“Estratagema”, um conto de Divanize Carbonieri
O conto “Estratagema” de Divanize Carbonieri faz parte do livro Passagem estreita, selecionado pelo Edital Fundo 2019 de Apoio e Estímulo à Cultura em Cuiabá e que se encontra no prelo.
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ESTRATAGEMA
Ainda arriada na esteira, Esmeraldina só espiava Otônio boiar no ar por cima dela. De todos, ele era o mais leal, o que nunca arredava pé do seu lado. Nem sinal de Jacira. Muito menos de Tininha. Graças ao bom Deus. Só ela e Otônio dentro do barraco, sossegados, embalados pelo som do chuvisqueiro. Otônio dormia solto, roncando. Seu corpanzil azul tapava a visão de Esmeraldina das ripas do telhado sem, no entanto, servir de anteparo para os respingos das goteiras. Gota atrás de gota caía na testa dela, escorregando preguiçosa para o meio da farta cabeleira branca. Um bom refrigério para uma alma cansada. Esmeraldina tinha fome, mas pouca vontade de comer. Qualquer bocado custava demasiado sacrifício. Muita lata e muito papelão para catar. A troco de quê? Algum arroz, algum feijão. Carne só se tivesse a sorte de ganhar um coração de boi, as tripas de um porco, o pescoço de uma galinha. A caridade do povo consistia em dar o que não tinha serventia. Tanto fazia jogar no lixo, para os cachorros da rua ou despejar nas suas mãos. De todo jeito, a carniça fedorenta e pelancuda sumia. Assim, um monte de comida podre foi amealhado por ela. Comia o que se salvava no meio da arruinação. Esmeraldina tinha tido olho bom. Antes de o trio brotar do éter, era exímia em seu ofício. Afinal, a destreza formada na necessidade tende a ser sempre mais perfeita. Sabia bem reconhecer no refugo o que ainda prestava. Os outros catadores às vezes deixavam passar algo batido. Ela, nunca. Mas isso era passado. Ultimamente só rendia um pouco graças à sua trinca de ajudantes. Aquilo que um não via, vinha o outro e apanhava. Tininha era craque em achar coisa perdida no chão. Tendo só um palmo de estatura, logo topava com o que os demais nem enxergavam. Jacira, por sua vez, fazia a varredura das lixeiras. Seu olhar de raio-x revelava o que tinha dentro de cada saco plástico sem precisar abrir. Metia diante de Esmeraldina somente o proveitoso. E Otônio, que esvoaçava, ia aonde os pés das mulheres não alcançavam. Ágil e eficiente, recolhia das alturas tudo o que pudesse ser revertido em algum trocado. A mera sobrevivência ia, então, se garantindo. Nessa manhã, o aguaceiro forçava a folga. Esmeraldina, contudo, não jazia contrariada. Ainda podia ter saído com chuva e tudo, mas era empenho demais. Ela já não se botava tão disposta. A leseira tinha se entranhado em seu corpo de um jeito que não dava mais para exorcizar. Não era raro o dia em que só se erguia do sono porque os três não paravam de azucrinar sua cabeça. Uma vez na rua, ora se aprumava e mourejava com afinco, ora desembestava a variar, transtornada. Nessas horas, seus fiéis escudeiros olhavam por ela. Desse modo, passava quase incólume pelo surto. Há alguns dias não vinha mais tendo força para enfrentar a lida. E agora experimentava um raro momento de trégua, sem ser aborrecida pelos insistentes incentivadores. Durou o tempo de cair o último pingo do céu. Tininha surgiu de repente por entre os vãos das tábuas da parede. Para fazer isso, ela se adelgaçou ao máximo até virar uma tripinha de nada, voltando em seguida ao seu formato habitual, atarracado e nanico. Esmeraldina fingiu que não viu. Tininha era, de longe, a mais aporrinhante, com sua voz esganiçada de taquara rachada. A tampinha não se fez de rogada. Com a destreza de uma alpinista suíça, montou no bucho de sua ama – era assim que se dirigia a Esmeraldina – e começou dali a sua cantilena. Desarvorada nau arrastada pelos fados nesse oceano de tormentas, eis que se torna impeditivo que tal leniente indolência se alastre por mais tempo, pois a privação prolongada de repasto sói ser causa de fenecimento vagaroso, porém, certeiro. Ama adorada, urge sobrepujar a pasmaceira e embrenhar-se soleira adiante na diligência pela recolha de despojos que lhe possam auferir benefícios rendosos. Esmeraldina não moveu uma palha. Tomava a linguagem de Tininha por dialeto estrangeiro e só se apoquentava pelo som estridente daqueles ganidos. Mas tinha se esmerado na arte de ignorar até isso e parecia mesmo totalmente alheada do que a anã enunciava de forma tão enfática. Malogrando em seu intento, Tininha invocou sua companheira Jacira, que se transubstanciou imediatamente de coisa alguma à forma humana, ainda que um pouco mais cintilante do que o normal. Ô, dona Esmeraldina, pelo amor de Deus, a senhora deixa de bestice e sai logo desse ninho porque periga a gente morrer tudo à míngua. Quando foi que a senhora merendou por último? Se a senhora