Cromática – Por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
***
Cromática
Tenho um pouco de pena do cinza.
Uma vez, por causa de uma exposição na galeria da embaixada brasileira em Bruxelas de uma dupla de rapazes, Boris Bonne e Oswald Cromheecke, que faziam animações com guache e eram músicos e artistas visuais – enfim, faziam os montes de coisas que as pessoas de Antuérpia fazem – apareceu um mural colorido na parede perto da vitrine. O mural tinha uns soldados andando no meio do mato, um mato tropical, os soldados meio soldadinhos de chumbo: era bonito, e sabidamente feito para ser efêmero. Muito verde e muito vermelho. Os artistas eram bem jovens e bem gente fina. Estavam muito animados por ter a exposição para eles em Bruxelas. E de nosso lado era sempre bom expor belgas, para chamar o público a conhecer o espaço e de repente voltar para ver arte brasileira – parte da comunidade me detestava por isso, mas a vida é mesmo assim, ser detestado mesmo quando você faz alguma coisa que, se não dá certo, pelo menos tinha alguma coerência de pensamento.
(Estou amargo porque o ministério só retribui meu bom trabalho com palavras doces, o que não faz o salário pular de faixa).
(Tenho uma pintura chamada “Woman and the making of woman”, do Bonne e uma pequenina do Cromheecke que acabei ganhando porque parecia eu vestido de burguesia flamenga do século XV – isso quando eu era jovem e bela).
O caso é que o mural era efêmero e por isso tivemos, meu colega Nestor e eu – o orçamento andava triste –, de pintar por cima. E para dar certo, algumas camadas de cinza foram jogadas sobre o mural para que as cores deixassem de vibrar: cinza mais escuro, cinza mais claro, mais claro, e depois várias camadas de branco. Funciona. Mas fico triste pelo cinza e seu efeito calmante: calma, imobilidade, silêncio sempre confundidos com tédio e tristeza. E pode ser que seja isso mesmo, e o problema esteja em se entender tristeza e tédio necessariamente como ruins, e o cinza entrando nisso como uma cor-não-cor.
Gray Stones and Gray Pigeons
Wallace Stevens
The archbishop is away. The church is gray.
He has left his robes folded in camphor.
And dressed in black, he walks
Among fireflies.
The bony buttresses, the bony spires
Arranged under the stony clouds
Stand in a fixed light.
The bishop rests.
He is away. The church is grey.
This is his holiday.
The sexton moves with a sexton’s stare
In the air.
A dithery gold falls everywhere.
It wets the pigeons,
It goes and the birds go,
Turn dry.
Birds that never fly
Except when the bishop passes by,
Globed in today and tomorrow,
Dressed in his colored robes.
/
Pedras Cinza e Pombas Cinza
Wallace Stevens
O arcebispo saiu. A igreja está cinza.
Ele deixou suas túnicas dobradas com cânfora
E vestiu preto, ele caminha
Entre vaga-lumes.
Os contrafortes ossudos, os pináculos ossudos
Arrumados sob as nuvens pedregosas
Estão sob uma luz fixa.
O bispo descansa.
Ele saiu. A igreja está cinza.
É seu feriado.
O sacristão se move com arregalar de sacristão
No ar.
Um ouro hesitante se derrama em toda parte.
Molha os pombos,
Vai e os pássaros vão,
Ficam ressequidos.
Pássaros que nunca voam
Exceto quando o bispo passa,
Englobado por hoje e amanhã,
Vestido com túnicas coloridas.
Existe algo de visual, no sentido mais de ver com a ideia do que ver com os olhos, em alguns poemas de Wallace Stevens, como há nesse. São quase como instruções para tornar as coisas imagens mentais – e por isso acho que vale a pena perder o charme da rima ocasional e substituir por palavras um pouco extravagantes para de alguma forma contribuir para a estranheza do texto – sem inventar muita moda, sem mudar demais o que está no original (poderia, mas não é a intenção agora). Gosto de Stevens porque os poemas dele são um pouco enigmas, um pouco adivinha: eles te pedem para ver com a ideia, e pedem para juntar as imagens, e nisso chega-se ao que se chega, a charada tem várias respostas.
