Chamas do Círculo Ártico – Por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
***
Chamas do Círculo Ártico
Na Bélgica nunca me acontecem sobressaltos. Por isso que comecei a escrever essa coluna aqui. Quando me mudei para Bruxelas em 2011, um guia dos bairros dizia que “le Grand Sablon est le quartier le plus civilisé de la capitale belge,” e é este o bairro onde me hospedo – uma casa antiga com escadas ameaçadoras que dizem para não beber demais antes de voltar. O bairro mais civilizado: cheguei da Islândia e o que queria era engaiolar Eros, que fosse para que cantasse algo que eu pudesse transcrever. Calma importada das faixas de pedestres perfeitamente distribuídas, com atendentes que ao dizer goiedagbonjour te deixam escolher entre duas línguas.
Chegava na Islândia oito dias antes, e havia sol; via a canção desde as janelas do Icelandair.
Jóga
Björk
All these accidents
That happen
Follow the dot
Coincidence
Makes sense
Only with you
You don’t have to speak
I feel
Emotional landscapes
They puzzle me
Then the riddle gets solved
And you push me up to this
State of emergency
How beautiful to be
State of emergency
Is where I want to be
All that no-one sees
You see
What’s inside of me
Every nerve that hurts
You heal
Deep inside of me
You don’t have to speak
I feel
Emotional landscapes
They puzzle me, confuse
Then the riddle gets solved
And you push me up to this
State of emergency
How beautiful to be
State of emergency
Is where I want to be
/
Ioga
Björk
Todos esses acidentes
Que acontecem
Seguem o pontilhado
Coincidência
Faz sentido
Apenas contigo
Não precisas falar
Eu sinto
Paisagens emocionais
Elas me intrigam
Então o enigma se resolve
E me empurras para este
Estado de emergência
Que bonito estar
Estado de emergência
É onde quero estar
Tudo o que ninguém vê
Tu vês
O que está dentro de mim
Cada nervo que dói
Tu curas
Fundo dentro de mim
Não precisas falar
Eu sinto
Paisagens emocionais
Elas me intrigam, confundem
Então o enigma se resolve
E me empurras para este
Estado de emergência
Que bonito estar
Estado de emergência
É onde quero estar
No dia em que cheguei, vários tremores maiores ou menores, superficiais, sacudiram Reykjavik, anunciando atividade vulcânica. Havia falado com Francesca Cricelli sobre que sorte seria um dia de sol para ver a Ilha de cima – ela evocou Jóga. Ambos tocados pela fada – cuja casa fica na rua de Francesca. Traduzi a canção enquanto a escutava, tentando encaixar sílabas ora no floreio de uma tônica no original, ora ocupando um floreio que não existe. Cantada em português não ficou lá muito charmosa. Mas fiz de uma vez e disposto a não mexer muito – a passagem da conexão com a terra menos compreendida e mais experimentada – alguma compreensão vem, nada verbal, depois. É lava, terremoto geleiras lentas e cachoeiras: uma terra ou pessoa que vem como a ioga, que entra e coloca em um lugar curado. Só fui ver Francesca no dia seguinte, na noite dos pequenos terremotos, ela foi buscar um poeta galego que chegava para uma residência. Alexandre Corbillón – a primeira vez que o vi, ele segurava Andri, o filho da minha amiga, sobre a mesa da cozinha. E o chão finalmente cedeu e a lava veio à superfície perto da capital. Lentamente, sem explodir. Um dia inteiro de fascínio lento: novas rochas ainda quentes e moles, empurradas devagar à beira do lago onde Alexandre ficou, para sua residência. Onde ainda está enquanto escrevo e quando se publicar a coluna.
A lava e os tremores deixam a Islândia maior, centímetros por ano – um movimento violento. Há mais terra: o parlamento viking onde as placas se encontram vai crescendo. Essa massa lenta de chão pode muitas canções e poemas – o caminho dos terremotos e dos jorros de água quente e magma. Eu tomava uma sopa de tomates, e ele um café. Pernas abertas, a cintura virada para a minha, o joelho uma península, minha mão a neve que faz os fiordes. As cabeças próximas vendo fotografias antigas de estudantes em roupas de dança, em roupas de esporte. Eu não soube pedir para ficar na beira do lago.
