A minha realidade onírica – “É no sonho que reside o perigo” de Tita Martinuci
A linha entre sonho e realidade é realmente tênue? Quando a linha entre realidade e ilusão fica obscurecida? Duas questões: e se a Matrix for real? E se não despertássemos de um sonho lúcido?
Na antiguidade, o sonho era uma ferramenta de previsão do futuro. A fronteira entre sonho e realidade é material da literatura há séculos, de Cervantes a Machado de Assis, passando por Isabel Allende e Chico Buarque. A atividade do inconsciente humano e nossas elucubrações têm o poder de gerar o fantástico. Um realismo fantástico. E de criar universos paralelos, que podem estar em harmonia ou em tensão.
No mundo onírico, tudo parece ser válido, levando-nos do inusitado ao tenebroso, ferindo a lógica. Afinal, é um sonho. Ou um pesadelo? Há certeza de que não é real?
A Ruído Manifesto desafiou sete autoras/autores para explorar os limites entre o espaço da realidade e o espaço do sonho, assim como entre a ilusão e a razão. A antologia A minha realidade onírica tem organização de nossos editores Tita Martinuci e Wuldson Marcelo.
Tita Martinuci. Jornalista formada pela Universidade Norte do Paraná (Unopar) e revisora. Contista que se dedica também a dar aulas de yoga, estudo da filosofia tantrika não-dual e a culinária vegana.
***
É no sonho que reside o perigo
“É no sonho que reside o perigo, quando sonho arrebato minha alma do corpo para atingir dimensões onde flutuo. Tudo é leve, mesmo assim o peso da desilusão tenta a todo momento me puxar de volta ao chão. E por medo da queda busco resistir ao que me puxa de volta e nessa queda de braço me rompo e dilacero.
É quando ouso sonhar que me machuco, porque o medo é meu pesadelo recorrente. Mas não adianta não adormecer e evitar o mundo onírico das ilusões que moram dentro de mim. Sonho não se evita, acontece e quando a gente vê ele transborda no mar do nosso inconsciente.
Virginia Woolf têm duas frases sobre sonho que me impactam. A primeira em Orlando diz, “viver é um sonho, é o despertar que nos mata” e em As ondas que afirma “não, eu não sonho” e eu nunca sei em qual estágio dessas frases estou. Às vezes acordo no meio do nada, num deserto, vendo as areias das ilusões escorrendo entre meus dedos, tudo é inóspito e árido, e meu corpo sedento por algo que o transborde. Noutros momentos navego em mares calmos onde o sol sempre brilha e a luz da lua é sempre nova, porque é sempre começo, recomeço. E é nesse instante que mergulho e sou envolvida pelas águas do oceano, sinto ela entrando pelos meus poros, não tenho medo de me afogar, meu fôlego aguenta a pressão, é como se eu pertencesse a esse lugar: o profundo, turvo, belo e selvagem, quase nada explorado, o misterioso oceano profundo.
É nesse instante silencioso, com o tempo suspenso ao meu redor que encaro meus medos mais profundos, aqueles que me impedem de permanecer. Sou novamente transportada para o deserto, o pesadelo invade o onírico e eu nunca sei em que lugar estou, pois nunca alcanço a realidade.”
Vamos começar essa história, eu não sei se ela vai fazer sentido, mas poucas coisas realmente fazem. O fato é que eu não sei como vim parar aqui, e para você pode parecer só uma desculpa. Mas eu realmente não sei como vim parar no meio dessa rodovia no meio da madrugada, ilhada entre o fluxo de carros e caminhões. Talvez você pense que eu queira me matar e não vou mentir para você, não vou construir nossa relação assim, isso já passou pela minha cabeça só que agora não funciona mais. Eu realmente não tenho noção de como isso aconteceu, minhas memórias são vagas e além do mais minha casa fica há uns quilômetros daqui, não faria sentido vir andando para nada, entende?
Minha última memória nítida? Ah, aliás meu nome é Lorena, te enfiei nessa brisa da minha cabeça e nem me apresentei, né? Antes daqui o vago que me recordo é que estava em casa. Acho que era minha casa porque havia muitos objetos familiares, mas é difícil me recordar com todos esses carros passando acelerando ao meu lado. Realmente, eu não quero morrer, mas é meio impossível, me sinto um pino de boliche prestes a ser atingido por uma bola em alta velocidade. Voltando, eu estava nessa casa, provavelmente minha, conversando com essa pessoa sem rosto, tudo é nítido, mas seu rosto é um borrão. Mesmo assim eu sinto a apreensão e a raiva do seu olhar penetrando meus ossos, ainda sinto meu corpo petrificado com aquela situação. O tom de sua voz é violento e grave, mas minha mente processa como um grito inaudível que não consigo decifrar. É aqui que começam os flashes de memória, porque depois disso são todos recortes. Como se minha mente estivesse me pregando peças.