Esse arcebispo que parte e deixa a igreja cinza – escolhi “estar” e não “ser” e uma das coisas de que mais gosto quando traduzo do inglês é que às vezes as duas formas se apresentam e mudam o texto e cabe à tradução decidir. Preferi o transitório, como se a igreja tivesse outras cores antes. E que sai camuflado de noite, engana os vaga-lumes (acabo de descobrir que essa palavra agora leva hífen, embora girassol não leve e que delícia os acordos de ortografia). Há um barroco anglo-saxão: igreja, pássaros e luzes fixas. O cinza, o preto e os vaga-lumes e as túnicas coloridas. Uma trindade: um arcebispo ausente, um bispo que espanta pássaros que só voam quando o veem e um sacristão em espanto, vigília ou os dois – a cor se insinuando, o chiaroscuro e o cinza refletido também em nuvens pedregosas. Eu não sei o que é isso, mas gostei de colocar em português para você ler. Ou eu tenho aqui hipóteses, mas não quero atrapalhar as tuas – de repente o cinza é festivo, não?
(Angélica Freitas disse que tenho vários poemas que lembram muito o Wallace Stevens e isso é melhor do que os prêmios que nunca vou ganhar).
Hoje é o aniversário de Virginia Woolf. Ela tem diários mais antigos, mas de 1915 em diante, analisa seu sobrinho e biógrafo Clive Bell, filho de Vanessa Bell, irmã e talvez pessoa favorita de Woolf, a diarística pega uma avenida e se interrompe aqui e ali. Mas interessa mais perceber que a autora quase não escreve no dia de seu aniversário. Os diários mais antigos e descontinuados têm registros no dia 25 de janeiro em 1897 e 1905. Depois, em 1915, 1918 e 1921. Ela fala de seu aniversário só no dia 26 em mais três anos: 1930, 1931 e 1941, este o ano de sua morte. Vou mostrar aqui o que ela escreveu em 1930, porque quando a coluna for publicada há chances de já ser 26 de janeiro aqui em Luanda.
I am 48: we have been at Rodmell—a wet, windy day again; but on my birthday we walked among the downs, like the folded wings of grey birds; & saw first one fox, very long with his brush stretched; then a second; which had been barking, for the sun was hot over us; it leapt lightly over a fence & entered the furze—a very rare sight. How many foxes are there in England? At night I read Lord Chaplin’s life. I cannot yet write naturally in my new room, because the table is not the right height, & I must stoop to warm my hands. Everything must be absolutely what I am used to.
/
Tenho 48 anos: estivemos em Rodmell – um dia úmido e de vento de novo; mas ni meu aniversário caminhamos pelas colinas, como as asas dobradas de pássaros cinza; & vimos primeiro uma raposa, muito comprida com seu rabo esticado; então uma segunda, que andou regougando, pois o sol estava quente sobre nós; ela pulou suavemente por cima de uma cerca & entrou no tojo – uma aparição muito rara. Quantas raposas há na Inglaterra? à noite eu li a vida de Lord Chaplin. Não consigo escrever com muita naturalidade na minha nova sala, porque a mesa não tem a altura certa, & eu preciso me abaixar para esquentar minhas mãos. Tudo precisa ser absolutamente aquilo com que estou acostumada.
Ali está o cinza. E raposas que imagino ruivas. Não fui convocado a imaginar nada, mas imaginei as raposas de Rodmell ruivas. Rodmell fica em East Sussex, perto de Newhaven e não muito longe de Brighton. Deve ser mesmo chuvoso e cinza. Mas as raposas são ruivas, Brighton ali perto tem Bright no nome e é o aniversário de Virginia Woolf que está a ser descrito. E ela tem duas cores mais, num conto curto muito bonito, que vou mostrar para você agora. Outra coisa: Woolf usa o E comercial – ampersand – sempre, ou quase. A palavra “and” só aparece em ocasiões em que se faz muito expressiva. Mais um caso de palavra cinza, a conjunção “e”, tornando-se colorida. Até porque cinza é cor e a cor está em relação com outra para ser.
(Um dia eu quero ir a Dover porque eu tinha uma crush no Andy, personagem do meu livro de inglês da quinta série – as falésias de Dover são brancas).