O terremoto derruba coisas frágeis e dispersas pela casa.
Little Earthquakes
Tori Amos
Yellow bird flying gets shot in the wing
Good year for hunters and Christmas parties
And I hate and I hate and I hate
And I hate elevator music
The way we fight
The way I’m left here silent
Oh these little earthquakes
Here we go again
These little earthquakes
Doesn’t take much to rip us into pieces
We danced in graveyards with vampires ‘till dawn
We laughed in the faces of king never afraid to burn
And I hate and I hate and I hate
And I hate disintegration
Watching us wither
Black winged roses that safely changed their color
Oh these little earthquakes
Here we go again
These little earthquakes
Doesn’t take much to rip us into pieces
Doesn’t take much to rip us into pieces
I can’t reach you
I can’t reach you
I can’t reach you
I can’t reach you
I can’t reach you
Give me life
Give me pain
Give me myself again
Give me life
Give me pain
Give me myself again
Give me life
Give me pain
Give me myself again
Give me life
Give me pain
Give me myself again
Give me life
Give me pain
Give me myself again
Give me life
Give me pain
Give me myself again
Give me life
Give me pain
Give me myself again
Oh these little earthquakes
Here we go again
These little earthquakes
Doesn’t take much to rip us into pieces
Doesn’t take much to rip us into pieces
Doesn’t take much to rip us into pieces
/
Pequenos Terremotos
Tori Amos
Pássaro amarelo voando toma um tiro na asa
Ano bom para caçadores e festas de Natal
E eu odeio e odeio e odeio
E eu odeio música de elevador
O jeito como brigamos
O jeito como sou deixada aqui em silêncio
Oh esses pequenos terremotos
Lá vamos nós de novo
Esses pequenos terremotos
Não é preciso muito para que se nos rasgue em pedaços
Dançamos em cemitérios com vampiros até a aurora
Rimo-nos na cara do rei sem medo de queimar
E eu odeio e odeio e odeio
E eu odeio desintegração
Vendo-nos murchar
Rosas aladas negras que tranquilas mudaram de cor
Oh esses pequenos terremotos
Lá vamos nós de novo
Esses pequenos terremotos
Não é preciso muito para que se nos rasgue em pedaços
Não é preciso muito para que se nos rasgue em pedaços
Não te alcanço
Não te alcanço
Não te alcanço
Não te alcanço
Não te alcanço
Dê-me a vida
Dê-me dor
Dê-me a mim mesma de novo
Dê-me a vida
Dê-me dor
Dê-me a mim mesma de novo
Dê-me a vida
Dê-me dor
Dê-me a mim mesma de novo
Dê-me a vida
Dê-me dor
Dê-me a mim mesma de novo
Dê-me a vida
Dê-me dor
Dê-me a mim mesma de novo
Dê-me a vida
Dê-me dor
Dê-me a mim mesma de novo
Dê-me a vida
Dê-me dor
Dê-me a mim mesma de novo
Oh esses pequenos terremotos
Lá vamos nós de novo
Esses pequenos terremotos
Não é preciso muito para que se nos rasgue em pedaços
Não é preciso muito para que se nos rasgue em pedaços
Não é preciso muito para que se nos rasgue em pedaços
Quem provocou uma briga fui eu – e se não me arrependo foi porque deixei sair os demônios já pequenos, como em um teatro de sombras: o sol nunca se punha, esperávamos por nada para assistir à série dos sonhos – era um terremoto e depois de um dia em volta do Círculo Dourado, o meu último dia na Islândia – um frio terrível na cratera do vulcão-lago. Dez dias depois, traduzi de Virginia Woolf, de Mrs. Dalloway:
She felt very young; at the same time unspeakably aged. She sliced like a knife through everything; at the same time was outside, looking on. She had a perpetual sense, as she watched the taxi cabs, of being out, out, far out to sea and alone; she always had the feeling that it was very, very dangerous to live even one day.
/
Ela se sentiu jovem; ao mesmo tempo indizivelmente envelhecida. Ela cortava por dentro de tudo como uma faca; ao mesmo tempo estava do lado de fora, contemplando. Ela tinha a sensação perpétua, enquanto assistia aos táxis, de estar longe, longe, muito longe no mar aberto e sozinha; ela sempre sentiu que era muito muito perigoso viver, um dia que fosse.
