“Cerimônia” – Um conto de Wuldson Marcelo
Cerimônia é um dos contos que integra Subterfúgios Urbanos, livro de estreia de Wuldson Marcelo, lançado em 2013, pela editora Multifoco (2013).
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Cerimônia
“Cerimônia litúrgica. Cerimônia de iniciação. Cerimônia protocolar. Cerimônia de casamento. Cerimônia fúnebre.” Hugo, o pequeno escritor precoce, rabiscava um papel enquanto a mãe servia o jantar. Arroz, fritada de camarão, macarrão com frango e salada de cenoura com milho (especialidade de Ruth, a mãe hiperamorosa). Onófrio, o pai disciplinador, chamou a atenção do filho:
– Tira o papel da mesa, rapaz. Isto não é hora de escrever.
Hugo abandonou o escrito no chão. Olhou para o pai, revelando um pálido ressentimento. A irmã caçula, Bia, o “Tesourinho”, brincava com os pedaços de cenoura e milho da salada. Ruth ralhou com a pequena, que chorou ferozmente. Natália, a filha mais velha, a adolescente de ideias contundentes, que enfrentava Onófrio com determinação em vários assuntos, beijou a irmãzinha, que nem mesmo com o gesto de ternura se dissuadiu do estratagema do escândalo. Queria porque queria a compaixão da mãe. Ruth levantou-se, aninhou a pequerrucha no colo e cantou baixinho, “Eu só quero que você saiba que eu estou pensando em você, agora e sempre mais…” A menina ao som de Marisa Monte encerrou a manifestação de brados penetrantes. Ao fim da choradeira o pai comentou:
– Esta menina sempre inventa alguma coisa para conseguir atenção.
Natália entendeu aquela frase comum, quase inofensiva, proferida por um trabalhador cansado da lida, como uma convocação para o confronto.
– A natureza humana é uma luta terrível por atenção, pela notoriedade estrelada. Bia é só mais uma nesse mar de desesperados, de pessoas que desejam carinho e um olhar de admiração.
Onófrio a olhou com espanto e certa irritação. “Bobagem sem tamanho, meu Deus”, pensou o homem secretamente. O que expôs foi um sorriso levemente amarelo que escondia uma vontade tímida de mandar tudo para o inferno.
Ruth sentou Bia novamente em sua cadeirinha. A menina encarou o prato dominado por tabletes de cenoura e milho ao redor. Riu. Irradiava um êxtase excêntrico. Felicidade imensurável provocada por ninharias. Cenoura e milho eram condutores daquela carruagem que trazia uma emoção plena, pura, sem intransigência ou egocentrismo. Onófrio invejou à pequena. Hugo usava o garfo pouco convicto se o ato de comer, naquela noite, dava-lhe prazer. Observou com tristeza o papel no chão, isolado, solitário, abandonado como um trapo velho. “Que pena! Veio-me um trecho para um romance monumental”. Separou um camarão, não teve afã nenhum em degustar o crustáceo que a mãe preparara com dedicação e afeto. Sentiu até um ligeiro nojo do odor do alimento. O cheiro do tempero, orégano e coentro, encorpando-se em suas narinas, entranhando-se na garganta a ponto de quase ocasionar um mal-estar incontrolável. O embrulho no estômago parecia uma indicação de repúdio. Por que o sentimento tão palpável de recusa? Interrogação que, com “requintes” de investigação filosófica, desabou sobre Hugo.
Natália tentava comer com delicadeza. Adorava macarrão com frango. Olhou à mãe a observar família. Percebeu certa expressão de contentamento no semblante de Ruth. Interpretou aquilo como prova do controle que a mãe desejava impor. “Ela está alegre porque engorda os bois para mandar como bem quiser depois”. Não gostou do uso do substantivo “boi” na frase. Pareceu-lhe excessiva e ineficiente. Impulsivamente beijou a face rosada de Bia. A menininha assustou-se, porém não chorou. Lançou um olhar de censura para Natália. No momento em que se concentrava no ato de sugar macarrão, ato que a divertia, fora interrompida abruptamente pela bajulação da irmã. Ela não entendia os sucessivos beijos, abraços e toques de Natália. “Eu não sou boneca”, pensava a incipiente Bia nesses estados de raciocínio, contestação e afirmação. Pensava não, reproduzia os dizeres de Daniela, a filha da vizinha. Daniela contava já com seis anos e gostava de responder à todas as palavras que lhe dirigiam. “Não sei. Sou tão pequena. Você que é grande é que deveria saber”, era a resposta favorita de Daniela às interrogações de sua mãe. Quando isso acontecia Bia delirava. Ela considerava o máximo o jeito lépido e transgressor de Daniela. Transgressão era um vocábulo que vivia nos lábios de Natália. O pai se segurava para não mandar à filha às favas. Ele pensava, “Ela é insuportável, mas só tem catorze anos, ainda precisa da minha proteção. Inferno!”.