Blue & Green
Virginia Woolf
GREEN
THE POINTED FINGERS of glass hang downwards. The light slides down the glass, and drops a pool of green. All day long the ten fingers of the lustre drop green upon the marble. The feathers of parakeets–their harsh cries–sharp blades of palm trees–green, too; green needles glittering in the sun. But the hard glass drips on to the marble; the pools hover above the desert sand; the camels lurch through them; the pools settle on the marble; rushes edge them; weeds clog them; here and there a white blossom; the frog flops over; at night the stars are set there unbroken. Evening comes, and the shadow sweeps the green over the mantlepiece; the ruffled surface of ocean. No ships come; the aimless waves sway beneath the empty sky. It’s night; the needles drip blots of blue. The green’s out.
BLUE
The snub-nosed monster rises to the surface and spouts through his blunt nostrils two columns of water, which, fiery-white in the centre, spray off into a fringe of blue beads. Strokes of blue line the black tarpaulin of his hide. Slushing the water through mouth and nostrils he sings, heavy with water, and the blue closes over him dowsing the polished pebbles of his eyes. Thrown upon the beach he lies, blunt, obtuse, shedding dry blue scales. Their metallic blue stains the rusty iron on the beach. Blue are the ribs of the wrecked rowing boat. A wave rolls beneath the blue bells. But the cathedral’s different, cold, incense laden, faint blue with the veils of madonnas.
/
Azul & Verde
Virginia Woolf
VERDE
OS DEDOS PONTUDOS de vidro pendem para baixo. A luz desliza pelo vidro e pinga uma poça verde. Durante todo o dia, os dez dedos do lustre caem verdes sobre o mármore. As penas dos periquitos – seus gritos ásperos – lâminas afiadas de palmeiras – verdes também; agulhas verdes reluzindo ao sol. Mas o vidro duro goteja no mármore; as piscinas pairam sobre a areia do deserto; os camelos cambaleiam através delas; as piscinas repousam sobre o mármore; juncos as beiram; ervas daninhas os obstruem; aqui e ali uma flor branca; o sapo tomba; à noite as estrelas se põem ali intactas. A noite chega e a sombra varre o verde sobre a lareira; a superfície perturbada do oceano. Nenhum navio vem; as ondas sem rumo balançam sob o céu vazio. É noite; as agulhas gotejam manchas azuis. O verde acabou.
AZUL
O monstro de nariz arrebitado sobe à superfície e jorra através de suas narinas rombas duas colunas de água, que, branco-ardente no centro, se espalham em uma franja de contas azuis. Golpes de azul marcam a lona preta de sua pele. Babando a água pela boca e pelas narinas, ele canta, pesado de água, e o azul se fecha sobre ele, encharcando os seixos polidos de seus olhos. Jogado na praia, ele jaz, rombudo, obtuso, despetalando escamas azuis e secas. Seu azul metálico mancha o ferro enferrujado da praia. Azuis são as costelas do barco a remo naufragado. Uma onda se desenrola sob os sinos azuis. Mas a catedral está diferente, fria, repleta de incenso, de um azul fatigado com os véus das madonas.
O prazer que foi traduzir esses movimentos cromáticos de imagens, é a primeira coisa a registrar – e a água verde e o monstro azul, este na noite.
(As noites andam difíceis, mas tenho tentado entender que seus terrores são na verdade meu próprio espanto com a minha fonte de literatura, de linguagem; nunca tenho crises de ansiedade de dia, é sempre na noite que o monstro azul vem babando água e alga – muitas vezes fui buscar esta coluna no inferno, e o que aconteceu foi que nos últimos meses minha incursão nele foi ousada, sem bússola, mas eis-me aqui de novo escrevendo e já são quase dez da noite em Luanda).
Toda cor pode ser terrível. Toda cor pode ser balsâmica.
The Whiteness of the Whale
(chapter 42 of the novel Moby Dick)
Herman Melville
What the white whale was to Ahab, has been hinted; what, at times, he was to me, as yet remains unsaid.
Aside from those more obvious considerations touching Moby Dick, which could not but occasionally awaken in any man’s soul some alarm, there was another thought, or rather vague, nameless horror concerning him, which at times by its intensity completely overpowered all the rest; and yet so mystical and well nigh ineffable was it, that I almost despair of putting it in a comprehensible form. It was the whiteness of the whale that above all things appalled me. But how can I hope to explain myself here; and yet, in some dim, random way, explain myself I must, else all these chapters might be naught.
