Um ensaio de Sílvia Schmidt
Sílvia Schmidt é natural de São Paulo. Formou-se Letras na FATEA. Especialista em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, Sociologia e Política na USP, e Ontopsicologia em SC. Por 16 anos, ministrou aulas de Literatura Brasileira. Em 2014, cria a editora para livros eletrônicos a Símbol@Digital, quando lança seu romance de estreia Duty Free. Possui trabalhos inéditos em todos os gêneros literários em temática contemporânea-bilíngue, crítica e universal. Impressos ou em novas mídias. Participa como mediadora e curadora em Festivais de Cinema e Literatura com temas contemporâneos como transculturalidade e interseccionalidade. Além dos temas ligados à Arte e Cultura, é educadora e consultora em sustentabilidade.
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Ensaio à Serenidade do Zero de Alexandra Vieira de Almeida (poesia, Penalux, 2017)
Sob o signo do TAO
A bela encadernação da obra, a qualidade de sua editoração, assim como o ícone da primeira capa em tons leves – uma verdadeira aquarela em contrastes do azul ao rosa perdendo-se no horizonte, significando a união do dual – já me encantaram de imediato. O livro como suporte, como pode nos levar a tais lugares, ao não-lugar à serenidade mesmo prometida. O elo, a união dos opostos binários. Assim após abrir o miolo e prospectar sua linguagem, preferi me deixar navegar por suas ondas. E foi com o estranhamento de quem navega outros mundos que me deixei levar. Havia silêncio em meu entorno, uma sincronia, diga-se, entre o horizonte e os belos cumes mineiros, leves sons das aves e águas de cachoeiras. De início fui tomada pelo estranhamento em que a arte aposta-
“A arte é comprometida como um meio de destruir o automatismo perceptivo, a imagem não procura nos facilitar a compreensão de seu sentido, a criação de uma visão e não o de seu reconhecimento. A arte é, portanto, um processo de singularização (Costa Lima, 1973).
Tomada por esse processo estilístico de produção estética indubitável, ancorei-me na surpresa, distanciando-me inclusive dos conceitos e os pré-conceitos acadêmicos. Poesia conteudística, poesia concreta, poesia verbo voco? Inocente, romântica, realista? Contemporânea a quem e a quais nomes do enorme cânone nos respaldariam criticamente e neste em especial?
Deixei-me tomar primeiramente pelo ritmo de Alexandra, nem sextilhas, nem decassílabos, muito menos rimados de modo a garantir o gosto pobre das terminações óbvias: ar ar, er ir, ão ão. Surpreendentemente livres, no tempo do leitor. De seu fôlego, de sua paciência e conjunções alternativas e paralelos extraordinários como prometem os bons jogos semânticos. Os anagramas orientais.
Deixando-me embalar por seu ritmo em balanços sui generis, acalantos inflamados, ao fogo, água , ar e terra, foi que percebi suas intenções. Nem precisava, bastaria a deliciosa leitura sintagmática. Percebi os jogos de contrastes e oposições tomando o corpo paradigmático de sua poises. Fui à pesquisa, investigação e munida do pensamento contemporâneo, cheguei ao pensamento oriental perpassando a História da filosofia a partir de seus precursores. Sim, cheguei ao caminho – ao caminho do meio – do grande pensador Lao Tsè, também conhecido como Laozi ou Lao Tzu, pronúncias ocidentais para o título do personagem cercado de mistério da filosofia antiga chinesa. Lao Tsé não é um nome próprio, significa “grande senhor” ou “velho mestre”. Seu nome verdadeiro seria Li Er ou Lao Dan.
Viveu em uma época de perturbações políticas e efervescência intelectual. Nesse período surgiram dois filósofos de grande importância, Confúcio (551-479 a.C.), reformista social e professor que pregava a justiça social além de desejar restaurar a ordem em um momento de caos, e Lao Tsé que aconselhava uma vida simples com a obtenção da paz absoluta pela submissão à natureza e com valores de pureza, simplicidade, calma e união. Tornou-se uma das figuras mais cultuadas no Taoismo, que é uma mistura de religião e filosofia de vida, com sua obra, o Tao King ou “Livro do Caminho e da Virtude”.