Hugo namorava o papel descartado como lixo. Um objeto feito para a arte, largado como uma fralda da Bia lambuzada de fezes. Ainda sentia náuseas provocadas pelo cheiro do camarão.
– Mãe, vou comer somente o frango com macarrão. Ruth olhou-o com tristeza. Um olhar afetado de frustração e certo desapontamento.
– Claro, filhinho. Se não quer o resto e acha que só o macarrão com frango será suficiente para não dar fome de madrugada… Aliás, coma mais tarde uns biscoitos de morango e beba um copo de achocolatado.
O menino sorriu exultante, saboreando o triunfo diante da circunstância tão propícia para evitar o gosto do camarão que o atormentava tanto. Onófrio dirigiu um olhar de desprezo à mulher. Ela não notou os olhos cravejados em seu semblante já cansado de fingir compreensão e aceitação de caprichos. Onófrio suspirou retirando o olhar da mulher e mirando o prato posto perante o seu corpo. “Que mulher molenga. Minha mãe nos tratava nos punhos e no chicote. Flagelos que nenhum destes indecentes já sentiu”. Natália mastigava de boca aberta. Ruth a advertiu:
– Fecha a boca, amor. É feio uma moça mastigar deste jeito.
O pai emendou. – Isso aí é provocação gratuita. Quer ser rebelde, esquece esse negócio de Orkut, shopping center, bolsa Carolina Herrera e não sei o quê, e comece a botar fogo em ônibus ou pichar muros com frases anarquistas.
Ruth escandalizou-se, mas ficou quieta. Hugo lamentou o papel atirado ao chão contra a sua vontade. “Ah, isto daria uma frase espetacular num romance sobre uma patricinha qualquer que é jogada numa realidade suburbana de violência etc.”. Bia continuou faceira a sugar o macarrão, a mastigar o frango sem engoli-lo e a brincar com os pedacinhos de cenoura e milho. Natália, a ofendida da ocasião, sentiu o golpe. Lançou um olhar absurdo para o pai, misto de ironia com intransigência. A raiva subiu-lhe pelos pés e atingiu o cérebro e foi expelida por todos os poros de sua epiderme reluzente e com odor de pêssego.
– O que sabe de revolta juvenil um xucro que só fez trabalhar como parte de um rebanho tocado por um Pastor brincalhão? Faça-me o favor.
Onófrio ergueu-se da cadeira com o intuito de arrebentar os dentes da “atrevida”. Hugo jogou-se para baixo da mesa e, finalmente, abraçou seu papel. Bia acionou o berreiro e um tonel de lágrimas escorreu-lhe pelas faces. Sentiu naquele momento que amava a irmã beijoqueira e temeu por ela. Ruth pensou que era hora de realmente organizar a família e, antes da reação impulsiva do marido, beliscou o braço direito da filha. A adolescente olhou com espanto à mãe. Ruth encarou- -a severamente. Não podia admitir tão alto grau de desrespeito ao homem que proporcionou-lhe as carnes, os legumes, os temperos, enfim, tudo que realizara àquela noite. Natália voltou os olhos para o pai, que resignado sentou-se. Na realidade, a fúria compelia-lhe os pulmões. Mas considerou que a esposa já havia contornado e consertado a situação com propriedades de uma matrona. Hugo embaixo da mesa escrevia compulsivamente um conto que batizou “Atribulações de uma Cerimônia de Jantar em Família”. Ruth agarrou-o pelo braço. O menino largou a caneta e, entendendo o gesto dominador da mãe, saltou para a cadeira. Bia cessou o pranto quando Ruth, já em sua posição na mesa diante do marido, sugou um fiapo de macarrão para alegrar o “Tesourinho”. E, depois, sinceramente, pegou na mão de Natália que não recusou o toque. Em seguida, olhando para todos pronunciou a frase que mais lhe causou dor. Pujança desconhecida, invasora, que nutriu sem pretender que assim fosse, apesar de achar que lá no fundo da alma se escondia a verdade.
– Agora, deixem seu pai comer em paz.
Silêncio durante o restante do jantar, que era devorado pela impostura fastidiosa dos convivas. Foi o que Hugo, o pequeno escritor precoce, traçou nas linhas de seu caderno quando comia, na cama, seus biscoitos acompanhados de leite com achocolatado.
(Ilustração: Jesso Alves).