Though in many natural objects, whiteness refiningly enhances beauty, as if imparting some special virtue of its own, as in marbles, japonicas, and pearls; and though various nations have in some way recognised a certain royal preeminence in this hue; even the barbaric, grand old kings of Pegu placing the title “Lord of the White Elephants” above all their other magniloquent ascriptions of dominion; and the modern kings of Siam unfurling the same snow-white quadruped in the royal standard; and the Hanoverian flag bearing the one figure of a snow-white charger; and the great Austrian Empire, Caesarian, heir to overlording Rome, having for the imperial color the same imperial hue; and though this pre-eminence in it applies to the human race itself, giving the white man ideal mastership over every dusky tribe; and though, besides, all this, whiteness has been even made significant of gladness, for among the Romans a white stone marked a joyful day; and though in other mortal sympathies and symbolizings, this same hue is made the emblem of many touching, noble things- the innocence of brides, the benignity of age; though among the Red Men of America the giving of the white belt of wampum was the deepest pledge of honor; though in many climes, whiteness typifies the majesty of Justice in the ermine of the Judge, and contributes to the daily state of kings and queens drawn by milk-white steeds; though even in the higher mysteries of the most august religions it has been made the symbol of the divine spotlessness and power; by the Persian fire worshippers, the white forked flame being held the holiest on the altar; and in the Greek mythologies, Great Jove himself being made incarnate in a snow-white bull; and though to the noble Iroquois, the midwinter sacrifice of the sacred White Dog was by far the holiest festival of their theology, that spotless, faithful creature being held the purest envoy they could send to the Great Spirit with the annual tidings of their own fidelity; and though directly from the Latin word for white, all Christian priests derive the name of one part of their sacred vesture, the alb or tunic, worn beneath the cassock; and though among the holy pomps of the Romish faith, white is specially employed in the celebration of the Passion of our Lord; though in the Vision of St. John, white robes are given to the redeemed, and the four-and-twenty elders stand clothed in white before the great-white throne, and the Holy One that sitteth there white like wool; yet for all these accumulated associations, with whatever is sweet, and honorable, and sublime, there yet lurks an elusive something in the innermost idea of this hue, which strikes more of panic to the soul than that redness which affrights in blood.
This elusive quality it is, which causes the thought of whiteness, when divorced from more kindly associations, and coupled with any object terrible in itself, to heighten that terror to the furthest bounds. Witness the white bear of the poles, and the white shark of the tropics; what but their smooth, flaky whiteness makes them the transcendent horrors they are? That ghastly whiteness it is which imparts such an abhorrent mildness, even more loathsome than terrific, to the dumb gloating of their aspect. So that not the fierce-fanged tiger in his heraldic coat can so stagger courage as the white-shrouded bear or shark.
/
A Brancura da Baleia
(capítulo 42 do romance Moby Dick)
Herman Melville
O que a baleia branca representava para Ahab foi sugerido; o que, às vezes, ele foi para mim, ainda não foi dito.
Além daquelas considerações mais óbvias a respeito de Moby Dick, que só podiam ocasionalmente fazer soar algum alarme na alma de qualquer homem, havia outro pensamento, ou melhor, um horror vago e inominável a seu respeito, que às vezes, por sua intensidade, dominava completamente todo o resto; e, no entanto, era tão místico e quase inefável que quase me desesperava em colocá-lo de uma forma compreensível. Foi a brancura da baleia que, acima de tudo, me horrorizou. Mas como posso esperar me explicar aqui; e ainda assim, de alguma forma obscura e aleatória, explicar-me é preciso, caso contrário todos esses capítulos seriam vãos.