Alexandre me manda um poema, para mim, na primeira noite – e eu o leio fingindo que não fosse, até que ele diz (há que se perdoar os movimentos do outro em um terremoto).
HORIZONTE
Alexandre Corbillón
E na inmensidade dos teus ollos
vexo un rostro coñecido,
unha alma morna entre tempestade,
unha revolución de cores
baixo un manto gris,
un fío de luz co que coso esperanza,
e mesmo unha agulla que tece
e que non é esgana.
Sinto os latexos do teu peito
chamar co aire na miña xanela.
Ten un sabor a mar,
un cheiro a terra.
Cando zoa bica,
e cando bica, pola miña pel navega.
É para min as nubes que coroan as montañas
e o fósforo que acende as estrelas.
/
HORIZONTE
Alexandre Corbillón
E na imensidade dos teus olhos
vejo um rosto conhecido
uma alma morna em meio a tempestade
uma revolução de cores
sob um manto cinza,
um fio de luz com que coso esperança,
e mesmo uma agulha que tece
e que não é forca.
Sinto os latejos do teu peito
soprando na minha janela.
Tens um gosto de mar,
um cheiro de terra
Quando ri beija,
e quando beija, pela minha pele navega.
É para mim as nuvens que coroam as montanhas
e o fósforo que acende as estrelas.
E eu quero ser – como, de mais a mais, costumo ser quase todos os dias – uma revolução de cores. Uma para ele. Era uma cantiga de amigo o que ele me fazia, porque havia dito que as faria por ele, porque estava longe, na beira do lago, e eu na cidade. Respondo:
Ai, flores
Hugo Lorenzetti Neto
uma toalha de mesa tecida de manhã
girassóis folhinhas verdes pratos copos
e as notas finais da música da noite
no topo da escada diz a fada:
eis o dia seguinte
e o dia seguinte pasma os lábios
dispara pequenos terremotos pelas írises
a grama e as florezinhas dançam.
teus e meus versos se abraçam no sofá
que desliza e sobrevoa os líquens da Islândia
anoitece, caem do céu estrelas em chamas
treme minha língua no teu idioma
o violeta de tua voz escorre por minha garganta.
sou aurora e beijo teu peito tuas pernas
e te dou o verde para que pinte teus sonhos.
Na Bélgica escolhe-se uma língua – ou se invade tudo com o inglês; na Islândia conviviam as duas, a galega e a brasileira.
Alexandre escuta canções e escreve. Leio do livro dele, que ainda estou lendo, saltando a esmo entre os poemas, um poema escrito o som de Chess, de Abby Keen:
PEÓN
Alexandre Corbillón
E volverán as ondas morrer á praia,
bañarán a area fina dourada.
Volverán as augas cristalinas
dos mares embravecidos a bater na torre
da pedra máis dura.
Volverán voar escuras bolboretas sobre o
taboleiro,
levando as almas dos peóns finados.
Volverán as campas soar,
chamando polos cabalos
a unha guerra que non son quen de gañar.
E volverán as espadas da verdade
os alfiles empuñar,
matando o corazón do rei
que xa non tem forzas para seguir de pé
e loitar.
/
PEÃO
Alexandre Corbillón
E voltarão as ondas a morrer à praia,
banharão a areia fina dourada.
Voltarão as águas cristalinas
dos mares embravecidos a bater na torre
da pedra mais dura.
Voltarão a voar escuras borboletas sobre o
tabuleiro,
levando as almas dos peões finados.
Voltarão os sinos a soar,
chamando pelos cavalos
a uma guerra que não sou capaz de ganhar.
E voltarão as espadas da verdade
os bispos a empunhar,
matando o coração do rei
que já não tem forças para seguir de pé
e lutar.
As sombras de Alexandre, as cores e os sentidos de Alexandre. Às vezes, quando ele escreve, parece que nos versos ficam feridas antigas que nem cabem nos anos que ele tem. E ao mesmo tempo os versos emergem fortes de sinestesia e de imagens. Tento deixar na tradução o quanto posso do som – a voz dele como música que guia o trabalho. Palavras estranhas e compreensíveis – manter algumas, confiar em quem vai ler: o galego é outra língua, mas ao mesmo tempo é um encanto que nasce na Idade Média das aulas de literatura – de quando eu era jovem e Tori Amos lançou um disco; de quando eu tinha a idade de Alexandre e Björk lançou o outro.
