Redenção – Parte 1
Ela se sente sozinha nessa cidade tão grande e ao mesmo tempo tão pequena de alma. Todos aqui simplesmente sobrevivem de alguma forma, ninguém parece ter o interesse de viver realmente. Fogem uns dos outros e de si mesmos; todos cada vez mais distantes de quem realmente são. Abre o armário, pega o bule velho (herança da casa da mãe), coloca água para ferver, pega um caderno receitas (outra herança da casa da mãe), cantarola uma antiga canção que aprendeu com a aavó. Lembra-se de seu apelido de infância. Volta a um tempo que há muito passou.
Na sala
Jogada no sofá, xícara de café na mão, uma música da adolescência tocando no som do notebook, um prato de bolinho de chuvas sobre a mesinha de centro. Ela não se conforma pelo fato de ter se decidido a fazer somente bolinhos de chuva, mas nada mais havia na despensa. Outra vez tinha esquecido de fazer compras. Odiava ir ao mercado e morando sozinha, às vezes, abstraía essa necessidade. Lê as notícias no jornal e percebe sua insignificância perante o mundo. Há mais de três anos nessa cidade e não consegue se encontrar.
O apartamento quase vazio denuncia a presença de alguém que não sabe se deve partir ou não. Sempre sem paradeiro específico, procura nela mesma as respostas para perguntas que mal consegue formular. Tem trabalhado tanto sem realmente se dedicar a nada, sem fincar raízes. Tem sobrevivido assim como todos os outros. Mas ela queria tanto viver e queria tanto se libertar desse ciclo vicioso. Pensa na mãe, na aavó, na falta daquilo que nunca teve. Sente vontade de chorar, coisa que não faz há muito tempo, o dia continua nublado, parece se arrastar, ela não pretende por os pés para fora de casa.
Na varanda do quarto
Ela fuma o último cigarro do maço, chove, só que agora mais forte que nunca. Novamente decide que é hora de parar de fumar, já é a quinta vez somente nesse ano. Olha dentro do quarto tentando encontrar algo que realmente seja dela, que não tenha pertencido a ninguém e só consegue achar a solidão. Sente novamente aquela vontade de chorar, engole o choro, a dor, a tristeza e solta uma gargalhada que qualquer um que presenciasse a cena acharia ser de alegria. Mas quantas tristezas se escondem em seu riso? Dessa vez ela não consegue segurar o choro, lembra-se da última conversa com a avó nos mínimos detalhes e chora dolorido sentada na cadeira no canto da sacada. Pode ouvir claramente a voz fraca da avó em contraste com o sotaque italiano carregado, a expressão suave de quem sabia que não havia tempo para lágrimas.
“Engole esse choro menina, engole e coloca um sorriso no rosto que ninguém está preocupado com o que se passa no seu mundo. Engole porque ninguém aqui é santo, ninguém aqui tem carta marcada dizendo quando é hora da derrota ou hora da vitória. É sempre hora da luta, e quem perde tempo contando lágrimas vê a vida passar sem conseguir sair do lugar. É isso que você quer para sua vida? Engole o choro, vai, antes que eu sente ao seu lado e comece a chorar com você”.
E o dia virou noite
“Nina, Nina! Levanta você vai se atrasar para o francês”. Ela acorda de sobressalto, assustada com a voz do pai tão nítida aos seus ouvidos. Ainda está sentada na cadeira da varanda, não faz ideia de quanto tempo passou ali. O dia virou noite e faz mais frio que o habitual, o sonho tão real que acabara de ter a fez reencontrar o pai; quantas saudades ela poderia sentir dele? Escolheu o nome da filha em homenagem à sua cantora favorita, também é herança dele o apreço pela língua francesa, pelo blues e pelos cigarros. Faz tanto tempo que ele partiu, ela ainda era uma adolescente sonhadora que queria morar na cidade-luz.
Um banho, um congelado qualquer, um livro e o sábado vai se transformando em domingo. Realmente decidiu que hoje seria um dia de viver no passado. Apesar da vontade enorme de parar de fumar, ela gosta do processo que envolve o vício. “Válvulas de escape”, diria o pai ao justificar seu vício para a filha adolescente. Realmente, até nisso ele tinha razão.