Embora em muitos objetos naturais a brancura realce a beleza com refinamento, como se transmitisse alguma virtude especial própria, como nos mármores, camélias e pérolas; e embora várias nações tenham de alguma forma reconhecido uma certa preeminência real neste matiz; até mesmo os bárbaros e grandiosos reis de Pegu colocaram o título de “Senhor dos Elefantes Brancos” acima de todas as suas outras imputações magniloquentes de domínio; e os reis modernos do Sião desenrolando o mesmo quadrúpede branco como a neve no estandarte real; e a bandeira de Hanover com a figura de um cavalo branco como a neve; e o grande Império Austríaco, Cesariano, herdeiro da todo-poderosa Roma, tendo como cor imperial o mesmo matiz imperial; e embora esta preeminência se aplique à própria raça humana, dando ao homem branco o domínio ideal sobre todas as tribos obscuras; e embora, além disso, tudo isso, a brancura tenha se tornado um significado de alegria, pois entre os romanos uma pedra branca marcava um dia alegre; e embora em outras simpatias e simbolizações mortais, esse mesmo matiz seja o emblema de muitas coisas nobres e tocantes – a inocência das noivas, a benignidade da idade; embora entre os Homens Vermelhos da América a concessão da faixa branca de wampum fosse o mais profundo testemunho de honra; embora em muitas regiões a brancura tipifique a majestade da Justiça no arminho do Juiz e contribua para o estado diário de reis e rainhas puxados por corcéis brancos como leite; embora mesmo nos mistérios mais elevados das religiões mais augustas tenha sido feito o símbolo da pureza e do poder divino; pelos adoradores persas do fogo, a chama branca bifurcada sendo considerada a mais sagrada no altar; e nas mitologias gregas, o próprio Grande Júpiter encarnado num touro branco como a neve; e embora para os nobres iroqueses, o sacrifício do sagrado Cão Branco no meio do inverno fosse de longe o festival mais sagrado de sua teologia, aquela criatura fiel e imaculada sendo considerada o enviado mais puro que eles poderiam enviar ao Grande Espírito com as novas anuais de sua própria fidelidade; e embora diretamente da palavra latina para branco, todos os padres cristãos derivam o nome de uma parte de sua vestimenta sagrada, a alva ou túnica, usada sob a batina; e embora entre as pompas sagradas da fé romana, o branco seja especialmente empregado na celebração da Paixão de Nosso Senhor; embora na Visão de São João, vestes brancas sejam dadas aos redimidos, e os vinte e quatro anciãos estejam vestidos de branco diante do grande trono branco, e do Santíssimo que ali está sentado, branco como lã; no entanto, apesar de todas essas associações acumuladas, com tudo o que é doce, honrado e sublime, ainda espreita algo indescritível na ideia mais íntima desse matiz, que causa mais pânico na alma do que aquela vermelhidão que aflige no sangue.
É essa qualidade indescritível que faz com que o pensamento da brancura, quando divorciado de associações mais gentis, e acoplado a qualquer objeto terrível em si mesmo, aumente esse terror até as fronteiras mais distantes. Testemunhe o urso branco dos polos e o tubarão branco dos trópicos; o que senão sua brancura suave e escamosa os torna os horrores transcendentes que são? É essa brancura medonha que confere uma suavidade tão repugnante, ainda mais asquerosa do que terrível, ao mudo regozijo de seu aspecto. De modo que nem o tigre de presas ferozes em seu casaco heráldico possa estupeficar tanto a coragem quanto o urso ou o tubarão amortalhados de branco.
A única escolha mais escolha mesmo de tradução, no sentido de buscar um efeito, foi pelo amortalhado de branco – porque serve, o original diz que estão enrolados no branco os dois animais, e porque esse trecho que escolhi de Moby Dick é todo perpassado de morte – e para nossa sensibilidade hoje, mais consciente dos processos coloniais, a supremacia masculina e branca aparece em quase todas as referências, e se materializa no explícito enunciado de superioridade branca. A lista elogiosa ao branco é também monstruosa, e mesmo esse monstro reluzente é muito mais assustador e sanguinário que o monstro azul de Virginia Woolf. O elogio da cor branca não inclui, no trecho outras associações, como à paz, ou a uma forma diversa de entender a morte e o luto em culturas não-brancas, as que são colocadas como outras, alienígenas e passíveis de subjugação. E é o branco da baleia paradoxalmente o que vai destruir o agente da subjugação da natureza, de sua submissão ao capricho humano – humano branco, sobretudo. Mesmo a elegia do branco está nesse trecho muito mais próxima do tubarão e do urso polar como terrores, e muito já entregando a lógica do sistema colonial a que Melville se opunha – como mostram suas conferências claramente contrárias à expansão dos Estados Unidos sobre as ilhas do pacífico, ou sua crítica à corrupção causada pelos missionários cristãos pelo mundo – e aqui o problema do pensamento político de Melville: depois de entrado o cristianismo, a auto-governabilidade das culturas postas em posição subalterna se corroía. Ainda assim, Melville critica agudamente a colonização e enxerga que aquilo que os EUA consideram o ápice da civilização não passa de “hospícios, prisões e hospitais”. E a baleia resolve, em Moby Dick, o problema com o colono, acabando com ele na mesma cor.
