“Secções” – um conto de Divanize Carbonieri
O conto “Secções” de Divanize Carbonieri faz parte da 2a. Coletânea de Prosa do Mulherio das Letras (2018), organizada por Cleonice Alves Lopes-Flois. Ainda integram a obra as crônicas e contos de outras 73 autoras.
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Secções
Depois que apertaram pela quarta vez o torniquete na cabeça de Aurora, ela finalmente apagou. Antes disso, tinham arrancado minhas unhas com um alicate e cortado as pontas dos meus mamilos. Desmaiava algumas vezes, mas ficavam me trazendo de volta, até que não foi mais possível. Então nasceu Luiza alguns anos mais tarde. Luiza não teve uma infância propriamente ruim, desfrutando de certo conforto material e boa educação. Mas era negligenciada pelos pais, que não tinham tempo para ela. No fundo, a culpa era minha, pois surgi na vida deles numa hora imprópria, num momento em que ambos estavam muito ocupados, em plena ascensão profissional. Praticamente desde bebê passava muitas horas na escola e voltava para casa no fim da tarde. Havia dias em que ninguém realmente conversava com ela, apenas lhe diziam o que fazer com frases simples. Nisso se diferenciava de Aurora, cujos pais estavam sempre em casa e podiam lhe dar muita atenção. Meus pais já eram maduros quando nasci. Enquanto crescia, meu pai se aposentou de suas funções no banco, e minha mãe nunca deixou de ser dona de casa. Só ingressei na escola aos sete anos, mas já era alfabetizada. Tinha irmãos de diversas idades que gostavam de estar com ela. Sua casa vivia em festa, com a cantoria dos amigos dos irmãos mais velhos e as brincadeiras barulhentas dos menores. A de Luiza era, em contraste, bem silenciosa. Na verdade, parecia mesmo que ela nem sentia falta de um contato mais próximo com seus familiares. Eu estava ali, mas não estava. Gostava daquelas pessoas, mas não gostava. Não que fosse malcriada ou rebelde. Apenas não me dava, sempre encarcerada dentro de mim. Se não estava na escola, ficava frequentemente na frente da TV e, quando aprendeu a ler, virou uma leitora compulsiva. Romances eram sua leitura favorita porque a ajudavam a escapar da realidade. Foi crescendo nela cada vez mais forte o desejo de ir embora dali e aguardou com impaciência até ter idade suficiente. Quando pôde, foi para a capital estudar. Aurora, que tinha tido a sorte de já nascer na capital, não precisou sair de casa para frequentar a faculdade. Nem sentia necessidade, já que se entrosava tão bem com a família. Não via TV porque, na época, nem todas as casas possuíam uma. Seu pai só comprou um aparelho em 1975, mas daí ela já estava morta. Também lia vorazmente, principalmente história, filosofia, sociologia. Só comecei a ter conflitos em casa quando me meti em política estudantil e partidária. Não que meus pais fossem conservadores, não eram, eles só temiam o que poderia acontecer comigo. Mas não puderam detê-la. Aurora se tornou uma líder entre seus colegas, candidatou-se ao centro acadêmico e depois foi como delegada para um congresso nacional de estudantes. Paralelamente a isso, filiou-se a um partido cassado e entrou para a clandestinidade, ocasião em que se separou de sua família. E assim se desencadeou o processo que encerraria sua vida precocemente. Luiza, ao contrário, se sentia estranha mesmo na universidade, distante de todos. Era sempre como se estivesse no lugar errado. Mudou de curso duas vezes até que acabou indo fazer a graduação que Aurora não tinha podido concluir. Tive uma sensação de alívio imediato, como se finalmente tivesse encontrado o rumo certo. Senti pela primeira vez que as coisas se destravavam, ainda que minimamente, em minha vida. Graduou-se e realizou o sonho de Aurora de fazer mestrado e doutorado e se tornar uma professora universitária. Trabalhou razoavelmente contente por alguns anos. Mas logo a satisfação passou. Luiza não era exatamente igual a Aurora, e isso era um complicador. Tinha conquistado tudo o que Aurora desejara em sua curta trajetória, mas não se sentia realizada, faltava sempre algo cuja natureza desconhecia. O que me apavora é não perceber uma ligação entre o que fiz anteriormente e as direções a minha frente. Como se não tivesse realmente nada para ela fazer nesse futuro a que Aurora não teve direito. Vou dormir, acordo, e os dias são todos iguais: um conjunto de horas em que quase sempre sou vencida pelo desânimo. Não que não faça nada, ao contrário, me encho de atividades e cumpro as tarefas com certo sucesso. Quem está fora não percebe, acha até que sou funcional, produtiva. Não veem que estou representando, interpretando um papel numa peça que é encenada seguidas vezes. Mas se me perguntassem o que realmente faço com vontade, não saberia responder. Dormir ainda consigo, não tenho problemas de insônia, como tantas de minhas colegas. Ontem sonhei que assistia a uma cena em que uma mulher tinha o corpo cortado em pedaços com uma lâmina bem afiada. Cortaram-lhe mãos, pés, pernas, coxas, antebraços, braços, cabeça, e depois dividiram-lhe o tronco em dois a partir da cintura. Ela nunca gritou, parecia morta desde o começo, embora de olhos bem abertos. Por fim, colocaram todas as partes de seu corpo no chão, uma ao lado da outra. Observava de fora, mas também sabia que a mulher seccionada era eu.
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Uma primeira versão do conto “Secções” foi publicada no Diário de Cuiabá em 16 de junho de 2018.