A campainha faz um barulho estridente, mais alto que o normal. Ela sempre esquece de chamar alguém para consertar. Assustada pelo som e pelo horário da visita, reconhece a pessoa que vê através do olho mágico, mas não faz a menor ideia de seu nome. Ela tem certeza que a conhece, mas por algum motivo absurdo não consegue recordar de onde. Resolve abrir a porta, imagina que se o porteiro a deixou subir sem interfonar deve ser realmente íntima.
_Oi! Você não ligou e nem apareceu, eu resolvi vir te ver – diz a moça com olhos cor de esmeralda e de uma aparência quase angelical.
_Eu acabei pegando no sono, acordei quase agora. A gente tinha alguma coisa marcada? pergunta Nina, sem ao menos saber de quem se trata.
Ela tinha lembranças das duas tomando café, conseguia lembrar também do encontro em que estavam na companhia de mais pessoas, mas realmente não sabia seu nome. Achou chato perguntar, talvez fosse melhor tentar descobrir.
_ Fico sempre muito preocupada quando você dorme assim, Nina, sabe que não pode, não te faz bem. Você precisa cuidar disso.
_ É, realmente eu tenho dormido demais, mas não vejo problemas nisso. Eu realmente gosto de dormir, sonho bastante com meu pai, minha mãe…
_É esse o problema, Nina! Você não vê? Seus sonhos te fazem mal, nos fazem mal. Tem nos afastado e te afastado da sua própria vida.
_Eu gosto dos meus sonhos, Clarice.
Disse quase no automático, como se o nome daquela pessoa estivesse preso em sua garganta, pronto para ser dito. Clarice caminha até a cozinha, abre o armário pega um copo de uísque para Nina, que não entende muito bem o porque disso e acha estranho que ela tenha adivinhado sua vontade de beber.
_Que foi Nina? Não está me reconhecendo, né? Por isso teus sonhos te fazem mal, te afastam de mim. Você tem que ficar consciente Nina, você está se perdendo.
_Do que você está falando? Eu não estou te entendendo.
Nina começa a ficar perturbada com a visita e com o fato de não saber de quem se tratava, tinha se arrependido de ter aberto a porta para aquela estranha conhecida. A vontade de beber aumenta conforme aumenta a vontade de manda-la embora. Mas algo a impedia, no fundo parecia que havia um grande afeto seu por Clarice. Aquela voz suave, aquele rosto de feições tão semelhantes davam a impressão de ser alguém da família.
_Clarice, eu gostaria que não se preocupasse. Meus sonhos nunca vão me afastar de ti, seja lá quem você for para mim. É somente uma maneira de encontrar as pessoas que eu nunca posso ver.
_ Nina, minha querida, eu só quero seu bem. Vem, vamos dançar, acho que está na hora de colocar aquela música para a gente.
_ A preferida do papai?
Nina a questiona já com as mãos no antigo disco. Com devaneios de dias passados, na solidão que insulta e com lembranças que nunca morrem, diria a letra daquela canção que durante toda a infância ela ouvia em companhia do pai, na voz da cantora de quem herdou o nome. Dança ouvindo aquela melodia tão íntima e familiar, se sente meio entorpecida pelo álcool, se entrega à sensação. Por algum tempo se desliga daquele lugar onde está, é como se seu corpo e seu espírito se transportassem daquela sala pequena decorada com livros, alguns discos e pôsteres de filmes antigos.
Clarice adormece no sofá. Mais uma vez, Nina se lembra das duas, agora bem jovens, por volta de seus 11 ou 12 anos. Clarice um pouco menorzinha, a mesma cara de anjo, os pés descalços na areia, a pele branca contrastando com o sol forte do verão. Nina com cabelos longos e negros como essa noite de outono que aos poucos vai dando lugar ao dia. As duas caminham pela praia brincando, rindo. Nina parece mais alegre que de costume, seu sorriso resplandece alguma paz cuja memória a pertuba. Enquanto essas imagens passam em sua mente como num filme há tanto esquecido, vai adormecendo no sofá, deita a cabeça nos ombros de Clarice, acha uma posição confortável e começa a entrar novamente no mundo dos seus sonhos.
Ilustração: “Portraits of Drifting Minds”, de Henrietta Harris