A minha realidade onírica – “Lá do outro lado” de Rafaella Elika Borges
A linha entre sonho e realidade é realmente tênue? Quando a linha entre realidade e ilusão fica obscurecida? Duas questões: e se a Matrix for real? E se não despertássemos de um sonho lúcido?
Na antiguidade, o sonho era uma ferramenta de previsão do futuro. A fronteira entre sonho e realidade é material da literatura há séculos, de Cervantes a Machado de Assis, passando por Isabel Allende e Chico Buarque. A atividade do inconsciente humano e nossas elucubrações têm o poder de gerar o fantástico. Um realismo fantástico. E de criar universos paralelos, que podem estar em harmonia ou em tensão.
No mundo onírico, tudo parece ser válido, levando-nos do inusitado ao tenebroso, ferindo a lógica. Afinal, é um sonho. Ou um pesadelo? Há certeza de que não é real?
A Ruído Manifesto desafiou sete autoras/autores para explorar os limites entre o espaço da realidade e o espaço do sonho, assim como entre a ilusão e a razão. A antologia A minha realidade onírica tem organização de nossos editores Tita Martinuci e Wuldson Marcelo.
“‘Dê-me papel e caneta, sem hesitar, escreverei sobre mim, você, nós e tudo o que aconteceu ou deixou de acontecer nessa história e a tinta penetrará a folha marcando até o outro lado com todo esse vazio sobre o qual escrevi’. Rafaella Elika Borges nasceu em 1995, é de Cuiabá – Mato Grosso. Estuda Psicologia na UFMT. Contista, cronista e metida a romancista. É amante da psicologia, filosofia, cosmologia e suas deliciosas vertentes. Escreve porque tem um cérebro que necessita ver o próprio reflexo, seja num espelho, vidro de ônibus, num papel de caderno ou até na tela de um computador desligado. A autoafirmação mantém sua existência e assim ela finge que existe”.
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Lá do outro lado
Postes com luzes amareladas aqueciam a visão de quem observava aquela madrugada chuvosa. Os pinguinhos riscavam os vidros das janelas e me mantinham acordado. Cada pingo um alerta, que não deixava meus olhos pesados se fecharem por completo.
Tentei ler alguma coisa, mas me sentia zonzo demais e as letrinhas pareciam fugir da visão e correr em círculos. Tentei bater uma sem estímulos visuais e o pau murcho não colaborou por causa do benzodiazepínico. Tentei ficar deitado e esperar o sono chegar. Essa nunca funciona… No máximo, me sinto como um semimorto deitado em um caixão, à espera da fatídica noite dos mortos-vivos.
As 30 gotinhas de Diazepam se esforçavam pra fazer efeito, mas em todos os canais televisivos passava algo interessante ou minimamente curioso e eu não conseguia apagar por causa disso.
Um programa de palco. Cheio de mulheres dançando em collants de glitter. Talvez isso trouxesse o sono… Me lembrou os postes de luzes amareladas lá fora. Todos iguaizinhos, alinhados. Simétricos.
A noite preta e fria, e os chuviscos lentos e distorcidos nos clarões dos postes áureos.
Convidados sem talento algum pra nada e quadros sem relevância alguma pra ninguém. Achara o programa perfeito para uma boa noite de sono!
Acomodei as almofadas fedidas no sofá fedido e me afundei confortavelmente para esperar os comerciais acabarem.
Olho lá fora para não me interessar por nenhum produto das propagandas e perder o sono.
Vejo uma luz amarelada fora do padrão dos postes.
Uma janela também acordada naquela madrugada e uma sombra de silhueta por trás da cortina translúcida, amarrando os cabelos.
Não sabia se já havia sido pego pelo sono ou se outro alguém me fazia companhia…
O complexo de apartamentos, todos iguaizinhos, assim como a fileira de postes, todos alinhadinhos, me confundia. Os chuvisquinhos aplainando e a luz crócea da rua me confortavam e eu não sabia mais o que era o quê.
A bagunça do apartamento. As embalagens de comida, de remédio, de encomenda, se misturavam em monstrinhos desordenados e a simetria dos chuviscos, das luzes triangulares dos postes e dos cortes angulares dos prédios na rua se assentavam em mim.
A moça lá do outro lado, em um apartamento igual ao meu, parecia tão perto, tão longe.
Arrumava alguma roupa em um cabide na parede, provavelmente pra usar em nosso encontro mais tarde ou no serviço mais cedo.
Olho pra TV e as pessoas riem, não sei do quê. Olho pro outro lado da rua e a moça levanta os braços, não sei por quê.
Fecho os olhos por alguns segundos e não sei se já dormi.
A chuva para e a rua se eleva, preta como o céu, onírica.
Nessa madrugada tem lua? Teve lua?
A moça lá do outro lado me notou aqui também?
Nos conhecemos? Já nos vimos?
Fecho os olhos e já não sei se estão abertos. Pesados.
O sono vem ou já veio?
Ficou ou já se foi?
A TV continua ligada e as pessoas ainda riem.
A janela de lá continua amarelada, ninguém se vê e não se vê ninguém.