A confissão agita, acalmo-a com a voz de Francesca, que me dá um poema terno, feito numa língua que é sua outra; fez para que eu me divertisse – com toda coragem de traduzir uma tradutora como ela – com a nossa língua comum.
Francesca Cricelli
Mi stacco a fatica da te mentre dormi
sollevo il braccio sinistro
la mia pelle fa cornice attorno ai tuoi capelli
fili rossi e sottili
il tuo respiro mi tiene gli occhi cuciti addosso
il petto e la pancia
e se ora finalmente sprofondi nel sonno
ci disuniamo
sogni forse
gli arti si muovono a scatti
la bocca un fiore muto
alzo il mio dorso – ma tu mi cerchi
e questa nostra danza continua
come se dovesse nascere una stella
disturbati nella nostra posizione di equilibrio
ci mettiamo a ruotare vorticosamente
formiamo un primo nucleo di condensazione
madre e figlio
due particelle elementari
/
Mal me desprendo de ti enquanto dormes
ergo o braço esquerdo
minha pele faz moldura ao redor dos teus cabelos
fios ruivos e sutis
o teu hálito mantém meus olhos costurados
o peito e a barriga
e se agora finalmente submerges no sono
desunimo-nos
sonhos talvez
os membros se movem a solavancos
a boca uma flor muda
ergo minhas costas – mas me procuras
e esta nossa dança continua
como se devesse nascer uma estrela
perturbados em nossa posição de equilíbrio
pomo-nos a girar em turbilhões
formamos um núcleo primeiro de condensação
mãe e filho
duas partículas elementares
A tradução íntima, agora, do poema de Francesca, ela abre alguns caminhos dentro do texto – por exemplo uma palavra mais bonita que respiração, tão óbvia escolha: é preciso deixar bonito como o abraço da amiga, a delicadeza da amizade a se misturar com a versão entre idiomas. Se há algo para esta minha coluna sobre que refletir nesse tipo de teoria que venho fazendo da tradução é essa em que o amor que não o grande das ideias, mas o amor pela presença, pelo toque e pela partilha que entra como força na busca de palavras, de um som que delicadamente sussurre minha voz ao lado. Isso une a tradução do enamorado à tradução do amigo de curta data e longa alma. Traduzir Alexandre; traduzir Francesca – uma pequena família de três poetas juntos no Pride de Reykjavik, numa foto em que o filho da amiga, agora amiga de ambos, vê as cores de certo arco-íris pela primeira vez.
Se é preciso amar os poemas e as línguas – amar a promessa de que alguém vai encontrar, mesmo numa nuvem de duas vozes, a literatura de que talvez precise, e que vai chegar, quem sabe, por acaso –, quando já se ama os poetas, as pessoas dos poetas antes de se traduzir seus poemas, aparece um outro tipo de afeto que orienta trabalho. Esta palavra da minha – ou de nossa, ou dessa outra língua tão parecida com a dele – eu escolhi para você como quem te traz cerejas.
Ao traduzir Virginia Woolf ou Sylvia Plath, e agora falo de duas das minhas escolhas favoritas, além da forma, daquilo que “tem de ser feito”, há também um tipo de amor pelos vestígios, pelas coisas que se encontram nas buscas pela voz da outra pessoa, da outra poeta, que serve de instrumento de trabalho, de pincel e aquarela, para que se resulte a versão manchada e – oxalá – não muito menos bonita.
O poema de Francesca me lembra este:
Morning Song
Sylvia Plath
Love set you going like a fat gold watch.
The midwife slapped your footsoles, and your bald cry
Took its place among the elements.
Our voices echo, magnifying your arrival. New statue.
In a drafty museum, your nakedness
Shadows our safety. We stand round blankly as walls.
I’m no more your mother
Than the cloud that distills a mirror to reflect its own slow
Effacement at the wind’s hand.
All night your moth-breath
Flickers among the flat pink roses. I wake to listen:
A far sea moves in my ear.
One cry, and I stumble from bed, cow-heavy and floral
In my Victorian nightgown.
Your mouth opens clean as a cat’s. The window square
Whitens and swallows its dull stars. And now you try
Your handful of notes;
The clear vowels rise like balloons.
