ferraz alucinado… O resultado já sabemos. Você ligou todos os pontos também. Um tiro certeiro no peito direito do assassino de Emily Tedesco.
– Quando o Ferraz soube que havia uma detetive particular investigando a morte, ele quis jogar. Era um jogador. Quando você me mostrou as fotos, eu já comecei a desconfiar que havia algo suspeito. Depois que você confrontou a Paola e se afastou de mim, aí tive certeza que Ferraz queria que você fosse a mídia expor o Clube X, já que ele não podia fazer sem se comprometer. Mas era um truque pra manipular a situação e escapar impune.
– O teu sobrinho que atirou em mim? Cadê ele agora?
– Bem longe, Val.
A chuva começou a cair forte depois da alta temperatura daquele dia. Águas que correram pelas ruas de Cuiabá, lavando, em alguns pontos da cidade, o asfalto, em outros, fazendo a lama atolar automóveis.
– O Ferraz era minha fonte. Provavelmente, eu o trataria assim, iria protegê-lo. Nojento!
– E agora, Feita de Arco-Íris?
– Quando a chuva passar, com certeza, irá surgir um arco-íris para deslumbrar os teus olhos.
Muñoz não escondeu o descontentamento com a situação. Falhara em sua pretensão de convocar a presença da justiça disfarçando-a de vingança.
– Mas não há escapatórias para nós, Muñoz. Paola não envolveu Emily nisso, somente uma vez, com o coração sangrando, não é? Porém, envolveu outras garotas, assumiu o negócio e não teve escrúpulos em fazer dessas meninas mercadorias. E você sabia… Acobertou… E eu sei o que você fez. Não há escapatória para nós. Posso te denunciar?
Muñoz levantou o braço que mantinha próximo da cintura, já com a Beretta na mão. Valentina alcançou a gaveta semiaberta, puxou o 32 e atirou com ele pela primeira vez. A bala atingiu a fronte de Muñoz. Foi uma morte instantânea. A Beretta fez um estrago no ombro esquerdo da detetive. Ela ficou sentada na cadeira, sem se mexer ou responder as perguntas dos policiais que atenderam a denúncia a respeito de um tiroteio no centro.
No hospital, com Sabrina ao seu lado, Valentina contou, para uma detetive da Polícia Civil, a história do tenente Muñoz, que perdeu o rumo da justiça ao não conseguir lidar com um amor que nasceu na treva e por ela foi tragado. A detetive ainda revelou que o policial a informou sobre a existência de um clube para adultos, em que filhas de homens poderosos realizavam os fetiches de outros homens poderosos.
Valentina tinha agora mais agentes da lei a odiá-la. Não sentia o gosto do dever cumprido na boca, mas o amargor da dúvida, apesar da prisão de Valadares, acusado de pedofilia e estupro de vulnerável. Paola Tedesco foi indiciada por distribuição de pornografia infantil. Posteriormente, o caso acabou arquivado. Valentina não conseguiu abandonar a sensação de que Paola era uma vítima encarcerada, enjaulada pelo destino que traçaram para ela.
O Clube X tornou-se lenda urbana. E Eva Maria e Emily se consolidaram como fantasmas, presenças ativas para que Valentina se mantivesse em seu caminho seguro.
Às 18 horas, o expediente acabou. Sabrina trancou o escritório, foi até a mesa da chefe e pegou dois copos. Despejou uma dose de uísque em cada um. Beberam até a hora de ir para casa. Valentina pretendia jantar e assistir a um jogo de basquete feminino entre as seleções da Nigéria e da Croácia. Torceria para Nigéria.
– Quando um ganha, todos nós vencemos.
O ombro de Valentina ainda doía. Sabrina fez uma massagem. Mas não aliviou a dor que viver traz como uma cicatriz indelével.
Fim.
(Arte: Miranda Meeks)