Uma resenha de Marli Walker
Marli Walker nasceu em Santa Catarina, de onde saiu aos dezoito anos para viver na região norte de Mato Grosso, região em que viveu por mais de duas décadas. Atualmente, reside em Cuiabá, onde escreve e leciona no Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). Acredita que a educação formal é o caminho mais rápido e seguro para transformar a vida das pessoas e a leitura é a forma mais fácil e bonita para alcançar outros mundos. É mãe de Juca e avó de Giovana, Isabel e Isaac, com que os quais exercita a maternidade e avoternidade, o que julga ser um aprendizado para a vida inteira. Publicou os livros de poemas Pó de serra (2006/2017), Águas de encantação (2009), Apesar do amor (2016), selecionado pelo MEC para constar no PNLD, Jardim de ossos (no prelo, 2020), premiado pelo edital Estevão de Mendonça de Literatura, e o romance Coração Madeira (2020), que pode ser adquirido aqui (https://loja.tantatinta.com.br/produto/coracao-madeira/).
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A mítica e mística poesia de Janete Manacá
As Sinfonias do entardecer de Janete Manacá trazem uma nova sequência à composição musical clássica para orquestra, sempre apresentada em forma de sonata, dividida em três ou quatro partes. Sob a regência da poeta, a sinfonia se organiza em mais de uma centena de poemas divididos em sete partes: “Sagrados momentos”, Sublimes sentimentos”, Desejos resplandecentes”, “Memórias vivas”, “Noite escura”, “Passagem do tempo” e “Enfim plenitude”. Cada uma das partes é introduzida por uma ilustração alusiva ao bloco temático, formando um conjunto imagético que converge para a imagem da capa, numa bela composição temática criada pela artista plástica Elis Souza Rockembach. A quantidade de poemas varia de seção para seção, mas o ritmo se mantém em torno da metáfora temporal que organiza a sequência lírica, revelando um movimento orquestral adequado para o gênero literário que nasceu cantado, acompanhado pela lira. Daí a consagrada expressão ‘lírica” para denominar a poesia que traz o lirismo em sua composição.
Em prefácio à obra, Doriane Azevedo observa “o labor das antigas moiras” incorporado à tessitura dos versos de Manacá, aspecto que se confirma na metáfora cronológica presente no título do livro e no prelúdio escrito pela própria poeta, no qual anuncia a obra que diz ter sido composta “por retalhos de memórias guardados no percurso de várias vidas que pulsam dentro de mim” (MANACÁ, p. 09).
O fio que prende os retalhos conduz a poesia pelo universo de elementos quase sempre míticos ou místicos, como o poema que abre a primeira seção. Em referência à Grande Mãe, a Gaia mitológica, a voz lírica invoca: Oh portadora do conhecimento que transcende a morada do tempo/ Ensina-me os segredos dos quatro elementos/ Para que eu possa ser conduzida pelas asas do vento. E finaliza: Assim, quando que me for, que seja suave a minha passagem/ Que o aconchegante colo de Gaia me embale nesse novo lar. A preocupação com a passagem do tempo e a iminência de um fim está presente e, por isso, a poeta clama pelo conhecimento transcendente, para que a passagem entre os dois tempos seja suave: Xamã universal que habita meu sangue secular/ Eu te invoco com todo amor que há em meu ser essencial.
Nessa perspectiva que funde mistério e misticismo, a poesia de Manacá fala do “amor humano e divino” como sentimento uno e indiviso de onde tudo flui e para onde tudo converge:
Prefácio dos meus versos, rima do universo
Eremita e mestre do meu destino
Com os mistérios da sua lanterna
Conduz-me à fonte divina
A experiência do sagrado elaborada na instância poética faz lembrar de Eliade (1989), estudioso que se dedicou a pesquisar as religiões e os mitos. Para ele, o universo do sagrado constitui um plano sobre-humano capaz de gerar significado à existência, pois é por meio dele que se transcende o mundo das realidades absolutas. É nesse aspecto que a poesia de Manacá se aproxima de esferas míticas e místicas, território sagrado a partir do qual elabora sua lírica.