/
Canção da Manhã
Sylvia Plath
O amor te dá corda como a um gordo relógio dourado.
A parteira bateu nas solas dos teus pés, e teu choro careca
Tomou seu lugar entre os elementos.
Nossas vozes se ecoam, ampliando tua chegada. Nova estátua.
Em um museu arejado, tua nudez
Nubla nossa segurança. Ficamos aí pasmados como paredes.
Não sou mais tua mãe
Que a nuvem que destila um espelho para refletir seu lento
Desaparecimento na mão do vento,
A noite toda teu hálito-mariposa
Tremeluz entre as rosas rosadas insípidas. Acordo para ouvir:
Um mar distante se move em meu ouvido.
Um choro, e cambaleio da cama, pesada como vaca e floral
Em minha camisola vitoriana.
Tua boca se abre limpa como a de um gato. O quadro da janela
Embranquece e engole suas estrelas opacas. E agora experimentas
Teu punhado de notas
As vogais límpidas ascendem como balões.
De novo o temor da falta de beleza, e o amor pelos traços de Sylvia que vejo em Francesca com o bebê no colo: essa é a caneta para rascunhar a tradução.
Sim, eu escrevi demais hoje. São as chamas do Círculo Ártico: quando houve mais amores do que consigo ou conseguirei dar conta de elaborar alguma vez na vida. Sentado perto de uma janela numa praça civilizada, vejo de novo como a energia telúrica dos amores por Alexandre e por Francesca moveram-me os gestos, e me despeço com mais Sylvia Plath, com promessas de regresso dramático, confessional – este tradutor e poeta assustado com a meia idade e a morte, encantado pelo amor, incorrigivelmente incapaz de ser discreto. Por favor, você que me lê, que também me desculpe. O número final de hoje será este pequeno cabaré: um poema, sua tradução e a transcriação a partir dele. Não ponha fogo na tua sala, por favor.
Lady Lazarus
Sylvia Plath
I have done it again.
One year in every ten
I manage it——
A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot
A paperweight,
My face a featureless, fine
Jew linen.
Peel off the napkin
O my enemy.
Do I terrify?——
The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.
Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me
And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.
This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.
What a million filaments.
The peanut-crunching crowd
Shoves in to see
Them unwrap me hand and foot——
The big strip tease.
Gentlemen, ladies
These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,
Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.
The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut
As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.
Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.
I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I’ve a call.
It’s easy enough to do it in a cell.
It’s easy enough to do it and stay put.
It’s the theatrical
Comeback in broad day
To the same place, the same face, the same brute
Amused shout:
‘A miracle!’
That knocks me out.
There is a charge
For the eyeing of my scars, there is a charge
For the hearing of my heart——
It really goes.
And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood
Or a piece of my hair or my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.
I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby
That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.
Ash, ash—
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there——
A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.
Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.
Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.
/
Lady Lázaro
Sylvia Plath
E eu fiz de novo
Um ano a cada dez
Eu consigo
Uma espécie de milagre ambulante, minha pele
Reluzente como uma luminária nazista.
Meu pé direito
Um peso de papel
Meu rosto um lençol fino
Judeu, liso.
Descasque meu pano
Ó meu inimigo,
Eu aterrorizo?–––––
O nariz, as órbitas oculares, a coleção completa de dentes
O hálito azedo
Desaparecerão um dia.
Logo logo a carne
Que a caverna grave comeu vai se sentir
Em casa em mim
E eu uma mulher sorridente
Tenho só trinta anos
E como a gata tenho nove vezes para morrer
Esta é a Número Três
Que lixo
Aniquilar cada década.
Que milhão de filamentos
A multidão mastigando amendoim
Se acotovela para ver
Desembrulham-me mão e pé ––––
O grande strip-tease
Cavalheiros, damas
Estas são minhas mãos
Meus joelhos
Eu posso ser pele e osso
Mesmo assim sou a mesma, idêntica mulher
A primeira vez que aconteceu eu tinha dez anos
Foi acidente.
