Tocando mãos neolíticas – Por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
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Tocando mãos neolíticas
Então a coluna sai no dia do bissexto, e por isso fiquei assombrado. Procurei que tema seria bissexto e aí achei que bissexto poderia ser eu traduzir um poema meu mesmo que eu escrevi, e vou fazer uma coisa abusadíssima: vou abrir o poema com Marguerite Duras.
Estou em Alexandria agora. Passei o dia na Biblioteca Alexandrina. Ali pensei na coluna.
Vir pro Egito assanhou tudo o que construí quando era criança viada nerd: toda a sensualidade dos egípcios sem camisa nos livros de História e na enciclopédia e uma certa sensualidade dos hieróglifos — tudo voltou. Além do mais, o Cairo, onde passei três dias antes de vir para cá — e também Alexandria, mas mais calma (deve ser o mar) — é muito estimulante: as pessoas são perfumadas. Há plantas perfumadas nas ruas. Edifícios em ruínas ainda usados — tudo coberto por camadas de areia, tudo meio marrom. Cheiro de pão, de castanhas assadas, batata-doce assada. As cores mais apagadas, porque está frio e as pessoas vestindo cinza. Pessoas muito bonitas, muito mesmo. Os que me atraem e os que não. Buzina. Conversa. Uma simpatia casual em muitos lugares, não só na relação com quem está trabalhando, mas pessoas na rua que sorriem, retribuem olhares.
E eu entrei no Museu Egípcio. Ao ver o painel dos períodos, toda a aula de História da sétima série do que ainda se chamava primeiro grau voltou – e a vontade de estudar mais também. De aprender árabe. De agora sim entender tudo, como se fosse possível. E logo na entrada, no Período Neolítico e Pré-Dinástico estava essa peça, menor que meu punho:
Trata-se, segundo a legenda que havia ali, da representação humana mais antiga encontrada onde hoje é o Egito. Numa cultura que fez estátuas humanas colossais – e no auge, nas representações de Akhenaton, o colosso vai para as formas do rosto e do corpo, que se fazem longilíneas e carnudas (de carne de pedra) — ver a representação humana mais antiga, e ver que ela é tão pequena, desperta o amor que Marguerite Duras sentiu pelas mãos negativas na caverna madaleniana.
Então aqui está o curta, com legendas em inglês:
E aqui está minha tradução:
As mãos negativas
Marguerite Duras
Chamamo-nas mãos negativas, as pinturas de mãos encontradas nas cavernas
madalenianas da Europa Sub Atlântica. O contorno dessas mãos – pousadas grandes e
aberas sobre a pedra – estava preenchido de cor. Na maioria das vezes azul, preto. Às vezes
vermelho. Nenhuma explicação foi encontrada para esta prática. Em frente ao mar sob a
falésia na parede de granito estas mãos abertas
Azuis e pretas
Do azul da água
Do preto da noite
O homem entrou sozinho na gruta de frente para o mar
Todas as mãos são do mesmo tamanho
ele estava só
O homem sozinho na gruta observou o barulho
o barulho do mar
a imensidão das coisas
E gritou
Tu que tens nome
Tu que és dotado de identidade
Eu te amo
Estas mãos do azul da água
Do preto do céu
Planas pousadas esparramadas no granito cinza
Para que alguém as visse
Sou eu quem chama
Sou eu quem chamava, quem chorava trinta mil anos atrás
Eu te amo
Eu grito que quero te amar, eu te amo
Eu amarei quem quer que me ouça gritar
Sobre a terra vazia vão ficar essas mãos na parede de granito de frente para a
arrebentação do oceano
Insustentável
Ninguém mais ouvirá
Não verá
Trinta mil anos
Essas mãos, pretas
A refração da luz sobre o mar faz estremecer a parede de pedra
Eu sou alguém
Sou aquele que chamava que gritava nesta luz branca
Desejo a palavra ainda não inventada
Olhou a imensidão das coisas no rebentar das ondas, a imensidão da sua força e
então gritou
Acima dele as florestas da Europa, sem fim
Ele para no centro da pedra
dos corredores
dos caminhos de pedra
por todos os lados
Tu que tens um nome que és dotado de identidade
Eu te amo com um amor indefinido
Havia que se descer o penhasco
vencer o medo
O vento sopra do continente
repele o oceano
As ondas lutam contra o vento
Avançam desaceleradas pela sua força e pacientemente chegam até a parede
Tudo se despedaça
Te amo para além de ti
Amarei quem quem quer que me ouça gritar que te amo
Trinta mil anos
eu chamo
eu chamo por aquele que me responderá
eu quero te amar eu te amo
faz trinta mil anos eu grito diante do mar
o espectro branco
era eu quem gritava que te amava, a ti
E então sentei no banco na frente da peça. Coloquei o curta de Duras para tocar e só ouvi o áudio. Sem as ruas de Paris para ver, apenas olhar para a pequenina peça, ali na outra ponta, quando ainda não se planejava destruir o planeta, como se planejou há seiscentos anos. Um dos últimos humanos olha para uma das primeiras representações de sua espécie feita por sua espécie. E pensei nos cogumelos.
At the Egyptian Museum
Hugo Lorenzetti Neto
All of you is a little head — two nostrils and a smirk
carved by wooden nails that poked pores to spring
a flow of wheat to weave hair and beard long eaten
by the Old Kingdom sands that lifted to coral skies
the soul of Pharaoh Menkaure — the thumbs dropped
the chisel and sunk in the argil skull two crater lakes,
wells for the rare tan rain that tints the Nile — I stare into
your buried eyes through the uneducated blurry acrylic,
feel hopeful red mushrooms of my late sad steamy Era
climb my back like painkillers and I, in Duras skirts,
murmur softly to vibrate your tiny moss coated cristals:
— I love you, little earthy human, I love you.
/
No Museu Egípcio
Hugo Lorenzetti Neto
Você todinho é só uma cabeça — duas narinas e um sorriso
talhados por unhas de madeira que abriram poros para fazer
brotar um fluxo de trigo que teceu barba e cabelo já comidos
faz tempo pelas areias do Antigo Reinado que ergueram aos
céus de coral a alma do Faraó Miquerinos — os dedões largaram
o cinzel e afundaram no crânio de argila dois lagos cratéricos,
poços para as chuvas de bronze que tingem o Nilo — encaro
seus olhos enterrados através do acrílico fosco e inculto, sinto
cogumelos encarnados da minha Era triste, tardia e abafada
subindo pelas costas como analgésicos e eu, vestido de Duras,
murmuro suave para vibrar teus minúsculos cristais de musgo:
— eu te amo, humaninho de terra, eu te amo.
O poema foi feito em inglês porque estou fazendo um curso na editora Faber, e foi discutido ali, muito. E depois quis isso, este texto meio estranho. Mas é 29 de fevereiro, e o mundo está torrando, então podemos.