Negro
Langston Hughes
I am a Negro:
Black as the night is black,
Black like the depths of my Africa.
I’ve been a slave:
Caesar told me to keep his door-steps clean.
I brushed the boots of Washington.
I’ve been a worker:
Under my hand the pyramids arose.
I made mortar for the Woolworth Building.
I’ve been a singer:
All the way from Africa to Georgia
I carried my sorrow songs.
I made ragtime.
I’ve been a victim:
The Belgians cut off my hands in the Congo.
They lynch me still in Mississippi.
I am a Negro:
Black as the night is black,
Black like the depths of my Africa.
/
Negro
Langston Hughes
Eu sou um Negro:
Preto como a noite é preta,
Preto como as profundezas da minha África.
Eu fui escravo:
César disse-me para manter os degraus da entrada limpos.
Eu escovei as botas de Washington.
Eu fui operário:
Sob minha mão as Pirâmides subiram.
Eu fiz argamassa para o Woolworth Building.
Eu fui cantor:
Por todo o caminho da África para a Geórgia
Eu trouxe minhas canções de tristeza.
Eu fiz o ragtime.
Eu fui vítima:
Os belgas deceparam minhas mãos no Congo.
Ainda me lincham no Mississippi.
Eu sou um Negro:
Preto como a noite é preta,
Preto como as profundezas da minha África.
Não tenho nada a agregar, não precisa e a tradução quase se fez sozinha, preciso como Hughes é: a cor preta afirma.
Mas antes de encerrar, quero voltar ao cinza. E escolher uma outra cor para terminar mesmo.
Grey Matter
(extracts)
Derek Jarman
Grey is around us and we ignore it. The roads on which we journey are grey ribbons dissecting fields of colour. In the distance, the towers and spires of medieval churches and cathedrals, with their lead grey roofs, loom over village and town. Lichfield, the field of corpses. If they had colour it long since washed away. In the High Street banks, money is handled by little grey men, trustworthy in their uniformity, who put an ideal before self. Unthinking grey. The guardians of a grey area. Grey in the state of mind.
Present Politics
In grey days of spring
The colours sing in my garden
Grey days cool with mists
At the edge of the horizon, behind the great bulk of the nuclear power station, lies the grey area of secrecy. Home of the colourless atom, but grey in the mind’s eye. The cornerstone of the half-truth on which governments build their defence, atomic half-truths which we live here. Nuclear Electric monitor the radiation. 0.05 milli-sieverts per hour in my kitchen. Though nothing is said about the gamma rays from the inadequately protected Magnox A, running past sell-by date which was in the last decade. No one will give you any answers unless you kick them in the shins. The Berlin Wall may have been demolished, but it still runs through our institutions. I’m told I’m living on the fringes of society, but what if the world was awry?
/
Matéria Cinzenta
(trecho de um dos ensaios de Chroma)
Derek Jarman
O cinza está ao nosso redor e nós o ignoramos. As estradas de nossas jornadas são fitas cinzentas dissecando campos coloridos. Ao longe, as torres e pináculos das igrejas e catedrais medievais, com os seus telhados cinza cor de chumbo, assomam-se sobre aldeias e cidades. Lichfield, o campo dos cadáveres. Se eles tiveram cor, já foi desboata faz tempo. Nos bancos da High Street, o dinheiro é manipulado por homenzinhos cinzentos, confiáveis em sua uniformidade, que colocam um ideal antes de si mesmos. Cinza impensado. Os guardiões de uma área cinzenta. Cinza no estado de espírito.