morre, nós três vamos junto, a senhora sabe. Se não tem dó da senhora mesma, tenha de nós, pobres coitados, que não temos nada a ver com a sua desgraça. Pelo contrário, tanto que a gente tem ajudado a senhora, não é mesmo? Então, dona Esmeraldina, por misericórdia. Esmeraldina virou o rosto para a parede. Não queria saber de nada, não. Estava entregue. A fome tem lá os seus caprichos: se não for saciada em sua fase aguda, nos primeiros dias de abstinência, vai embotando o organismo, que para de sentir o que quer que seja. A simples visão da comida pode inclusive causar náuseas a quem já se acostumou a ter permanentemente um buraco no estômago. Esmeraldina tinha atingido esse estágio. A tonteira se confundia com uma espécie de enlevo, e ela se deleitava demoradamente em não fazer nada, não olhar para nada, não pensar em nada. O nada tinha passado a ser prazeroso. Nisso, com a vozearia de suas colegas, Otônio despertou de seu cochilo de beleza. Ele era sempre tão manso e gentil que Esmeraldina, mesmo sem dar o braço a torcer, se alegrava com as suas intervenções. Dessa vez, Otônio não disse palavra. Sentou-se num banquinho inexistente ao lado de sua patroa e ali ficou, sorumbático e cabisbaixo. Tininha, que tinha se arvorado à posição de líder daquela pequena malta, conclamou os pares à ação. Prezados camaradas, é mister arquitetar um estratagema para salvaguardar a integridade de nossa bem-amada ama ou do que permanece dela. Recomendo que procedamos a um subterfúgio drástico. E, interrompendo momentaneamente a já conhecida algaravia, cochichou seu plano no ouvido dos companheiros. Jacira sussurrou sua resposta. A ideia é porreta mesmo, mas ainda carece de tirar ela da cama. Como diabos a gente vai fazer isso? Instantaneamente as duas olharam para Otônio. Sim, se existia alguém capaz de convencer Esmeraldina, essa criatura seria ele, sem dúvida o seu favorito. Estranhamente, porém, Otônio vinha se recusando a estimular Esmeraldina a continuar batalhando. No fundo, achava que ela bem merecia um descanso e não via à frente nenhuma possibilidade de melhora para uma vida que mais parecia um castigo. Entendeu, todavia, que a alternativa proposta por Tininha era de fato boa e resolveu tentar uma última vez. Esmeraldina, esmeralda minha, vamos levantar que a chuva já passou. Hoje será um dia abençoado, você vai ver. Sempre quando chove, as coisas melhoram depois. Você já reparou nisso, não reparou, minha linda? A voz dele era suave, como de costume, e Esmeraldina se permitiu ser encantada por ela. Era outro dom que ele possuía. Mas é tudo por demais custoso, meu filho. Minha carcaça não aguenta mais esse fardo. Será que não ganho mais em desistir de tudo? Tantos anos nessa luta para passar fome igual que sempre. Esmeraldina, me ouça, desde quando viemos te socorrer, nós nunca te mentimos, mentimos? Nunca, meu filho. Vocês são uns meninos de ouro. Apesar de me amolarem mais que tudo, sou agradecida a Deus por ter mandado vocês quando eu não tinha mais esperança de nada. Então, dona Esmeraldina, Deus não ia mandar a gente aqui à toa, né? Depois dessa interrupção, Jacira foi encarada de forma enviesada pelos outros dois e se calou. Estava implícito que apenas Otônio devia falar. Esmeraldina, querida, eu te garanto que você não vai se arrepender se sair de casa hoje. Seu destino vai mudar. E para melhor, você vai ver. Acreditar de verdade, ela não acreditou. Ainda assim, se levantou como quem sai de uma tumba. Primeiro, sentiu cada uma das vértebras se encaixando devagar em suas costas até conseguir se sentar na esteira. Dobrou as pernas endurecidas e virou-se para a direita. O difícil era ficar de pé, tão próxima do chão estava. Seus amigos, então, deram uma ajudinha mágica, e Esmeraldina voltou à vida. Ia sair como estava porque para ela tanto fazia, mas as meninas lembraram que era necessário lavar o rosto e pentear os cabelos. Dentes já não tinha mais. Roupa para trocar também não. Só o vestido xadrez surrado e sujo que usava como camisola e uniforme de trabalho. Arrumada, abriu a porta e pôs o pé para fora. Na viela que separava um casebre e outro, corria uma água esverdeada e malcheirosa. Esmeraldina se pôs a caminho e, contrariamente ao seu hábito, Jacira não lhe avisou para passar a corrente e fechar o cadeado. Não tinha pertences que merecessem ser roubados, mas o próprio barraco poderia ser ocupado por outras pessoas, igualmente necessitadas. O cadeado, em si, não representava grande impedimento, mas era melhor do que nada. Por isso, a distração de Jacira não deixava de ser intrigante. Enfiando os pés na lama, a anciã descia a ladeirinha enquanto ressoavam os estalos de seu esqueleto decrépito. Como sempre, não ia sozinha. Na frente do diminuto bando, marchava Tininha, bem pomposa. Otônio seguia abraçado