Lembro de caminhar em direção a uma varanda, a cidade estava estranhamente silenciosa, apesar de ser madrugada era quase impossível esse silêncio absoluto. As luzes se destacavam na escuridão, criando um caminho à minha frente. Depois lembro que um gosto de ferro invadiu minha boca, meu corpo foi ficando pesado e letárgico como se um sono profundo e repentino começasse a me tomar por completo e aí, quando me dei conta acordei aqui. Assim podemos chegar à conclusão que estou sonhando, essa estrada com movimento contínuo não faz sentido. Ainda não consegui uma maneira de sair do recuo entre as duas faixas e alcançar o acostamento. Mas se isso é um sonho, posso me jogar na frente de um carro, talvez eu acorde e saia dessa agonia. Se não for um sonho, posso morrer e não é esse o nosso objetivo aqui! Então, a decisão é não tomar decisão nenhuma e esperar algo acontecer, mas nada acontece. Sou só eu, andando nessa madrugada, entre carros em uma rodovia qualquer. Ninguém parece me enxergar, como sempre na minha vida.
“É possível o sonho e a realidade ocuparem o mesmo lugar? Escuto o som da montanha ruindo, como partes da minha memória que se desprendem aos poucos do meu inconsciente. Sinto o peso das rochas que caem ao chão e fazem tremer as estruturas do meu pensamento. Percebo minha sanidade se desfazendo como a montanha ao meu redor. A poeira cobre minha visão, é tudo turvo e seco, não existe nada intacto. Um terremoto toma conta de mim. Eu sinto tudo desabar.”
– Caralho, Lorena! Eu estou falando com você, não é possível que você não vai falar nada.
Eu vejo a fúria nos seus olhos, a raiva escorre pelas palavras que você insiste em pronunciar, mas eu não sou capaz de te dizer nada. Como poderia te explicar que não consigo mais controlar minha mente, estou a ponto de enlouquecer e que sua reclamação sobre coisas tão superficiais só pioram a situação. Meu corpo pesado e letárgico não tem muitas forças para se sustentar e sinto todo seu ressentimento me prendendo na cadeira. Resisto e caminho em direção à varanda, você me segue. Primeiro, com o som da sua voz, depois com seus passos tensos que contrastam com o silêncio da cidade. Longe eu escuto um estrondo, como se um pedaço grande de rocha se desprendesse montanha abaixo. Na minha frente as luzes da cidade formam faixas de faróis apressados, numa estrada que nunca para.
– Eu vou te deixar, Felipe! Isso não faz mais sentido. Você sabe que eu amo outra pessoa e que eu tô a ponto de surtar com essa situação.
– Não vou deixar, isso é um pesadelo. Você não vai me deixar, Lorena.
Você me abraça e sinto um gosto de ferro invadir minha boca, o frio da lâmina penetra meu corpo que pesa e cai. A estrada agora se apresenta à minha frente, não tenho como sair desse recuo entre as faixas de carro. Meu corpo flutua do vigésimo andar, fecho os olhos e percebo o som das buzinas.
“Qual o limiar entre sonho e realidade? Quando estamos realmente despertos? Nossa mente é capaz de nos fazer sonhar acordado para escapar da realidade? O mar de poeira do desabamento aos poucos se assenta ao meu redor. Vejo ruínas por todos os lados, as memórias de uma vida rachadas, sem salvação. O caos de um mundo desfeito toma conta das minhas emoções, sou invadida por uma onda de desespero e desesperança. A montanha ruiu ao fundo mais uma vez.”
– Lorena, onde você está? Faz meia-hora que estou falando com você.
– Aí, Felipe, desculpa. Estava pensando em coisas do trabalho.
– Tem certeza? Você tá com uma cara meio freak, isso sim, como se estivesse sonhando acordada.
– Claro que não! Larga a mão de ser idiota!
Olho para o lado e, ao voltar a fitar o seu rosto, não consigo enxergá-lo, é tudo um grande borrão. Meu corpo é tomado por um súbito descontrole, saio correndo em direção à varanda. Nem percebo o som da cidade em volta, me agarro nas grades do parapeito. Antes de olhar para baixo, fecho os meus olhos tendo o caminho de luzes como última imagem, ao abrir os olhos em direção ao chão posso ver meu corpo estendido e sem vida lá embaixo. Sou tomada por um torpor. Escuto um estrondo, agora quase como dentro de mim, sinto as estruturas dessa edificação ruindo, ouço sua voz raivosa e indecifrável ao longe. Tudo começa a desmoronar.
Outro estrondo atravessa meus ouvidos, agora mais forte. Como se uma marreta atravessasse as paredes desse apartamento. Abro os olhos e meu corpo está deitado ao seu lado, na nossa cama, sou tomada por uma estranha sensação. Levanto e me sinto flutuar, as paredes tremem como se o mundo continuasse a ruir. Caminho até a varanda da sala, agarro minhas mãos no parapeito e, na ponta dos pés, olho para o chão e vejo meu corpo inerte e sem vida.
“é possível ficar preso entre dois pontos do inconsciente? Entre duas faixas da realidade, sem conseguir atravessar para nenhum lado? Indo e voltando para o mesmo ponto? Essa realidade onde você firma seus pés não está desmoronando?”
– Lorena, você precisa prestar atenção no que eu digo. Onde você está com a cabeça?