Política Atual
Nos dias cinzentos da primavera
As cores cantam em meu jardim
Dias cinzentos refrescados com neblina
No limite do horizonte, atrás da grande massa da usina nuclear, encontra-se a zona cinzenta do segredo. Lar do átomo incolor, mas cinza aos olhos da mente. A pedra angular da meia-verdade sobre a qual os governos constroem a sua defesa, meias-verdades atômicas que vivemos aqui. A Nuclear Electric monitora a radiação. 0,05 milisieverts por hora na minha cozinha. Embora nada seja dito sobre os raios gama do Magnox A, inadequadamente protegido, cujo prazo de validade já passou desde a década passada. Ninguém responderá nada, a menos que você chute suas canelas. O Muro de Berlim pode ter sido demolido, mas ainda atravessa as nossas instituições. Disseram-me que vivo à margem da sociedade, mas e se o mundo estiver errado?
O Chroma, de Derek Jarman, é um livro muito bacana – cada ensaio trata de uma cor, ou de noções ligadas ao estudo da cor na arte. Jarman era um grande colorista, já se vê em sua obra cinematográfica. Seu último filme, Blue, é basicamente uma tela azul e diálogos: antes de morrer, Jarman foi acometido de uma cegueira decorrente da infecção por HIV e tudo o que via era azul – o monstro de Virginia Woolf.
(Eu vivi dias em cinza, meses em cinza, e por isso não escrevi. Diferente de Jarman, não acho que as cores morrem no cinza, como ele diz em outro trecho do ensaio. Acredito na tristeza – e precisei dela nesses meses de agitação e espanto. Pode ser que eu não tenha tido muita sorte em nascer transtornado, mas e se o mundo não presta? E se o que vejo nos meus transtornos se mostra cinza fora, mas e se for grande espetáculo colorido dentro? Você não vai saber, porque não vou contar, até mesmo porque não sei. Sei das crises de desassociação, e do medo do rechaço, do banimento – o que o único que fez foi a instituição ministério para quem trabalho: para eles eu não sirvo. Comecei este ano com sete dias de internação por causa de uma erisipela, e estou bem e estou vivo, ainda fugindo de crises, mas conseguindo fugir mais que não. Escrevi muito, mas não a coluna, gostaria, mas não consegui. Me desculpe. Mas eu precisei do cinza, eu preciso do cinza, da tristeza, do tédio e da dor, e estou feliz por guardar cinza dentro de mim).
Minhas cores favoritas são as do por do sol, mas se for para pegar uma entre elas, eu pego o rosa. E com o rosa termino a coluna. Espero que o meu ano termine como na canção de Zazie. E se você quiser, que o teu também termine assim.
Rose
Zazie
Je lis tous les romans à l’eau de rose
J’en souligne des passages au crayon rose
Le bonheur m’obsède à la névrose
Là où il y a du gris, je mets du rose
Sur sa bouche, je pose
Mes deux lèvres roses
Je l’aime car il suppose
Qu’aimer est toujours rose.
La couleur de tes joues quand glissent mes bas roses
Je m’ouvre si tu presses le bouton rose
Le bonheur m’obsède à la névrose
Là où il y a du gris, je mets du rose
Sur sa bouche, je pose
Mes deux lèvres roses
Je l’aime car il suppose
Qu’aimer est toujours rose.
Sur sa bouche, je pose
Mes deux lèvres roses
Je l’aime car elle suppose
Qu’aimer est toujours rose.
/
Rosa
Zazie
Leio todos os romances cor-de-rosa
Sublinho-lhes as passagens com lápis rosa
A felicidade me obceca à neurose
Onde há cinza, eu coloco rosa.
Sobre sua boca, eu pouso
Meus dois lábios rosa
Eu o amo porque ele ousa
Dizer que amar é sempre rosa
A cor da tua bochecha quando deslizam minhas meias rosa
Eu me abro se pressionas o botão rosa
A felicidade me obceca à neurose
Onde há cinza, eu coloco rosa.
Sobre sua boca, eu pouso
Meus dois lábios rosa
Eu o amo porque ele ousa
Dizer que amar é sempre rosa
Sobre sua boca, eu pouso
Meus dois lábios rosa
Eu a amo porque ele ousa
Dizer que amar é sempre rosa.