“Dois Estranhos” (2020) – Por Wuldson Marcelo
Dois Estranhos (Two Distant Strangers). Direção: Travon Free e Martin Desmond Roe. País de Origem: Estados Unidos, 2020.
A força deste curta-metragem vencedor do Oscar em 2021 (na verdade, um média de 32 minutos) está em como a realidade se torna essencial para sua compreensão, trazendo o extra fílmico como um elemento de composição, com o protagonista preso em um loop temporal, em um encontro fatídico com um policial racista. Realidade, pois o recurso da repetição, até que se encontre uma solução para o problema ou situação, parte da História, da História do preconceito racial nos Estados Unidos da América.
Um cartunista negro chamado Carter (Joey Bada$$) amanhece na casa de Perri (Zaria Simone), uma jovem com quem tem um encontro sexual casual, mas com quem entra em sintonia e o casal aparenta ter química. Porém, Carter precisa ir embora, para alimentar o seu cachorro antes do trabalho. Seria algo natural, garoto e garota se conhecem, tem afinidade, na cidade mais cosmopolita do mundo, que é Nova York.
O senão presente no momento romântico é uma tensão que prenuncia algo, como uma crônica de uma tragédia anunciada, que se concretiza quando Carter esbarra na rua em um homem, que derruba café em si mesmo. Um incidente comum no e do cotidiano que, no entanto, chama a atenção do policial Merk (Andrew Howard) que aborda ilegalmente o rapaz. Merk, que é branco, vai da suspeita à fúria em pouco tempo, realizando uma violenta imobilização, algemando e sufocando o cartunista, em uma cena que lembra o caso George Floyd. É reconhecível e doloroso o pedido de Carter para que o policial pare, assim como Floyd e seu pedido de socorro, de apelo à humanidade, “Eu não consigo respirar”.
Evidentemente, Carter morre. Porém, ele desperta novamente na cama de Perri. O que parecia apenas um pesadelo, logo se repete: outra vez morto por Merk e mais um amanhecer ao lado da garota. Carter está preso em um loop temporal. Entre o desespero e a vontade de transformar sua condição, o jovem percebe que, mesmo que faça algo diferente, mude sua direção ou suas ações, o desfecho é sempre igual, o encontro com a brutalidade policial e o racismo.
O cinema vira e mexe nos apresenta histórias de uma personagem que, em um determinado momento e por algum intrigante motivo, é arrastado por uma espiral do tempo que a força a viver eternamente o mesmo dia, tornando-a refém de uma repetição de eventos que precisa ultrapassar ou ter ciência da lição que deve aprender para superá-la. O loop temporal é explorado no clássico da comédia Feitiço do Tempo (1993), no terror A Morte Te Dá Parabéns (2017), no romance O Mapa das Pequenas Coisas Perfeitas (20121), na ficção científica No Limite do Amanhã (2014) para ficar em alguns exemplos e de gêneros distintos. Em Dois Estranhos, a estrutura de narrativa favorece a crítica social, aproximando-a de obras como Corra! (2017), que usa os códigos do gênero terror para discutir apropriação cultural, racismo institucional entre outros temas. Assim como o excelente longa-metragem de Jordan Peele, o filme de Travon Free e Martin Desmond Roe tem os fatos da vida como suporte. Cada uma das mortes, cada execução de Carter reproduz a de uma pessoa negra pelo autoritarismo e intolerância das forças policiais estadunidenses, leia-se racismo.
Por 99 vezes Merk leva a sua “cisma” a um final trágico. Então, para encerrar o ciclo fatal, Carter altera a sua estratégia, pois, em vez da fuga parte para uma abordagem de aproximação, antecipando as ações do policial e tentando convencê-lo a abandonar a violência e se conscientizar de seu racismo. Atitude que rende uma carona para casa e uma longa discussão/conversa que expõe a sistemática racista e problematiza questões relativas à raça pertencentes aos âmbitos social e cultural. Mas esse entendimento conduz a mais uma surpresa impactante.
O diálogo na viatura é um misto de tensão e esperança e revela o quanto as atuações de Joey Bada$$ e Andrew Howard são exemplares. Joey nos passa com competência as emoções de Carter, a incompreensão, o desespero, a sensação de confinamento, a possibilidade de salvação. Já Howard, por mais que seu personagem seja o rosto de um sistema que promove um extermínio institucionalizado, consegue evitar a caricatura, ainda que Merk permaneça plano.
Se é a realidade que ampara Dois Estranhos, a violência incomoda por ser gráfica. A questão é a sua necessidade. E sim, é um incomodo necessário, já que o que se evidencia e se enfrenta é um genocídio amparado pelo Estado. Carter encontra a morte nas esquinas, no apartamento de Perri, por um gesto tido como hostil, por existir. E é esse terror diário, o alvo marcado nas costas, que Free e Desmond Roe imprimem no filme. Não há saída fácil contra essa engrenagem ardilosa e feroz que é o racismo.
Em um momento de alusão à África, o sangue de Carter forma o mapa do continente no chão. É uma dor ancestral, originária do horror da escravização negra, e que no presente, já futuro, está em um embate com as terríveis tecnologias do racismo. Esse sangue também representa a conexão com sua ancestralidade, de onde vem sua força. E é o sangue de cada vítima da violência do Estado – nomes que aparecem na tela, antes do créditos finais, ao som de The Way It Is de Bruce Hornsby and the Range.
Reflexo de um cotidiano violento, o curta-metragem é potente, assustador e real. Se os Estados Unidos vendem a liberdade e a democracia para o mundo, obras como Dois Estranhos apresentam como o discurso é falso, hipócrita. E é uma situação também palpável para nós brasileiros, em que 77% dos jovens assassinados por aqui são negros e a violência policial registra números absurdos de denúncia.
Dois Estranhos faz mais do que colocar o dedo na ferida. E, se o final parece levar a um beco sem saída, a uma espécie de reafirmação da condição do negro de marginalizado e perseguido pelo racismo, o que aponta, na verdade, é que Carter não irá desistir de reverter esse jogo, ele viverá novamente para seguir na luta.
Concebido durante o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), Dois Estranhos tem um peso histórico, urgente, que faz todo sentido no aqui e agora, em um presente insuportável. É um grito para que se desate a teia do racismo estrutural. Como canta Tupac em Changes, que tem um sample da música de Bruce Hornsby and the Range, e é a frase final que encerra o curta-metragem, “Aprenda a me ver como um irmão em vez de dois estranhos distantes”.
Dois Estranhos é uma produção da Netflix.