Na seção ‘Desejos resplandecentes’ a voz lírica enuncia um dos “Desejos” recorrentes na obra: E quando a hora da travessia chegar/ Feliz e serena eu possa partir deste lugar. Não há receio em fazer a travessia, há, contudo, o desejo de fazê-la de forma serena. Para isso, o auxílio do ‘mestre do destino’ é fundamental e por isso é invocado. Curioso o modo como a construção poética subverte a angústia humana diante da passagem irreversível do tempo ao revelar um imaginário pleno de aceitação e inabalável confiança em forças míticas e místicas. A impotência do ser diante da ideia de finitude e a angústia daí advinda não assombram a poeta, ao contrário, ela se abandona às forças sobrenaturais para receber o entardecer serenamente.
Entretanto, no poema “Memórias”, da seção seguinte, surge o lamento sobre certas lembranças ainda vivas: O poema que fiz pra você ainda está na gaveta/ Tanto tempo se passou, eu já tinha me esquecido. É do passado que surge um acorde, um fio que ilumina as reminiscências de um amor que julgava esquecido, mas retorna pelo fio da poesia, por meio dos versos guardados na gaveta.
O poema “A máscara”, que fecha a seção “Noite escura”, revela a múltipla experiência do ser que atravessa a existência em meio aos mais variados estágios de representação, talvez para se adequar a todas as demandas sociais: Eu sou a máscara/ Que você usa/ De manhã/ De tarde/ À noite/ Afinal, viver é representar/ Mas… e o meu verdadeiro rosto,/ Onde foi que eu o deixei? O flagrante momento de retomada de consciência exposto nos dois últimos versos subverte o ritmo da sinfonia alterando o andamento automatizado do cotidiano no qual a própria máscara assumia o controle sobre o ser.
Na última seção, o poema “Sinfonias do entardecer”, que intitula o livro, traz a angústia ante a inexorável passagem do tempo. Nele, a enunciação lírica parece reverberar esperanças e temores de toda a humanidade, fazendo com que o leitor se conheça e reconheça na poesia. A consciência da finitude e a angústia diante da proximidade dos últimos acordes aceleram a melodia:
O agora escorre pelos dedos
O ontem já se faz eternidade
E todos os sonhos têm pressa
A leitura dos poemas de Janete Manacá nos enleva ao som da música e da marcação do tempo fundamental, aspecto também presente na composição de peças musicais. A poesia parece buscar no passado mítico e na instância mística os fios que elaboram os retalhos da existência, não os fios deixados no passado cronológico, mas naquele tempo outro, cujas dimensões se atualizam no poema por meio dos mistérios e dos acordes que envolvem as Sinfonias do entardecer.
ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1989.
MANACÁ, Janete. Sinfonias do entardecer. Cuiabá – MT: Defanti Gráfica e Editora, 2019.
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Janete Manacá: “Quis tantas coisas da vida, ser cantora, atriz, bailarina… E por fim, fui acolhida pela poesia. Foi amor à primeira vista, amor que encanta a alma, que ilumina os olhos, que arrebata e transcende todas as possibilidades. Fui escolhida e escolhi a simplicidade do cotidiano para representar. A poesia ampliou a minha visão de mundo e me trouxe muitas alegrias. Lado a lado seguimos a vida transpondo obstáculos e conquistando novos espaços. Dessa mágica relação nasceram os livros: Deusas Aladas, A Última Valsa, Quando a Vida Renasce do Caos, Sinfonias do Entardecer e a participação na coletânea Sete Feminino de Luas e Marés com 30 mulheres brasileiras. Há 38 anos escolhi viver em Cuiabá, a calorosa cidade-poesia. Por tanto amor envolvido, sou feliz e agradecida. Atualmente sou integrante do Coletivo Literário Maria Taquara – Mulherio das Letras/MT e Parágrafo Cerrado; bacharel em Serviço Social, Comunicação Social e Filosofia, com especialização em semiótica da cultura pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)”.