à sua protegida, como se fossem namorados. Jacira ocupava a retaguarda, de onde se dedicava a esquadrinhar tudo no caminho. Esmeraldina não sabia a que lugar estava se dirigindo. Nem tinha pegado o carrinho de feira que usava para guardar os objetos recolhidos. Ela se esqueceu dele e Jacira também não lhe recordou. Dessa vez, ele não teria utilidade. Tininha liderava, já com um destino delineado na cabeça. Quando chegaram ao asfalto, ela fez a sua exortação. Colegas de infortúnio, sobejamente desgastados pelos embates diuturnos, a redenção se aproxima. Mantenham a vigilância e ao meu comando estejam preparados para a contenda derradeira. Obviamente que Esmeraldina não compreendia nada. Mesmo os outros não sabiam ao certo o que iria ocorrer, embora tivessem recebido as informações básicas. Era a mente privilegiada de Tininha que tinha organizado tudo. Mais do que inteligência, a ela tinha sido concedida a dádiva de antever os acontecimentos, a habilidade de adivinhar sempre o que vinha pela frente em qualquer situação. Um atributo bastante útil, isso é certo. Percorreram ainda por um tempo a calçada e logo estavam perto da agência lotérica. Tininha fez sinal para que se recostassem à parede lateral de uma loja vizinha e aguardassem pelo que viria. Ela já tinha ciência de todas as pessoas no interior do prédio e do que cada uma portava. Também previa, por força de seu talento singular, quem iria aparecer. Em instantes, um garoto estacionou a moto na calçada e entrou na casa de apostas com capacete e tudo. Olhares foram trocados pelos conspiradores, e Otônio prontamente abandonou o grupo e adentrou o recinto atrás do motoqueiro. Alguns minutos de silêncio se seguiram. Esmeraldina, então, foi capaz de ouvir uma gritaria vinda dali, juntamente com barulhos de disparo e vidro estilhaçado. Não transcorreu muito tempo, e o rapazola saiu sangrando e cambaleante pela porta. Tropegamente, conseguiu dar mais alguns passos, antes de se enroscar no poste e despencar sem vida no chão. Com o impacto de seu corpo no calçamento, um dos pacotes de dinheiro que trazia preso à cintura desprendeu-se e caiu na sarjeta. Tininha se dirigiu para ali com a rapidez e facilidade costumeiras. Agarrou o embrulho e voltou sorrateira ao esconderijo, para onde Otônio também retornava de sua missão. O gigante azulado tinha plantado no ouvido de um dos clientes que ele deveria reagir ao assalto. O homem andava armado com frequência, mas não era do tipo que se incomodava com a perda alheia. Em outra situação, jamais teria interferido. A lábia de Otônio mais uma vez tinha se mostrado eficaz. Tininha nem precisava contar as cédulas. Já sabia de antemão que se tratava de sete mil reais. Indicou que deveriam prosseguir. Vamos, cambada, todo mundo para fora daqui, encorajou Jacira após o aval da amiga. Dando o braço a Esmeraldina, foi conduzindo a velha para o beco aos fundos da loja. Ama idolatrada, o Senhor nos proveu com abastança suficiente para ingressarmos no grande templo do consumo e adquirirmos o que bem lhe aprouver. Basta de escassez de víveres para milady Esmeraldina de Jesus dos Santos. Como Tininha estava falando e rindo, Esmeraldina fez o mesmo, embora as palavras da nanica continuassem sendo indecifráveis para ela. E ainda será possível alugar um quarto numa bela pensão, doce Esmeraldina, onde você terá mais conforto e segurança. Isso ela entendeu e se emocionou com a gentileza de Otônio, sempre preocupado com o seu bem-estar. Todos estavam tão exultantes que começaram a entoar cânticos em sua nova jornada. Se as tristezas desta vida quiserem te sufocar, segura na mão de Deus e vai. Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus, pois ela, ela te sustentará. Não temas, segue adiante, e não olhes para trás. Segura na mão de Deus e vai. Segura, segura na mão de Deus. Segura na mão de Deus, que ela te sustentará. Não temas, segue adiante, e não olhes para trás. Segura na mão de Deus. E vai. O corpo do pobre adolescente ainda ficou jogado na calçada por uma hora e trinta minutos. O veículo do IML demorou a chegar porque antes tinha ido atender outro chamado na favela vizinha. Ali, a viela estreita e cheia de barro tornou dificultoso o serviço. Os moradores estavam todos aflitos com um fedor insuportável, maior ainda que o do esgoto, que escapava das frestas de um dos barracos. Apesar de a porta não estar trancada com a cadeia de ferro, ninguém teve coragem de entrar. Acionaram a polícia, que, do local, finalmente chamou a viatura para recolher o cadáver de uma velha catadora. Mais tarde, a autópsia concluiu que a sua causa mortis tinha sido a falência múltipla dos órgãos, acarretada por desnutrição severa, sendo que ela já devia estar morta há pelo menos três dias.
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