“50 Cantos” de Lívia Viana (Prefácio) – Por Fred Gustavos
Desde janeiro de 2018, assistimos ao enfraquecimento das Instituições culturais. O problema, ou elemento de crueldade, é que o desmonte da cultura foi um projeto anunciado, defendido por Bolsonaro e seus apoiadores – entre eles, infelizmente, artistas e produtores culturais – durante as eleições presidenciais.
Quem passou pela cadeira da Secretaria Especial de Cultura, nestes quase quatro de mandato, fez o jogo do capitão. Afinal, se vingar é uma especialidade deste (des)governo. E quem é escolhida(o) para o cargo, parece ter algo a tratar com a cena cultural brasileira.
A máquina pública no setor cultural sofreu seríssima avaria, mesmo sendo responsável por 2,5% do PIB nacional, equivalente a 170 bilhões de reais, segundo a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro [Firjan] (ler Economia da Cultura: Entenda a relação entre cultura e economia).
Artistas, trabalhadores da cultura e sociedade, contando com projetos legislativos, como a Lei Aldir Blanc, têm resistido a esse desmonte, a criminalização da arte e as tentativas de difamar e obstruir projetos e a circulação de obras/ produtos culturais.
Diante do veto do presidente Jair Messias Bolsonaro à Lei Paulo Gustavo, que previa o repasse de R$ 3,86 bilhões em recursos federais a estados e municípios para combater efeitos da pandemia, a Ruído Manifesto propôs a idealizadores, artistas, produtores culturais e jornalistas, que apresentassem os projetos que ganharam vida graças à Lei Aldir Blanc, lançado em 2020, que proporcionou o lançamento de cinco editais pela Cultura, da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer de Mato Grosso, e pelo Edital 01/2021/SECEL/MT: Movimentar – SECEL/MT. Esses editais, além de agitar o cenário artístico-cultural do estado, geraram resultados econômicos e sociais.
Em fevereiro, Carla Renck e Pedro Duarte apresentaram Inter.in.venções: as memórias do bairro Areão em Lambe-lambe, dando uma espécie de pontapé à série que radiografa a arte e cultura realizada em Mato Grosso neste tempo pandêmico. Já em abril, o jornalista e poeta Lorenzo Falcão escreveu sobre Fraternal, curta-metragem de estreia na direção do dramaturgo, jornalista e poeta Túlio Paniago.
Para dar continuidade a série, apresentamos 50 Cantos (2021), livro de estreia da fotógrafa Lívia Viana (que já mostrou seu trabalho aqui na Ruído Manifesto em 2020 e teve o livro resenhado em Olhares Escritos da nossa ex-colunista Judi Olli). Fred Gustavos, um dos principais nomes da fotografia em Mato Grosso, escreveu o belo prefácio da obra, que reproduzimos abaixo. 50 Cantos foi contemplado pelo edital da Lei Federal Aldir Blanc.
Instagram: @50cantos
***
Prefácio de 50 Cantos, por Fred Gustavos
Somos bilhões de pares de globos oculares ambulantes no mundo, mas a respeito da paisagem-cidade, onde somos contaminados pelo caos urbano, estamos tão convencionados pelo difuso e pelo cotidiano, que “olhar” se faz um fenômeno extraordinário. Olhar é um exercício ousado, corajoso, principalmente para encarar a alteridade do mundo, e virtuoso, pois, para contemplar a beleza da vida no mundo, é preciso se dispor a parar e apurar o que se vê. Em 50 Cantos, Lívia nos faz percorrer a nossa Cuiabá contemporânea e a estratifica, com suas composições visuais de múltiplas camadas, para enxergarmos não somente além, mas entre.
São as camadas virtuais da cidade que ela fotografa em níveis espaciais que prefiguram relevos, posições, fluxos e constructos na ordenação da nossa cidade com seus templos e habitações, zonas de poder, lazer, nas estações e na mobilidade, nas muitas formas de vida adaptadas ou não a ela. São grades que circundam, torres que se elevam, linhas que nos atravessam, círculos que se repetem e criam uma coreografia fervorosa da cidade e seus objetos. Tudo eventualmente mais emblemático que simbólico, mais perdido que localizado; o que é uma cidade sem paradoxos? A fotógrafa nos reorienta o GPS ocular,
localizando-o, o conjunto dessas imagens traduz uma certa arqueologia, revelando fragmentos submersos, subestimados e substanciais da cidade, mais que vestígios cênicos, históricos, patrimoniais, políticos, denunciam o trato humano e seus percursos amalgamados na cidade-paisagem que criam.
Elementos temporais nada anacrônicos, que estão devidamente sempre perdidos no caos contínuo de uma capital, num estado de prelúdio (destacada na constante presença de cores primárias, que ela elege sobre a textura demasiadamente cinza que se tornou Cuiabá) de futuras ressignificações da vida na cidade.
Por falar em vida, Lívia possui um repertório de olhar porque vive a cidade – aliás, a conheci antes mesmo de eu escolher trilhar caminhos no universo fotográfico, registrando eventos e nos encontrando em muitos dos acontecimentos culturais cuiabanos. Seu ofício na fotografia social, que exige uma complexa sensibilidade para lidar com o tempo-espaço, lapidou a artista que se apresenta e me orgulha apreciar esta sua obra: 50Cantos é um radical e inconfortável convite visual, honesto e poético.
* Fred Gustavos é artista visual e fotógrafo. Desde 2016 apresenta seus trabalhos em concursos e mostras coletivas nacionais e internacionais. Elegeu autorretrato como linguagem para refletir questões contemporâneas através de processos de fotografia expandida e experimentos estéticos. Em 2018 teve sua primeira individual Flora et lumen e foi finalista na 2ª temporada do reality-show “Arte Na Fotografia” do canal Arte 1. E debuta, em 2020, na fotografia documental com o projeto Cuiabanato – Retratos de Artesãos. É premiado em fotografia no maior evento de artes do Centro Oeste Brasileiro, no 26º Salão Jovem Arte de Mato Grosso.
** Lívia Viana atua desde 2013 como fotógrafa, inicialmente realizando cobertura de shows de bandas de rock em Cuiabá. Como não busca se consolidar em um único estilo, segue suas pesquisas, nas quais se arrisca em experimentações repletas de senso crítico e de sutilezas.
Participou de diversas feiras coletivas com seus projetos independentes e integrou várias discussões sobre economia criativa, trazendo para o público a concepção de sua arte ao ar livre.
Em 2015, começou a se aventurar na arte de fotografar o feminino, investindo em uma composição que destaca os cenários e o corpo, priorizando sempre liberdades fundamentais, como a de criação e a de expressão.
É formada em Iluminação Cênica na UNEMAT – Curso Superior de Tecnologia em Teatro. Atualmente, registra eventos em geral, realiza ensaios fotográficos, ilumina peças teatrais e apresentações musicais entre outros e trabalha como videomaker na TV Chapada.