Contrariando-a mesmo a pedido da autora:
sem histórias por favor
Não quero ser o centro nem a periferia
o vazio me basta”
Fui à história do pensamento e encontrei o TAO = o sentido correspondente ao que lia e sentia. Ali encontrei-me com o Zero, o significado do Zero. O vazio, o caminho do meio, o TAO = de onde se origina o UNO e o seu Duplo – neste, a divisão, o binarismo pelo qual, cingidos, sofremos tanto, as dores da alma separada entre as questões da razão e da emoção. Fazia sentido agora para mim o que lia o que apreendia. Alexandra, em a Serenidade do Zero, nos leva a este caminhar-
Não há dor numa espera sem horas
………………………………………
Apague as ondas do mar Serenidade
elas estão no início e no fim de tudo
Deixe o mar morto em sua alternância
entre o sim e o não
Mar sem ondas desiguais que criam a
multiplicidade do mundo
Desfazendo as costuras que são os limites
Alcanço o término de qualquer som e
movimento
Do zero, O Caminho
Quebro aqueles utensílios ocos, na sua
morte estúpida
O esvaziamento do vazio me inebria
Oco é o delírio de não vagar pelo mundo
como fantasma
das horas
De terra, de céu, de fogo e de água
os homens e os centauros se igualam no
seu vazio inaugural
Ainda, seguindo o encontro com o ZERO, o TAO o vazio
Nenhuma dor é possível para quem se
entrega à vida
vida que vagueia na equação de zeros
E, assim, a leitora exigente a que me reporto sempre encontra, neste e em outros tantos versos, a percepção e a serena experiência com a obra em questão. Sim, experiências estas que são únicas, intransferíveis. Pegam-nos pela mãos e penas afinadas com o ser. O tudo e o nada. Existencialmente.
Em Transe
Possuída pela minha própria essência
traduzida em versos
jogo taças nas almas dos tempos
trançados
Paradigmaticamente singular – nem razão nem somente emoção, mas como a um “tal poder que ultrapassa a razão humana e que pela voz autoral revela a potência dos deuses. Mitológico. Potência de tanta claridade que fere e confunde a mera razão humana” (Costa Lima, 1973).
Como Gaston Bachelard nos diria in A poética do devaneio, imagem, ação, produção. Imagética potência:
Segundo os princípios da fenomenologia, tratava-se de trazer à plena luz a tomada de consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas. Essa tomada de consciência, que a fenomenologia moderna quer acrescentar a todos os fenômenos da psique, parecia-nos atribuir um valor- subjetivo- a imagens que muitas vezes encerram apenas uma objetividade duvidosa, uma objetividade urgidia. Obrigando-nos a um retorno sistemático a nós mesmos, a um esforço de clareza na tomada de consciência a propósito de uma imagem dada por um poeta, o método fenomenológico leva-nos a tentar a comunicação com a consciência criante do poeta. A imagem poética nova — uma simples imagem!
ALFABETO TRANSCENDENTAL
Um alfabeto que silencia a escrita
que faz das letras um atalho para uma estrada esburacada
No meio da lama, encontro uma joia de medos
O medo insípido da humanidade
Em soletrar um alfabeto de cemitérios
Busco a transcendência das formas das Letras
Suas sobrevidas, seus fantasmas (p. 41)
Uma obra permeada de aforismos (aforismo é qualquer forma de expressão sucinta de um pensamento moral). Do grego “aphorismus”, que significa “definição breve”,“sentença”. Alguns sinônimos de aforismos são: ditado, máxima, adágio, axioma, provérbio e sentença
Tais como
O olho ou a mão?
O toque é mais delicado que a vista
Os olhos que tudo veem nada veem além montanha
As órbitas que nada veem se deleitam com a visão do paraíso (p. 53)
Náufragos de si, os homens não encontram
a liberdade dos pássaros sem gaiola (p. 55)
O segredo se desveste de sombra
e o sagrado é o aparecimento de tudo
que é o desaparecimento do nada (p. 58)
Alexandra Vieira de Almeida, em A Serenidade do Zero, consegue nos levar para este universo filosófico milenar, sem que tiremos o corpo do lugar, este que é o grande mistério da própria vida, o poder da imaginação do pensar em ação. Poderia eu ficar horas em delírio neste breviário de insinuações, mas afirmo, como no início, o caminho é o seu caminhar – um exercício experimental que não se pode deixar de fazer, quer seja pela simples curiosidade ou como obrigatoriedade de leitura. Ensaiar este livro foi de um aprendizado inexplicável, o que desejo imensamente a todo aquele que se dê nesta ponte ocidente oriente, sem querer com isso minimizar esforços.
Alexandra é leitura para sábios. E a ela deixo aqui a minha escritura-grata.
Lembrando: “ o papel branco
é a única cura para os poetas” (in TAOMUDEZ)
Referências
COSTA LIMA, Luiz. Estruturalismo e Teoria da Literatura. São Paulo: Vozes, 1973.
https://www.academia.edu/37832864/INTRODUCAO_AO_PENSAMENTO_CHINEs-_Palestra_slides_
https://www.significados.com.br/aforismo/
https://docs.google.com/document/d/1O7ZSB_7DshKrKUfftpuILJcSmBHMnZC4ambF3g2GR30/edit
http://www.musarara.com.br/classico-fundador-do-taoismo