A segunda vez eu pretendia
Aguentar até o fim e não voltar mais
Eu me fechei
Como uma concha
Eles tiveram de chamar e chamar
E colher os vermes de mim como pérolas grudentas
Morrer
É uma arte, como tudo o mais
Faço-a excepcionalmente bem
Faço-a para sentir-me no inferno
Faço-a para sentir-me real
Acho que se pode dizer que tenho vocação
É fácil o bastante para se fazer numa cela
É fácil o bastante para se fazer e aguentar
É o teatral
“Um milagre!”
Isso me arrasa.
Paga-se ingresso
Para se ver minhas cicatrizes, paga-se ingresso
Para se auscultar meu coração–––––
Ele bate mesmo
E paga-se ingresso, um bem caro
Por uma palavra ou um toque
Ou esse pouco de sangue
Ou esse chumaço de cabelos, pedaço de roupa
Então, então, Herr Doktor
Então, Herr Inimiga
Sou sua obra
Sou seu tesouro
A menina de ouro puro
Que derrete e vira um grunhido
Volto-me e queimo
Creio não subestimar sua preocupação tão grande
Cinza, cinza–––––
Cutucas e atiças
Carne, osso, sobrou nada––––
Uma barra de sabão
Uma aliança de casada
Uma obturação de ouro
Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado
Cuidado.
De dentro das cinzas
Levanto-me com meu cabelo ruivo
E como homens que nem ar.
/
Lazarus in drag
Hugo Lorenzetti Neto
Oops… I did it again
Saindo de uma estação de trem
Sempre acontece–––
Um milagre pedestre, minha pele
Reluz como um alien no Pentágono
Meu pé direito
Destroça meu passaporte
Meu rosto uma tela acesa
No cinema vazio.
Arranca minhas plumas
Ó, minha inimiga
Os garotos bonitos tremem?––––
O nariz, as olheiras de ecstasy, dez unhas postiças
O bafo de rola anônima
Desaparecerão no gelo seco
Em breve, carne e perucas
Comporão um fricassé para alimentar
Um lar de boa família
E eu, um homem nu e sorridente
Tenho anos demais para os festivais
E como um polvo tenho três corações para estraçalhar
Este é o Número Três
Que deselegância
Espirrar sangue no público.
Com fitas de led piscantes
A multidão bebe daiquiris
Todos com menos de trinta se beijam.
Rasgo o vestido
Um grande e corpulento strip-tease
Senhoras e moças,
A seda das meias é minha pele
O lamê
Sob a torta de pancake
Estou eu, o desamado de sempre.
A primeira vez que aconteceu eu era ilegal na boate.
Terminou em estupro.
A segunda vez, eu de caso pensado
Montei a casa sobre uma falha geológica
Tudo desabou
Como nos fins de filme de terror
E os bombeiros falavam indonésio,
Recuperaram um salto rosa e um batom.
Submissão
É modalidade esportiva, como qualquer amor.
Tenho duas medalhas de regionais
Pratico com rapazes de olhos tristes
Pratico com rapazes de olhos alegres
Nem uns nem outros me enxergam, anyway.
E depois é só arranhar as paredes
E depois é só encher o rabo de açúcar
É o palco
Mourir sur scène toda noite
Na mesma marcam com a mesma cara e o mesmo brocal
Um pó para cada poro.
“Você está linda!”
O comentário me arrebenta
Ninguém mais visita
As linhas da minha pele, ninguém mais visita
As galerias do meu coração–––
pulsantes e sujar
E ninguém visita, nem nunca visitou
O punhado pulsante de palavras
O arquivo dos sonhos
A orquestra das cores que sai da cozinha
So, so, Mein Herr
So, so Mein Inimiga
Sou uma obra abandonada
Viaduto inacabado
Vigas de ferro surrupiadas
Por onde passam trens para lugar nenhum
Se me volto, já não conheço o lugar
Você assiste pelas câmeras de segurança
Vidro, Vidro–––
O reflexo recorda
Pele, barriga, tudo se fez morte
Lantejoulas desalinhadas
Meia-calça furada
Rímel correndo como cachoeiras
Herr Deus, Herr Lúcifer
Atenção
Atenção.
Da casa de espelhos
Saio novamente maquiada
E como meu coração em praça pública.
Vivaldo félix
Quero bis de tão bom que foi saciar todas essas obras lindas. Fazendo uma vénia pela abdução que esses aliens da literatura me submeteram e me levaram aos seus planetas e vivenciar suas rotinas nunca antes vividas por mim.